
Mais um verão a caminho e isso prenuncia mais um Matosinhos em Jazz a chegar. Para o elenco deste ano, para lá dos cabeças-de-cartaz Mansur Brown e Amaro Freitas, teremos outros talentos emergentes na calha, como o escocês corto.alto ou a australiana Allysha Joy. Sobre esta, falamos de, mais do que uma cantora e artista de plenos poderes, uma poeta, uma declamadora. Falamos de alguém que faz o seu percurso a solo após estar num grupo de seu nome 30/70, um coletivo que se mostrou híbrido entre o hip-hop, o jazz e o R&B. Igualmente, este ano, uniu esforços com o teclista Finn Rees (também membro dos 30/70) e ao produtor Hidden Spheres para consumar o trio Joy Spheres Rees em “SOLINA”, com uma textura eletrónica e de soul e R&B.
Neste momento, a australiana traz já 3 álbuns em nome próprio (“Acadie: Raw”, de 2018, pela Gondwana Records, e “Torn: Tonic”, de 2022 e “The Making of Silk”, de 2024 (onde apresenta o seu emancipador estado de graça “Stay”), já na chancela da First World Records. A intérprete consolida-se como um dos nomes grandes do jazz do seu país, escapando à tendência da diáspora dos seus compatriotas no Reino Unido e fixando-se, ainda, na gigante ilha da Austrália. Nesta sua primeira vinda a Portugal, a energia positiva e o jazz híbrido de funk, R&B e soul que Allysha Joy traz será, seguramente, um cardápio bastante diferenciado naquela que é a ementa do Matosinhos em Jazz deste ano.

Um misto de Jill Scott, de D’Angelo, de Amy Winehouse, da sua conterrânea Nai Palm (e dos seus Hiatus Kayote) e dos Moonchild, de um R&B bem ritmado e com um poder vocal substancial. Tendo isso em conta, não poderíamos rejeitar uma entrevista àquela que é um dos talentos mais ocultos nos olhos do público português neste mundo imenso do jazz, embora já com bastante fulgor no Reino Unido e nos Estados Unidos da América, referenciada por nomes de nomeada, como o cantor Jamie Cullum e o DJ Gilles Peterson.
Como é que começou o teu caminho pela música?
Eu comecei a cantar na igreja com a minha família, assim que pude ir lá, desde bebé que frequentava a igreja e envolvia-me com a sua música. Depois, quando tinha cerca de 14 anos, comecei a cantar na igreja e envolvi-me muito com o jazz e a música gospel. O meu pai mostrou-me muito jazz tradicional e swing, e eu realmente envolvi-me nisso. E depois foi só quando acabei a escola que comecei realmente a pensar em aprender piano, e aprendi piano sozinha, aprendi produção. Aprendi música sozinha, na verdade. Tive alguma espécie de ajuda para aceder aos sons, mas depois a aprendizagem veio realmente da minha própria motivação e através do encontro com os 30/70 e da aprendizagem com os rapazes da banda.
De onde surgiu a oportunidade de te juntares ao grupo 30/70?
O grupo começou como um grupo instrumental e eu conheci o baterista, o Ziggy Zeitgeist, numa jam session de jazz. Ele estava a tocar e eu levantei-me e cantei com eles. Foi aí que ele me convidou para uma jam session e eu juntei-me à banda quando eles estavam a fazer o primeiro álbum deles [“Cold Radish Coma”, de 2015]. Eles foram a equipa mais solidária e mais bonita com quem trabalhar, por isso, estou muito grata por isso. Isto foi há cerca de 10 anos.
E qual foi o grande estímulo para quereres percorrer um caminho a solo?
Eu só queria continuar a aprender. Quero continuar a aprender o tempo todo. Estou constantemente a testar diferentes estilos de música e, às vezes, sou DJ, produzo, trabalho como engenheira de som, estou a aprender percussão. Acho que, para mim, começar o meu próprio projeto a solo foi apenas uma oportunidade de continuar a aprender e de me oferecer diferentes oportunidades. Foi quando comecei a tocar piano que entrei para a banda, e acho que isso me deu a oportunidade de tocar sozinha quando os meus colegas da banda não estavam disponíveis ou estavam a fazer outras coisas. Isso estava a permitir-me mais liberdade e mais espaço para continuar a aprender e, talvez, agora seja um espaço também para realmente dizer coisas que são realmente íntimas, apenas para a minha expressão pessoal. Acho que a minha música se tornou esse espaço, enquanto o 30/70 é uma energia um bocadinho diferente, é um pouco mais sobre dança. É mais livre, mais livre para circular.
