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Uma decisão da Justiça Federal do Distrito Federal abriu caminho para a anulação de ações penais remanescentes e de condenações da Operação Zelotes, que apurou, em 2015, denúncias de um esquema bilionário de corrupção na Receita Federal e no Conselho de Administração de Recursos Fiscais (Carf), órgão colegiado do Ministério da Fazenda.
O juiz Antonio Claudio Macedo da Silva, da 10ª Vara Federal Criminal do Distrito Federal, declarou como falso um Relatório de Inteligência Financeira (RIF) do Conselho de Controle de Atividades Financeiras (Coaf) que mostrava movimentações atípicas em maio de 2005. A decisão é de novembro, mas ainda não havia sido divulgada. A Coluna do Estadão teve acesso ao documento que já gerou, inclusive, os primeiros movimentos das defesas.
O relatório do Coaf considerado falso serviu de base para o início de investigações da Polícia Federal, para medidas cautelares como quebras de sigilo e para outras apurações. Com a falsidade declarada, réus já pressionam pela paralisação de processos e pela anulação de condenações.
O argumento das defesas é inspirado na “teoria dos frutos da árvore envenenada”. Em síntese, a tese jurídica sustenta que, se houve um erro no início, tudo decorrente desse erro está obrigatoriamente comprometido e precisa ser descartado.
O Ministério Público Federal (MPF) recorreu ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em dezembro, contra a declaração de falsidade do relatório. Procuradores consultados discordam da tese de que a eventual nulidade do RIF comprometa todas as ações penais remanescentes, mas vislumbram, como efeito prático da decisão, ameaças ao andamento dos trabalhos.
O imbróglio está relacionado ao registro de uma operação de R$ 2,8 milhões anotada como atípica na conta da SBS Consultoria Empresarial mantida no Bradesco. A empresa era de Jorge Victor Rodrigues. Ex-conselheiro do Carf, ele é réu em cinco ações penais da Zelotes com acusações de crimes como corrupção ativa e passiva. Em duas delas, foi condenado à prisão, em primeira instância, e recorre em liberdade.
Foi a defesa dele que solicitou à 10ª Vara Federal o reconhecimento do RIF como falso. Com a decisão favorável, solicitou, na última segunda-feira, 17, a anulação das cinco ações penais.
“Como todas as demais provas foram derivadas da prova ilícita, estamos usando a teoria dos frutos da árvore envenenada, que tem ampla aceitação perante os tribunais superiores. Sequer havia justa causa para instauração de ação penal”, afirmou o advogado Eduardo de Vilhena Toledo, à Coluna do Estadão.
Ao declarar a falsidade do documento, o juiz Antonio Claudio Macedo da Silva se baseou na falta de “suporte fático” da movimentação atípica apontada e, ainda, em uma “evasividade inadmissível” do Coaf ao não apresentar explicações sobre inconsistências questionadas por um dos réus – e reforçadas pelo banco.
Em nota, o Bradesco o informou que “exerce suas atividades em conformidade com as regras e diretrizes legais, e não comenta os casos que estão sob avaliação do Judiciário”.
O problema detectado é que o valor mencionado no RIF não aparece no extrato bancário, apesar de os relatórios de inteligência serem produzidos a partir de dados gerados pelos bancos. E até hoje nunca surgiu uma explicação definitiva sobre o episódio.
“Resta evidente sua incapacidade [do Coaf] de admitir que algum problema ocorreu em seus registros ou, então, algum equívoco foi cometido, culposamente, na emissão do RIF”, destacou o juiz. “Optou o Coaf pelo esprit de corps, por respostas evasivas e sem nenhum conteúdo objetivo, revelando que esse órgão necessita urgentemente de uma reflexão interna, a ser promovida pela autoridade monetária, no caso, o Banco Central do Brasil.”
Em nota, o Coaf afirmou que “atende as determinações judiciais que lhe são dirigidas fornecendo objetiva e precisamente o que é indicado nos termos dessas determinações” e que não cabe ao órgão “tecer juízo de valor sobre o conteúdo de decisões judiciais”.
O vaivém da discussão jurídica sobre veracidade do relatório
O ex-conselheiro do Carf Jorge Victor Rodrigues argumenta na Justiça, há quase dez anos, que o RIF é falso porque a transação questionada não aparece no extrato bancário da empresa dele. O registro seria fruto de um erro cometido pelo banco ou pelo Coaf. Em paralelo, a defesa pediu na 6ª Vara Cível de Brasília, em 2017, para que o próprio banco explicasse como detectou e informou ao Coaf a movimentação suspeita de R$ 2,8 milhões.
A Justiça atendeu o pedido e o Bradesco, em 2018, anexou “telas que comprovam que a transação financeira não ocorreu”. Depois, em 2019, o banco afirmou que “a operação relatada no Coaf não consta no extrato da conta do autor, bem como o valor mencionado não constou em nenhuma operação”.
O contexto é sensível porque a Zelotes atingiu quatro executivos do próprio Bradesco investigados por pagamentos indevidos a membros do Carf e da Receita para isenção bilionária de impostos. Eles foram absolvidos ou tiveram processos trancados por “falta de justa causa”.
