30 de junho de 2025
A Eurovisão como reflexo político e social
Compartilhe:




DR

Para muitos trata-se só de um festival que dá primazia ao fogo de artifício, música popular sem qualidade e valor artístico dúbio: um concurso que valoriza mais a performance, as luzes do palco e os confetis, ao invés da qualidade musical.

Para outros, a Eurovisão, apesar de tudo, foi sempre um espaço que deu lugar à diversidade, ao diferente, funcionando por essa razão, muitas vezes, como um meio, um canal para se mandar uma mensagem sobre o curso político e social da contemporaneidade, tanto de forma direta como de forma camuflada, ou Portugal não tivesse enviado a “Tourada” de Fernando Tordo em 1973, um ano antes do 25 de Abril. Há ainda quem não goste da Eurovisão mas vê só por causa daquele artista ou daquela música especial que adorou — afinal, é sempre possível encontrar uma pérola ou outra — e outros haverá ainda que criticam o sistema de votação. Os restantes perguntam, mas porque é que há países não europeus num festival de música popular europeia? Independentemente do que se possa achar, a verdade é que este festival já nos acompanha desde 1956 e, em mais de meio século, 69 anos de existência, acompanhou mudanças sociais, políticas e pôde testemunhar, em primeiro plano, a forma como a sociedade se transformou. Posto isto, há ainda quem se pergunte se se o lado político e social se deve manter afastado de um concurso musical decidido também pelos votos do público, uma vez que propicia a que a celebração da música fique relegada para segundo plano e a que já se saiba quem vai ganhar de antemão o concurso. Mas será que é possível evitar que isso aconteça quando, muitas vezes, as pessoas sentem que um concurso como este é uma das formas que têm de enviar uma mensagem para o resto do mundo? E atualmente, qual é o papel da Eurovisão? Será que é imune ao que se passa na sociedade, ou a história contemporânea, tanto política como social, encontra sempre uma forma de marcar presença no concurso? 

O Festival da Canção e Eurovisão como testemunhos do avanço da sociedade. 

Vamos começar pelo caso português. Historicamente, os três F’s do Estado Novo dizem respeito a “Fátima”, como símbolo da religião, em conjunto com o futebol e o fado, como símbolos da cultura de expressão popular. Importa explicar que é do interesse dos regimes ditatoriais, tal como aconteceu com o Estado Novo, apropriarem-se das manifestações artísticas ou desportivas populares como forma de manipulação e controlo, evitando assim que estas mesmas expressões se transformem numa arma contra o regime. O Festival da Canção, curiosamente, também funcionaria bem como um quarto F, uma vez que o país parava para ver o concurso, sem que importasse o resultado na final europeia. No dia seguinte ao “Festival da Canção”, seguramente as conversas por todo o país centrar-se-iam no tema vencedor que todos passariam a conhecer. É impossível relembrarmos os anos 60 e 70 sem as músicas do “Festival da Canção” e, verdade seja dita, mesmo vivendo sob o signo de uma ditadura, o festival não deixou, por isso, de ter os seus momentos de disrupção. “Quem faz um filho fá-lo por gosto”, cantou Simone de Oliveira a plenos pulmões na sua “Desfolhada”, em 1969, num poema escrito pelo indomável Ary dos Santos, poeta de canções porque acreditava que os seus poemas eram para ser ditos e cantados pelas pessoas, não só as mais eruditas, mas pela população em geral. Proporcionou assim que tal frase indecorosa marcasse uma geração que ansiava por maior abertura e chocasse outra parte da população que considerava tal verso um sacrilégio. 

Mas não é só. A história da “Revolução dos Cravos” está intimidante ligada ao Festival da Canção tanto pela mensagem anti-regime velada em a “Tourada”, que venceu o concurso  em 1973, um ano antes do 25 de Abril,, como pelo facto da canção “E Depois do Adeus”, de Paulo de Carvalho”, a vencedora do ano de 1974, ter servido como primeira senha para a revolução que findou com a ditadura portuguesa de 48 anos, se contarmos com a ditadura militar de 1926. Em 2011, quando o plano da Troika entrou em vigor em Portugal, em plena crise dos países do sul europeu, “Os Homens da Luta”, com Gel e Falâncio, foram escolhidos para representarem Portugal na Eurovisão que, nesse ano, teve lugar, nem mais nem menos, do que na Alemanha, Dusseldorf, com a música de protesto “A Luta é Alegria”. Portugal não passou à final, mas com o país em crise e quando não acreditávamos que pudéssemos realmente ganhar, então mais valia mandar algo que transmitisse, de forma humorística e descontraída, em plena Alemanha de Merkel, aquilo porque Portugal estava a passar. Como breve nota, 2011 foi o ano em que Pedro Passos Coelho se tornou Primeiro-Ministro, depois do então PEC-IV apresentado pelo PS de José Sócrates ter sido chumbado pelo parlamento e, consequentemente, o país ter ido para eleições antecipadas. De alguma forma, o facto do país ter enviado os “Homens da Luta” para a Eurovisão representa bem uma das formas que o país tem de olhar para este concurso: “já que não é para ganhar [a única vitória foi em 2017] então vamos enviar uma música que tenha ao menos algum significado para nós.” 

