27 de junho de 2025
“Na minha música, quis ter sempre o equilíbrio entre algo
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Allysha Joy / DR

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Mais um verão a caminho e isso prenuncia mais um Matosinhos em Jazz a chegar. Para o elenco deste ano, para lá dos cabeças-de-cartaz Mansur Brown e Amaro Freitas, teremos outros talentos emergentes na calha, como o escocês corto.alto ou a australiana Allysha Joy. Sobre esta, falamos de, mais do que uma cantora e artista de plenos poderes, uma poeta, uma declamadora. Falamos de alguém que faz o seu percurso a solo após estar num grupo de seu nome 30/70, um coletivo que se mostrou híbrido entre o hip-hop, o jazz e o R&B. Igualmente, este ano, uniu esforços com o teclista Finn Rees (também membro dos 30/70) e ao produtor Hidden Spheres para consumar o trio Joy Spheres Rees em “SOLINA”, com uma textura eletrónica e de soul e R&B.

Neste momento, a australiana traz já 3 álbuns em nome próprio (“Acadie: Raw”, de 2018, pela Gondwana Records, e “Torn: Tonic”, de 2022 e “The Making of Silk”, de 2024 (onde apresenta o seu emancipador estado de graça “Stay”), já na chancela da First World Records. A intérprete consolida-se como um dos nomes grandes do jazz do seu país, escapando à tendência da diáspora dos seus compatriotas no Reino Unido e fixando-se, ainda, na gigante ilha da Austrália. Nesta sua primeira vinda a Portugal, a energia positiva e o jazz híbrido de funk, R&B e soul que Allysha Joy traz será, seguramente, um cardápio bastante diferenciado naquela que é a ementa do Matosinhos em Jazz deste ano.

Fotografia de Jess Brohier

Um misto de Jill Scott, de D’Angelo, de Amy Winehouse, da sua conterrânea Nai Palm (e dos seus Hiatus Kayote) e dos Moonchild, de um R&B bem ritmado e com um poder vocal substancial. Tendo isso em conta, não poderíamos rejeitar uma entrevista àquela que é um dos talentos mais ocultos nos olhos do público português neste mundo imenso do jazz, embora já com bastante fulgor no Reino Unido e nos Estados Unidos da América, referenciada por nomes de nomeada, como o cantor Jamie Cullum e o DJ Gilles Peterson.

Como é que começou o teu caminho pela música?

Eu comecei a cantar na igreja com a minha família, assim que pude ir lá, desde bebé que frequentava a igreja e envolvia-me com a sua música. Depois, quando tinha cerca de 14 anos, comecei a cantar na igreja e envolvi-me muito com o jazz e a música gospel. O meu pai mostrou-me muito jazz tradicional e swing, e eu realmente envolvi-me nisso. E depois foi só quando acabei a escola que comecei realmente a pensar em aprender piano, e aprendi piano sozinha, aprendi produção. Aprendi música sozinha, na verdade. Tive alguma espécie de ajuda para aceder aos sons, mas depois a aprendizagem veio realmente da minha própria motivação e através do encontro com os 30/70 e da aprendizagem com os rapazes da banda.

De onde surgiu a oportunidade de te juntares ao grupo 30/70?

O grupo começou como um grupo instrumental e eu conheci o baterista, o Ziggy Zeitgeist, numa jam session de jazz. Ele estava a tocar e eu levantei-me e cantei com eles. Foi aí que ele me convidou para uma jam session e eu juntei-me à banda quando eles estavam a fazer o primeiro álbum deles [“Cold Radish Coma”, de 2015]. Eles foram a equipa mais solidária e mais bonita com quem trabalhar, por isso, estou muito grata por isso. Isto foi há cerca de 10 anos.

E qual foi o grande estímulo para quereres percorrer um caminho a solo?