Pelo meio, já trabalhaste com grandes elencos do UK jazz, como os KOKOROKO ou os Ezra Collective. O que trouxeste dessas colaborações para o teu percurso a solo?
Sim, com a oportunidade de ir ao Reino Unido e à Europa, e agora de me aventurar um pouco pelos Estados Unidos, estou sempre muito interessada – especialmente como uma pessoa branca que faz música soul e música inspirada no jazz – em continuar a investir na comunidade, continuar, novamente, a aprender sobre a origem desta música e a colaborar dessa forma. Não apenas a participar, essencialmente, mas a investir realmente na comunidade. Ouço muito isso de bandas como os Ezra Collective e os KOKOROKO e e acho que isso é muito do que os 30/70 eram no início. É simplesmente uma comunidade, uma colaboração e um coletivo, e trazer isso, dar continuidade a essa energia na minha carreira musical, trouxe-me muita alegria e paixão contínua pela música. É fácil deixarmo-nos levar por todas as outras coisas que se tornam aparentes, especialmente quanto mais se faz música, mas realmente continuar a pensar sobre o porquê de estar a fazer aquilo. Acho que estar perto de outras pessoas que estão na mesma jornada é bonito, sim.

Ao contrário de muitos grandes artistas do teu continente, como o Jordan Rakei, continuaste a estar muito na Austrália. Qual foi a razão de o fazeres e de não partires à aventura para a cena de Londres, como os teus conterrâneos?
Sabes, os meus amigos brincam e dizem que vivo no Terminal 4 do aeroporto, porque estou sempre a viajar e não tenho casa neste momento, mas tenho vivido assim nos últimos anos. Sacrifiquei essa estabilidade apenas pela oportunidade e pelo privilégio de viajar, criar, fazer música e fazer digressões. Portanto, sim, vivo em todo o lado e em lugar nenhum. Estou muito grata pelas oportunidades que me foram oferecidas por pessoas como Bradley Zero no Reino Unido, que faz parte da Rhythm Section [editora musical]. Na altura, ele veio primeiro para a Austrália e estava a contratar outras bandas australianas e encontrou-nos, aos 30/70. E, ao longo da viagem, também quis sempre dar oportunidades a outros artistas australianos e continuar essa colaboração, sem me afastar dessa cena. Isto porque acho que o que faço é tão inspirado pela vida na Austrália, pela paisagem australiana e pelos músicos australianos que seria errado para mim não oferecer oportunidades a esses artistas ou continuar a colaborar com eles. Acho que é algo muito especial e único, e, acho que se me mudasse para Londres e trabalhasse apenas com artistas londrinos, então perderia o que é único na minha música e a sensibilidade que há nela.
Como caraterizas a cena musical aí de Melbourne? Similar à de Londres ou diferente?
Eu acho que é tão diferente. Quanto mais tempo passo nos dois mundos, mais acho que é diferente. E, por vezes, tenho dificuldade em trabalhar com artistas do Reino Unido, porque, como músicos, o nosso sistema nervoso, o nosso pensamento e os nossos ouvidos estão em sintonia com o ambiente que nos rodeia. E, em Londres, o ritmo de vida é muito acelerado, enquanto na Austrália é muito mais lento, é espaçoso. Apesar de ser de Melbourne, eu cresci fora da cidade, por isso, tenho uma ligação com a natureza que não existe aqui em Londres, não encontro aqui. E, depois, tudo isso transparece na música, e acho que há, inerentemente, essa amplitude e clareza na música australiana e essa franqueza e sinceridade que eu adoro na música australiana, e acho que é realmente diferente. Em Londres é tão diferente, acho que, às vezes, é difícil e rápido, alto e estridente. Também adoro todas estas coisas, mas é simplesmente diferente.
A tua música é muito vital, imersa num ambiente profundamente urbano e muito condimentado pela música eletrónica e pelo R&B. Sentes essa energia positiva a fluir na tua música?