No ano passado, Portugal voltou a ser político quando Iolanda, na final, pintou as suas unhas com keffiyehs da Palestina, aludindo assim ao conflito israelo-palestiniano. Surpreendentemente, a organização decidiu censurar as imagens da artista nas redes sociais, optando por publicar fotografias da actuação de Iolanda na primeira semi-final, uma vez que as unhas estavam pintadas de branco. 

A União Europeia de Radiodifusão (EBU-UER) 

Mas quando se fala na participação de Israel e Austrália, afinal porque é que estes estados participam num concurso musical chamado “Eurovisão”? O critério para os países que participam ou não no Festival Eurovisão da Canção não depende da localização geográfica mas, sim, se são ou não integrantes da UER (União Europeia de Radiodifusão) ou EBU, como também é conhecida em inglês (European Broadcasting Union), responsável pela organização anual do evento. Sem nada a ver com a União Europeia, este grupo, criado em 1950, tinha como objectivo criar uma aliança que facilitasse a colaboração entre os media audiovisuais, televisão e rádio de serviço público do espaço europeu com integrantes, também, do norte de África, países mediterrâneos da costa oriental e parte ocidental da Ásia. Estes constituem os membros ativos e fazem parte da denominada “Área Europeia de Radiodifusão”, definida pela União Internacional de Telecomunicações, agência das Nações Unidas para as telecomunicações. Israel participa, assim, na Festival Eurovisão da Canção por estar na costa oriental do mar mediterrâneo. Quanto à Austrália, trata-se de um membro associado da UER, convidado a participar como convidado especial em 2015, aquando da celebração dos 60 anos da Eurovisão. Desde então, tem participado todos os anos visto fazer parte da UER. 

Algumas das polémicas de Israel e Rússia

Netta ganhou a Eurovisão em 2018 com o tema Toy que, diga-se, tinha tudo para agradar ao público eurovisivo, com uma mensagem de empoderamento feminino e com o aviso de que uma mulher é mais do que uma convenção social de beleza, embrulhada numa melodia chamativa, orelhuda e divertida. A música ganhou na final em Portugal, um ano após Salvador Sobral ter ganho, mas a artista agradeceu e despediu-se do público da seguinte forma: “Vemo-nos em Jerusalém”, o que se torna problemático se tivermos em conta que a artista foi militar da marinha e esteve colocada na faixa de gaza. Na verdade, quando Israel ganhou o concurso pela primeira vez, em 1978, com a canção Abanibi, foi Jerusalém que recebeu o festival no ano seguinte. Voltaria a ganhar uma segunda vez consecutiva em 1979, mas em 1980 já não foi Jerusalém a receber o evento. Ao invés de Israel, o festival teve lugar em Haia, nos Países Baixos. Segundo a justificativa dada, não podia suportar financeiramente duas Eurovisões seguidas, além de haver uma forte contestação de países árabes. Relembre-se que embora para Israel a sua capital seja Jerusalém, para a comunidade internacional, o reconhecimento da capital de facto recai sobre Telaviv onde estão a maioria das embaixadas. Em 2018, no entanto, e de forma inédita, é que os Estados Unidos, já presididos por Trump, decidiram alterar a embaixada para Jerusalém, reconhecendo-a como capital. 