Eu só queria continuar a aprender. Quero continuar a aprender o tempo todo. Estou constantemente a testar diferentes estilos de música e, às vezes, sou DJ, produzo, trabalho como engenheira de som, estou a aprender percussão. Acho que, para mim, começar o meu próprio projeto a solo foi apenas uma oportunidade de continuar a aprender e de me oferecer diferentes oportunidades. Foi quando comecei a tocar piano que entrei para a banda, e acho que isso me deu a oportunidade de tocar sozinha quando os meus colegas da banda não estavam disponíveis ou estavam a fazer outras coisas. Isso estava a permitir-me mais liberdade e mais espaço para continuar a aprender e, talvez, agora seja um espaço também para realmente dizer coisas que são realmente íntimas, apenas para a minha expressão pessoal. Acho que a minha música se tornou esse espaço, enquanto o 30/70 é uma energia um bocadinho diferente, é um pouco mais sobre dança. É mais livre, mais livre para circular.

Pelo meio, já trabalhaste com grandes elencos do UK jazz, como os KOKOROKO ou os Ezra Collective. O que trouxeste dessas colaborações para o teu percurso a solo?

Sim, com a oportunidade de ir ao Reino Unido e à Europa, e agora de me aventurar um pouco pelos Estados Unidos, estou sempre muito interessada – especialmente como uma pessoa branca que faz música soul e música inspirada no jazz – em continuar a investir na comunidade, continuar, novamente, a aprender sobre a origem desta música e a colaborar dessa forma. Não apenas a participar, essencialmente, mas a investir realmente na comunidade. Ouço muito isso de bandas como os Ezra Collective e os KOKOROKO e e acho que isso é muito do que os 30/70 eram no início. É simplesmente uma comunidade, uma colaboração e um coletivo, e trazer isso, dar continuidade a essa energia na minha carreira musical, trouxe-me muita alegria e paixão contínua pela música. É fácil deixarmo-nos levar por todas as outras coisas que se tornam aparentes, especialmente quanto mais se faz música, mas realmente continuar a pensar sobre o porquê de estar a fazer aquilo. Acho que estar perto de outras pessoas que estão na mesma jornada é bonito, sim.

Allysha Joy / DR

Ao contrário de muitos grandes artistas do teu continente, como o Jordan Rakei, continuaste a estar muito na Austrália. Qual foi a razão de o fazeres e de não partires à aventura para a cena de Londres, como os teus conterrâneos?

Sabes, os meus amigos brincam e dizem que vivo no Terminal 4 do aeroporto, porque estou sempre a viajar e não tenho casa neste momento, mas tenho vivido assim nos últimos anos. Sacrifiquei essa estabilidade apenas pela oportunidade e pelo privilégio de viajar, criar, fazer música e fazer digressões. Portanto, sim, vivo em todo o lado e em lugar nenhum. Estou muito grata pelas oportunidades que me foram oferecidas por pessoas como Bradley Zero no Reino Unido, que faz parte da Rhythm Section [editora musical]. Na altura, ele veio primeiro para a Austrália e estava a contratar outras bandas australianas e encontrou-nos, aos 30/70. E, ao longo da viagem, também quis sempre dar oportunidades a outros artistas australianos e continuar essa colaboração, sem me afastar dessa cena. Isto porque acho que o que faço é tão inspirado pela vida na Austrália, pela paisagem australiana e pelos músicos australianos que seria errado para mim não oferecer oportunidades a esses artistas ou continuar a colaborar com eles. Acho que é algo muito especial e único, e, acho que se me mudasse para Londres e trabalhasse apenas com artistas londrinos, então perderia o que é único na minha música e a sensibilidade que há nela.

Como caraterizas a cena musical aí de Melbourne? Similar à de Londres ou diferente?