O Ministério Público Federal (MPF) recorreu ao Tribunal Regional Federal da 1ª Região, em dezembro, contra a declaração de falsidade do relatório. O argumento central é o de que a omissão do Coaf na apresentação dos esclarecimentos não pode servir de justificativa.
“Não obstante a recalcitrância do Coaf em atender especificamente os comandos do juízo, é certo que não se pode utilizar da omissão para fazer valer uma presunção que não possui respaldo na ordem jurídica”, frisou.
A discussão jurídica sobre a veracidade do relatório é um vaivém. O juiz anterior do caso, Vallisney de Souza Oliveira, havia negado o pedido de Jorge Victor Rodrigues para declarar falso o RIF. Ainda em 2022, a defesa recorreu ao TRF-1, que determinou a elaboração de uma nova sentença no primeiro grau com base em esclarecimentos que deveriam ser solicitados ao Coaf.
Os esclarecimentos, conforme requeridos, não foram enviados. E novo responsável pelos processos da Zelotes na 10ªVara, o juiz federal Antonio Claudio Macedo da Silva decidiu, em novembro de 2024, alegando omissão do Coaf.
O MPF considera que o entendimento do magistrado não aplica o que fora determinado pelo TRF-1.
“Caberia ao juiz, valendo-se do seu poder geral de cautela, determinar medidas indutivas, coercitivas e sub-rogatórias para obter os documentos de movimentação bancária, nos moldes da decisão da 4ª Turma do TRF-1″, sustentou a Procuradoria em uma nova manifestação, do início deste mês de fevereiro.
Procurado, o juiz Antonio da Silva disse que não tem obrigação de explicar suas decisões à imprensa.
Outro condenado na Zelotes pede paralisação da ação penal
No último dia 12 de fevereiro, a defesa de outro acusado, Eduardo Cerqueira Leite, pediu a paralisação da ação penal a que responde no chamado “caso Bradesco”. Entre os argumentos, pontuou que o juiz de primeiro grau precisa se manifestar sobre a nulidade do relatório de inteligência do Coaf porque há “questões de ordem pública, que devem ser analisadas imediatamente e são prejudiciais ao próprio andamento da ação penal”.
Auditor da Receita, Cerqueira Leite era chefe na Delegacia Especializada em Instituições Financeiras de São Paulo e foi acusado de levantar informações sigilosas do banco para em seguida oferecer soluções que ele mesmo implementaria na Receita, em troca de vantagens. De acordo com a denúncia, ele atuava em conjunto com Jorge Victor Rodrigues, do Carf.
O então conselheiro teria operado dentro do órgão em favor dos interesses do grupo e das empresas investigadas. Em agosto de 2022, Jorge Victor foi condenado a nove anos de prisão, em primeira instância no “caso Bradesco”. Eduardo Cerqueira, a dez anos e um mês. Só nessa ação há outros quatro condenados. Eles recorrem em liberdade.
Ao todo, a Operação Zelotes resultou em cerca de 20 ações penais.
O que é Operação Zelotes?
Deflagrada pela Polícia Federal em 2015, a Operação Zelotes inicialmente apurava suspeitas de um esquema de compra de decisões no Carf, que é a última instância administrativa para o julgamento de autuações da Receita Federal a empresas e pessoas físicas. O objetivo do esquema seria vender, por meio de conselheiros e auditores, informações privilegiadas e facilidades que pudessem resultar na reversão de multas discutidas no Carf.
Com desdobramentos, a operação foi ampliada e virou um guarda-chuva para grandes investigações sobre suspeitas de corrupção que atingiram grandes personagens da República. O ex-ministro Antonio Palocci foi uma testemunha nas investigações. O ex-ministro Guido Mantega virou réu, mas o caso dele acabou prescrito.
O caso da venda de uma Medida Provisória para favorecer montadores de veículos no segundo governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), em 2009, também acabou entrando no escopo da Zelotes. A denúncia foi publicada pelo Estadão em outubro de 2015.
Lula chegou a virar réu nesse caso por suposto tráfico de influência, mas foi absolvido em 2021 depois de a Justiça entender que a acusação não demonstrou de maneira convincente o envolvimento dele.
Até um filho de Lula virou réu, junto com o pai, em um processo que apontava tráfico de influência na compra de caças suecos pelo governo brasileiro. O caso das aeronaves foi suspensa pelo então ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), Ricardo Lewandowski, em 2022.
A decisão permitiu que Lula disputasse as eleições daquele ano sem responder a ações penais na Justiça. Lewandowski, hoje ministro da Justiça do governo Lula, entendeu que procuradores do DF agiam de forma articulada com membros da Lava Jato. Ele se baseou em trocas de mensagens da força-tarefa de Curitiba que acabaram vazadas por hackeamento.
Apesar dos dez anos desde a deflagração da Zelotes, ainda há ações sem julgamento e sem trânsito em julgado.
Com informações do jornal Estado de São Paulo, Estadão, Coluna do Estadão
Fonte: https://agendadopoder.com.br/decisao-da-justica-federal-pode-abrir-caminho-para-anular-operacao-zelotes-ao-declara-falso-relatorio-do-coaf/