No ano passado, e antes de passarmos para a polémica deste ano, Israel foi mesmo obrigada a modificar o nome da sua canção concorrente, que originalmente se chamava “October Rain”, para “Hurricane”, por o título da canção ser demasiado explícito face aos ataques do Hamas de outubro de 2023. A letra chegou mesmo a ser analisada pela UER, estando em destaque os versos, “já não há ar para respirar” e “eram todos bons miúdos, cada um deles”, por parecerem fazer referência, mais uma vez, ao ataque do festival “Supernova”, o que levou a reacções do presidente e do Ministro da Cultura a defenderem a presença de Israel na Eurovisão, com a ameaça de abandonarem o festival, caso a música fosse rejeitada. Vários artistas europeus chegaram a pedir a expulsão de Israel do certame por causa da sua conduta e dureza da sua resposta desproporcional mas, como contra resposta, mais de 400 personalidades de Hollywood assinaram uma carta em defesa da permanência do território do médio oriente permanecer no concurso, alegando que não foi Israel que começou com os ataques. Israel participou no concurso, com a justificativa de que “é um concurso para as emissoras — não para governos — e a emissora pública israelita participa no concurso há 50 anos”.

Mas Israel não é o único país polémico na Eurovisão. A Rússia, ano após ano, tem gerado apupos constantes por parte do público eurovisivo, tanto pela invasão da Crimeia e guerra na Ucrânia, como pela política anti lgbt, o que desagrada em pleno o público da Eurovisão. Já em 2013, com a aprovação de uma lei no parlamento russo declaradamente anti-lgbt, e com declarações do governo declaradamente desrespeitosas para com a comunidade, a UER enviou uma carta de advertência ao país a advertir para as normas do concurso serem respeitadas. O mesmo país que levou ao festival, em 2003, o duo feminino t.A.T.u., já com reconhecimento internacional na altura, e que chocava por trocarem beijos em plenas atuações e vídeos, como no caso de “All the things she said”. 

Um dos pontos altos da crispação da comunidade LGBTQIA+, os valores do público da eurovisão e o conservadorismo russo chegou a ter o seu ápice quando Conchita Wurst, drag queen austríaco, venceu, em 2014, a Eurovisão, o que não caiu nada bem ao kremlin que nesse ano tentou, também, que os votos da Crimeia seguissem em conjunto com os votos russos, embora se tivesse decidido que seguiram com os votos da Ucrânia. 

As afrontas eurovisivas ao governo russo seguir-se-iam em 2016 e em 2022, com as vitórias da Ucrânia. Em 2016, a cantora Jamala, de origem tártaro-crimeia, conquistou o primeiro lugar com a canção “1944”, que aborda a deportação forçada dos tártaros da Crimeia pela União Soviética durante o regime de Josef Stalin. A música foi inspirada na história pessoal da bisavó de Jamala, que perdeu uma filha durante essa deportação .

A atuação de Jamala na final, realizada em Estocolmo, Suécia, em 14 de maio de 2016, destacou-se pela sua intensidade emocional e pela inclusão de versos em tártaro da Crimeia — a primeira vez que a língua foi ouvida no palco da Eurovisão. A Ucrânia venceu com um total de 534 pontos, superando a Austrália, com 511 pontos, e a Rússia, com 491 pontos.

A vitória gerou reações mistas. Na Ucrânia, foi celebrada como um momento de orgulho nacional e um reconhecimento internacional da história e sofrimento dos tártaros da Crimeia. Em contraste, na Rússia, criticaram a canção, alegando que ela violava as regras da Eurovisão ao conter mensagens políticas. No entanto, a UER declarou que a música não infringia as regras, pois referia-se a eventos históricos e não a situações políticas atuais. 

Já em 2022, temos então a vitória da Ucrânia em plena invasão russa, sendo esse o mesmo ano em que a Rússia acaba por ser banida da Eurovisão. Segundo o comunicado da UER, “A inclusão de uma participação russa no concurso deste ano traria descrédito à competição”. 

Curiosamente, o Reino Unido recebeu também zero pontos tanto por parte do júri como por parte do público na Eurovisão em 2021, após a sua saída formal da União Europeia, em 2020, o que causou bastante debate.

A Eurovisão de 2025. O que está em causa? 