Eu acho que é tão diferente. Quanto mais tempo passo nos dois mundos, mais acho que é diferente. E, por vezes, tenho dificuldade em trabalhar com artistas do Reino Unido, porque, como músicos, o nosso sistema nervoso, o nosso pensamento e os nossos ouvidos estão em sintonia com o ambiente que nos rodeia. E, em Londres, o ritmo de vida é muito acelerado, enquanto na Austrália é muito mais lento, é espaçoso. Apesar de ser de Melbourne, eu cresci fora da cidade, por isso, tenho uma ligação com a natureza que não existe aqui em Londres, não encontro aqui. E, depois, tudo isso transparece na música, e acho que há, inerentemente, essa amplitude e clareza na música australiana e essa franqueza e sinceridade que eu adoro na música australiana, e acho que é realmente diferente. Em Londres é tão diferente, acho que, às vezes, é difícil e rápido, alto e estridente. Também adoro todas estas coisas, mas é simplesmente diferente.

A tua música é muito vital, imersa num ambiente profundamente urbano e muito condimentado pela música eletrónica e pelo R&B. Sentes essa energia positiva a fluir na tua música?

Sim, definitivamente. Acho que é simplesmente uma questão de estar constantemente inspirado pelos sons que estão à minha volta e pelo que estou a consumir. É, também, por isso que adoro viajar, porque posso ir e passar algum tempo em Nova Iorque, por exemplo, onde tenho estado muito ultimamente, e espreitar a cena noturna de lá e os soundsystems. Em Nova Iorque, é realmente diferente, por exemplo, na cultura do soundsystem e na cultura do DJ, que são diferentes, mais uma vez, de Londres, e são muito diferentes de Melbourne, de onde eu sou originalmente. Portanto, sim, é como se eu estivesse constantemente a encontrar inspiração no movimento.

As tuas letras trazem, à boa maneira do soul, temas muito crus, mas às quais consegues dar alguma leveza, embora consigas também fazer dela fonte de uma emancipação. Sentes que a tua música é uma transmutação desses sentimentos mais duros e te emancipas a partir dela?

Sim, bem, obrigado por essa reflexão. Sim, acho que estou sempre a tentar escrever de uma perspetiva realmente pessoal, sabendo que muito do que é pessoal para mim é, na verdade, partilhado por todos nós. Todaa gente tem os mesmos medos, sentimentos realmente enraizados, e aquilo com que nos preocupamos é muito parecido com o dos humanos. Por isso, tento apenas ser o mais vulnerável possível, sabendo que, na verdade, isto é universal e partilhado. Portanto, é realmente libertador, nesse sentido, chegar a essa consciência e saber que, na verdade, nenhum dos meus medos é exclusivo meu, nenhum dos meus. Sim, nunca me sentir envergonhada ou muito vulnerável naquilo que estou a dizer, porque, sim, é partilhado. É um sentimento partilhado e acho que ter essa consciência faz com que pareça leve. É como se estivéssemos todos a viajar juntos por isso. Não estamos sozinhos nesta experiência. Portanto, sim, estes sentimentos podem ser pesados, mas o facto de estarmos a passar por isto juntos faz com que pareça mais leve, se é que isso faz sentido. Definitivamente. Mas também adoro música como, por exemplo, Marvin Gaye, que escreve sobre as realidades mais duras da sua vida, e, ainda assim, é cool. E isso foi algo que quis ter, na minha música, ter sempre o equilíbrio entre algo realmente comovente e algo que se possa ouvir e divertir. 

No geral, “The Making of Silk” traz uma grande inspiração literária para aquilo que escreveste. Queres contar-nos mais sobre esse percurso?

Sim, quer dizer, adoro ler. Eu leio muito e recebi muita inspiração de poetas e escritores e alguns dos escritores que realmente inspiraram “The Making of Silk” são pessoas como bell hooks, que escreveu este livro incrível chamado “All About Love”, que inspirou a ideia de redefinir o amor. James Baldwin foi uma grande inspiração, David White, que é um poeta incrível. Hafiz também inspirou uma das músicas do álbum chamada “Dropping Keys”; a Mary Oliver inspira o meu trabalho com frequência. Sim, há muitos. Neste momento, estou a ler um livro de Mahmoud Darwish, que é um poeta palestiniano e está a inspirar-me profundamente neste momento. Sim, adoro ler e adoro poesia. 

