25 de novembro de 2024
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Foto: Reprodução

O presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, afirmou que seu país foi responsável por uma série de crimes contra escravos e indígenas brasileiros

Por José Osmando

Numa conversa com correspondentes estrangeiros, na noite de terça-feira, em Lisboa, o presidente de Portugal, Marcelo Rebelo de Sousa, afirmou que seu país foi responsável por uma série de crimes contra escravos e indígenas brasileiros, durante o longo período de colonização do Brasil, e disse que a nação portuguesa assume total responsabilidade pelos danos causados e deve pagar por isso.

Esta é a primeira vez na história que uma autoridade portuguesa assume a culpa e pelas atrocidades cometidas e a responsabilidade de promover reparação pela brutal escravidão, trabalho forçado, inexistência de remuneração e total privação de liberdade contra milhares e milhares de negros africanos trazidos para o Brasil, e, do mesmo modo, pelo extermínio de uma quantidade incalculável de indígenas.

O presidente de Portugal só não indicou de que maneira eles farão a reparação ao povo brasileiro. Mas isso é um assunto a ser discutido entre os dois países a partir de agora. O que me parece importar bastante nessa fala de Rebelo de Sousa, é que, finalmente, após mais de 500 anos de silêncio, de ignorância absoluta sobre essa tragédia contra africanos e indígenas transformados em escravos, uma autoridade portuguesa decide reconhecer seus crimes e falar em reparação.

Se pode haver algum regozijo por essa revelação do presidente português, o mérito por esse mínimo de conquista cabe, de maneira profundamente adequada e justa, uma espécie de coroamento ao gigante cidadão brasileiro Darcy Ribeiro, o antropólogo, escritor, historiador, pesquisador, professor, que dedicou toda sua vida a estudar a dimensão e os reflexos da colonização na formação do Brasil, para provar ao mundo que a escravidão e o extermínio de populações indígenas são o vergonhoso símbolo da mais terrível de nossas heranças.

Essa herança é de tal dimensão maldita, que talvez por envergonhar tanto, parcelas significativas da sociedade brasileira parecem ignorar o que de fato existiu nesse passado, fazendo de conta que nada aconteceu, silenciando, e até mesmo orgulhando-se, de alguma forma, por ter adquirido, como resultado da colonização, algumas gotas de  sangue europeu

No seu obrigatório livro “Os Índios e a Civilização”, Darcy Ribeiro, ao falar sobre essa terrível herança, choca-nos com a conclusão de que parte expressiva de nosso destino “é levar para sempre conosco a cicatriz do torturador impressa na alma e pronta para explodir na brutalidade racista e classista”.

E é essa vergonhosa e triste verdade que se manifesta a cada dia, porque fica incandescente em muitas autoridades, políticos, governantes, arrogantes vestidos de empresários, sempre “dispostas a torturar, seviciar e machucar os pobres que lhes caem às mãos.” Para Darcy Ribeiro, todos nós, brasileiros, somos por igual a mão possessa que supliciou negros e indígenas pelos atos brutais dos portugueses.

E diz mais: “Descentes de escravos e senhores de escravos seremos sempre servos da malignidade destilada e instalada em nós, tanto pelo sentimento da dor intencionalmente produzida para doer, mais quanto pelo exercício da brutalidade sobre homens, sobre mulheres, sobre crianças, convertidos em pasto de nossa fúria.”

Tais heranças, responsáveis por  um país deformado, plenamente desigual e injusto, nos fazem um povo aprisionado no preconceito e na discriminação, na arrogância de fortes contra fracos, na submissão das mulheres, na trabalho escravo ainda hoje praticado ( e pasmem, até mesmo exercitados por juízes, como se viu há pouco), e no trabalho infantil.

Basta olharmos para dados levantados pelo Ministério Público do Trabalho, segundo os quais crianças negras representam 62,7% da mão de obra precoce no Brasil. E no trabalho infantil doméstico, esse percentual sobe para 73,5% e, pior ainda, se leva a mais de 94% quando se trata de meninas.

Meu desejo sincero é que esse reconhecimento do Presidente de Portugal transporte aos brasileiros o  peso e a responsabilidade de despertá-los sobre essas realidades chocantes. Que a herança que os portugueses nos deixaram seja progressivamente demolida, desfeita, jogada ao lixo, e que em seu lugar seja erguida uma sólida construção de dignidade, respeito e esperança.

Bem além do distante Marcelo Ribeiro de Sousa, o Brasil e os brasileiros precisam ter a coragem de destruir suas próprias mazelas.