No rescaldo de uma forte tempestade em Portugal, deu-se o regresso de ML Buch ao nosso país depois de um concerto esgotado na Galeria Zé dos Bois, em abril passado. Desta vez, o recinto escolhido foi o clube B.Leza, casa cada vez mais presente no circuito musical alternativo lisboeta. A abertura ficou a cargo de Adriana João, artista cujo trabalho passa por diferentes formatos: imagem em movimento, som, performance, escultura, fotografia e a instalação artística; pelo que a sua atuação seria uma completa surpresa para a maioria dos presentes. Recorrendo a um violino e à sua voz, ambos sujeitos a efeitos e delays, Adriana criou uma experiência sónica ocasionalmente meditativa, ocasionalmente desoladora, chegando a tocar o transcendente em alguns momentos.
Como qualquer concerto à base de loops e manipulação de som em tempo real, demorou alguns minutos a encarrilar, somando camadas de um violino ocasionalmente dissonante, lembrando a recente tendência em bandas sonoras de filmes. O som oscilava entre as colunas dos lados esquerdo e direito da sala, conferindo dinamismo à peça e adicionando-lhe uma componente de instalação sonora. A certa altura, o som trabalhado do violino passa a soar a uma estranha mas bela mistura entre o chilreio de pássaros e algo cristalino e futurista, equilibrando o natural e o digital. No final, gostaríamos que a sua performance tivesse sido mais longa para poder escavar mais emoções, mas ficámos surpreendidos com aquilo que conseguiu fazer em menos de meia hora.
Depois de uma breve pausa, ML Buch subiu então ao palco para aquele que foi o seu segundo concerto em Lisboa em menos de um ano, bastante aplaudido pelo bem composto público. “É um prazer estar de volta!”, exclamou a artista. Se tivéssemos de arriscar naquilo que atrai tanta gente à música experimental da dinamarquesa Marie Louise Buch, diríamos que é a estranha familiaridade que conjura. As melodias imediatas e texturas envolventes elevam canções como “Well bucket” e a noturna “High speed calm air tonight”, assemelhando-se vagamente a alguma música de guitarra dos anos 90. “River mouth” em particular, reservada para o encore do concerto, chega a puxar ao grunge. Canções como essas são intercaladas com interlúdios instrumentais francamente alternativos, num espírito que transborda para as demais canções e eleva-las para lá de pastiche “noventeira”. Aliás, nada há de redundante na música de ML Buch, que já soa inconfundivelmente sua — algo a destacar para alguém que apenas lançou dois longas-durações até à data.
Neste concerto, fez-se acompanhar do multi-instrumentista Oliver Laumann, que usou o seu kit de bateria para adicionar uma qualidade táctil a canções como “Pan over the hill”, que abre o seu elogiado disco de 2023, Suntub. Esta ficou mais rica com essa camada de percussão, fazendo-nos descobrir na música uma ginga de hip-hop que não havíamos notado na versão de estúdio. “Fleshless hand” tornou-se mais sedutora com o som aumentado dos bongós; aliás, a certa altura quase esperávamos ouvir “Smooth Operator” em vez da doce e soalheira canção de Suntub. A essência naturalista das canções desse álbum não se perdeu ao vivo, apesar do som ligeiramente estridente que parecia propositadamente misturado dessa forma para aumentar o seu impacto.
Mas nem do seu segundo disco se fez todo o concerto. Aliás, as celebrações mais efusivas do público faziam-se sentir quando Marie Louise se atirava às canções de Skinned, o seu disco de estreia. Entre elas, ouviu-se o R&B alienígena de “Can’t Get Over You With You”, o instantaneamente reconhecido interlúdio melódico “O” e aquela que é talvez a sua canção mais emblemática, a futurista “I’m a Girl You Can Hold IRL”. O equilíbrio entre os dois discos revelou duas facetas do concerto não tanto opostas como complementares — uma mais digital e focada na tecnologia, e outra mais bucólica e orgânica, à semelhança daquilo que havíamos experienciado durante a performance de Adriana João. Em vez de se repelirem e causarem estranheza pela disparidade de tópicos e sons, cada vertente parecia simplesmente a progressão natural da outra, coexistindo harmoniosamente no alinhamento do concerto.
“Vamos lá fazer o encore“, disse depois da saída e regresso ao palco mais rápidos de que há memória, dado que Marie Louise e Oliver nem chegaram a entrar nos bastidores, sem poder ignorar os aplausos efusivos do público. Para além da já mencionada “River mouth”, o encore contou ainda com a belíssima balada “Working it out”, para a qual a estrela da noite ficou sozinha em palco. Uma canção sobre ternura, cuja esparsa melodia de guitarra nos permite focar na belíssima letra que termina com a exortação “Your body can care for another”. É uma mensagem bonita que ficou a ecoar na nossa mente muito depois de o concerto ter terminado.
Fonte: https://comunidadeculturaearte.com/o-futurismo-e-o-bucolismo-na-musica-de-ml-buch/