É um álbum que também bebe muito da tua ancestralidade coletiva, ou seja, dos povos indígenas australianos, nomeadamente os wurundjeri, da nação Kulin [no sul do país]. De que modo olhas para esta ancestralidade e a sua ligação com a tua arte?

Sim, é exatamente isso. São os antepassados ​​deste país em que cresci, porque sinto realmente que a minha música foi muito inspirada pelo privilégio que tive de crescer naquela terra e de estar em contacto com ela, quero sempre prestar a minha homenagem aos mais velhos do país. Penso que, em geral, especialmente na Austrália, onde a colonização ocorreu tão recentemente e continua a ocorrer naquelas terras, aproveito sempre a oportunidade, quando me estou a apresentar, para o reconhecer, e continua a ser uma bela aprendizagem para mim compreender a história daquele país e a história dos povos da chamada Austrália. Encorajo as pessoas a fazerem isso, não importa onde estejam no mundo, a pensarem no solo que estão a pisar.

Tens feito furor num país tão difícil e complexo como são os Estados Unidos. Qual tem sido o feedback da tua passagem por lá?

É interessante, é selvagem, é desafiante e acho que é realmente gratificante. Tenho muito respeito pela música que surgiu na América do Norte no último século, por isso, poder participar nisso, estar lá e absorver a história do jazz e do soul é uma bênção. Tem sido agradável, porque tenho viajado para a Europa e para o Reino Unido nos últimos oito anos, mais ou menos, ganhando impulso aqui e ali e depois começar do zero novamente nos EUA. Isso é ótimo, vou poder fazer toda essa viagem novamente. Vou ter a oportunidade, pouco antes de vir para Portugal, de tocar no Montreal Jazz Festival, o que será incrível. Foi sempre um grande objetivo meu tocar naquele festival, por isso, vai ser muito giro.

É a primeira vez que vens a Portugal. O que conheces deste país?

Vim passar férias a Lisboa, mas é a primeira vez que venho para tocar. Não sei muita coisa, sei coisas triviais, como as praias serem lindíssimas, há alguns artistas que adoro em Portugal, tanto pintores como músicos. 

E quem e o que vais trazer contigo para este concerto?

Vou trazer comigo o Yusuf Ahmed, que vai estar na bateria, e o Matt Gedrych, que vai tocar baixo. São dois artistas de Londres. A Margot Mool vai estar na percussão e nos backing vocals. Eu e o Finn Rees vamos estar no teclado. O Finn é outro artista da Austrália, também parte dos 30/70. Vamos tocar muitas músicas do meu mais recente álbum, “The Making of Silk”. Estou sempre a compor músicas novas, por isso, tenho algumas músicas novas que estou muita entusiasmado para tocar e que vou tocar. Também temos trabalhado muito com a música de Roberta Flack desde que ela faleceu, há alguns meses. Estou a gostar muito de aprender algumas das suas músicas e de aprender mais sobre ela como artista. Podíamos tocar uma música da Roberta e depois veremos. Gosto de manter a minha banda na ponta dos pés. Por vezes, basta colocar músicas novas.

O que podemos esperar do teu futuro?

Em breve lançarei algumas músicas que não entraram no mais recente álbum como parte da deluxe version. Também estou muito perto de terminar o próximo álbum. Em maio do ano passado, tive a oportunidade de gravar nos Abbey Road Studios com uma banda totalmente australiana. Na verdade, os membros do 30/70. Fomos para Abbey Road, o que foi uma loucura. Gravei algumas músicas e isso está quase terminado, portanto, isso sairá muito em breve.

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Fonte: https://comunidadeculturaearte.com/entrevista-allysha-joy-na-minha-musica-quis-ter-sempre-o-equilibrio-entre-algo-realmente-comovente-e-algo-que-se-possa-ouvir-e-divertir/