A Eurovisão de 2025 não escapa nem ao clima político, nem à polémica da sua organização e sistema de votação. Mas foquemos, em primeiro lugar, a polémica em torno do clima político que tem, mais uma vez, Israel no centro. A concorrente,de nome Yuval Raphael, foi uma das sobreviventes do ataque ao festival Supernova em 7 de outubro de 2023, facto esse que, aliado a uma canção que aborda o conceito de esperança de que um novo dia irá chegar e que não estamos sozinhos no nosso sofrimento e choro, faz crer de que se trata de uma forma de limpar a imagem de Israel e aligeirar toda a sua campanha militar em Gaza, que resultou em mais de 60.000 mortos. Como forma de travar a participação de Israel, mais 70 ex-participantes da Eurovisão, entre os quais Salvador Sobral, divulgaram uma carta aberta a pedir à UER a exclusão da participação da emissora israelita KAN. Sem efeito, com a alegação de que o Festival da Eurovisão da Canção não é um evento político, Israel vai mesmo participar. Quanto à posição da RTP, o Comité de Solidariedade com a Palestina já fez saber que a RTP recusou um pedido de reunião para o apelo  da exclusão de Israel do Festival Eurovisão 2025.  Segundo a justificação de Nicola Santos, o presidente do Conselho de Administração, “a Eurovisão é um evento não político e a RTP tem acompanhado a evolução da situação em Israel e na Faixa de Gaza”. Como curiosidade, as apostas da Eurovisão apontam Israel como um dos preferidos à vitória, constando em quarto lugar. 

Este ano participa também o rapper vanguardista Tommy Cash, da Estónia, com a canção “Espresso Macchiato”, que tem gerado polarizações entre os que olham para esta música como apropriação cultural dos estereótipos italianos e, por isso mesmo, uma forma de desrespeito para com um povo tentando-o ridicularizar, e entre os que olham para este tema apenas como uma crítica bem humorada ao mundo globalizado em que se acha “elegante” fingir ser-se de uma outra cultura, como o Dâmaso de Eça quando misturava o seu francês com o português sem, no fundo, perceber ou absorver bem essa mesma cultura. Afinal, basta reparar nas inúmeras páginas de instagram claramente direcionadas para turistas que prometem ensinar línguas e mostram como é tão apetecível imitarem-se os costumes de um país turístico in como Itália, França, ou outro local cliché do ponto de vista turístico. O absurdo que há em Tommy Cash, e quem o segue de início sabe como o seu lado absurdo, dadaísta pode ser levado ao extremo ao mesmo tempo que é  provocatório ou chocante, nem sempre deixa perceber de forma clara ao que vem como é o caso desta canção que tem frases como, “Mi like to fly privati/ With twenty-four carati/Also mi casa very grandioso/ Mi money numeroso/ I work around the clocko/That’s why I’m sweating like a mafioso”, numa clara alusão ao mundo ostensivo actual. 

Apresenta-se com o símbolo do dólar desenhado numa mão e, na outra, com o símbolo do euro. Usa um fato formal, com o pormenor de uma gravata vermelha bastante longa que, sem se ter a certeza, só se pode suspeitar que é uma clara alusão a Trump, enquanto o próprio só afirma o quanto ama a Itália. No entanto, se por um lado a gravata pode fazer pensar em Trump, o que não deixa de ser plausível porque é um símbolo que se utiliza quando se quer caricaturar o presidente estadunidense, por outro lado não deixa de ser curioso a camuflagem da Itália de Meloni que tem boas relações com Trump. A verdade é que também pode ser uma brincadeira com a Eurovisão, já que protagonizou uma colaboração com Joost Klein, representante dos Países Baixos na Eurovisão do ano passado com a música “Europapa”, mas que acabou por ser desclassificado. O tema com Joost, “United By Music”,  remete para o tema da Eurovisão deste ano com versos não só alusivos a Trump mas também à UER, numa clara sátira.  Ou seja, estamos perante alguém em que nada é o que parece ser. 

Quanto aos portugueses Napa, com “Deslocado”, a sua vitória esteve envolta em polémica uma vez que a canção que ficou em primeiro lugar pelo votos do público, de Henka, não recebeu nenhuma votação do júri, o que impossibilitou a sua vitória. Há, por isso, quem defenda que o sistema de votação, dividido entre os 50% do público e os 50% do júri, deve ser repensado. Embora também seja preciso dizer-se que apesar de “Deslocado” não ter sido a canção vencedora pelo público, acabou por ficar logo em segundo lugar.  Relembramos também o facto de que na “Turquoise Carpet”, a cerimónia de abertura da Eurovisão, a entrada da delegação Portuguesa foi a única a não ser transmitida para casa. A Eurovisão tem história e a história continua a precisar de ser contada. Pode ser kitsch, pode ser má, pode ser boa e pode ser tudo aquilo que quisermos fazer dela. É o espelho histórico e social do que nós somos, e é impossível retirar a sociedade daquilo que a Eurovisão é.

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.

Fonte: https://comunidadeculturaearte.com/a-eurovisao-como-reflexo-politico-e-social/