Sim, definitivamente. Acho que é simplesmente uma questão de estar constantemente inspirado pelos sons que estão à minha volta e pelo que estou a consumir. É, também, por isso que adoro viajar, porque posso ir e passar algum tempo em Nova Iorque, por exemplo, onde tenho estado muito ultimamente, e espreitar a cena noturna de lá e os soundsystems. Em Nova Iorque, é realmente diferente, por exemplo, na cultura do soundsystem e na cultura do DJ, que são diferentes, mais uma vez, de Londres, e são muito diferentes de Melbourne, de onde eu sou originalmente. Portanto, sim, é como se eu estivesse constantemente a encontrar inspiração no movimento.
As tuas letras trazem, à boa maneira do soul, temas muito crus, mas às quais consegues dar alguma leveza, embora consigas também fazer dela fonte de uma emancipação. Sentes que a tua música é uma transmutação desses sentimentos mais duros e te emancipas a partir dela?
Sim, bem, obrigado por essa reflexão. Sim, acho que estou sempre a tentar escrever de uma perspetiva realmente pessoal, sabendo que muito do que é pessoal para mim é, na verdade, partilhado por todos nós. Todaa gente tem os mesmos medos, sentimentos realmente enraizados, e aquilo com que nos preocupamos é muito parecido com o dos humanos. Por isso, tento apenas ser o mais vulnerável possível, sabendo que, na verdade, isto é universal e partilhado. Portanto, é realmente libertador, nesse sentido, chegar a essa consciência e saber que, na verdade, nenhum dos meus medos é exclusivo meu, nenhum dos meus. Sim, nunca me sentir envergonhada ou muito vulnerável naquilo que estou a dizer, porque, sim, é partilhado. É um sentimento partilhado e acho que ter essa consciência faz com que pareça leve. É como se estivéssemos todos a viajar juntos por isso. Não estamos sozinhos nesta experiência. Portanto, sim, estes sentimentos podem ser pesados, mas o facto de estarmos a passar por isto juntos faz com que pareça mais leve, se é que isso faz sentido. Definitivamente. Mas também adoro música como, por exemplo, Marvin Gaye, que escreve sobre as realidades mais duras da sua vida, e, ainda assim, é cool. E isso foi algo que quis ter, na minha música, ter sempre o equilíbrio entre algo realmente comovente e algo que se possa ouvir e divertir.
No geral, “The Making of Silk” traz uma grande inspiração literária para aquilo que escreveste. Queres contar-nos mais sobre esse percurso?
Sim, quer dizer, adoro ler. Eu leio muito e recebi muita inspiração de poetas e escritores e alguns dos escritores que realmente inspiraram “The Making of Silk” são pessoas como bell hooks, que escreveu este livro incrível chamado “All About Love”, que inspirou a ideia de redefinir o amor. James Baldwin foi uma grande inspiração, David White, que é um poeta incrível. Hafiz também inspirou uma das músicas do álbum chamada “Dropping Keys”; a Mary Oliver inspira o meu trabalho com frequência. Sim, há muitos. Neste momento, estou a ler um livro de Mahmoud Darwish, que é um poeta palestiniano e está a inspirar-me profundamente neste momento. Sim, adoro ler e adoro poesia.
É um álbum que também bebe muito da tua ancestralidade coletiva, ou seja, dos povos indígenas australianos, nomeadamente os wurundjeri, da nação Kulin [no sul do país]. De que modo olhas para esta ancestralidade e a sua ligação com a tua arte?
Sim, é exatamente isso. São os antepassados deste país em que cresci, porque sinto realmente que a minha música foi muito inspirada pelo privilégio que tive de crescer naquela terra e de estar em contacto com ela, quero sempre prestar a minha homenagem aos mais velhos do país. Penso que, em geral, especialmente na Austrália, onde a colonização ocorreu tão recentemente e continua a ocorrer naquelas terras, aproveito sempre a oportunidade, quando me estou a apresentar, para o reconhecer, e continua a ser uma bela aprendizagem para mim compreender a história daquele país e a história dos povos da chamada Austrália. Encorajo as pessoas a fazerem isso, não importa onde estejam no mundo, a pensarem no solo que estão a pisar.
Tens feito furor num país tão difícil e complexo como são os Estados Unidos. Qual tem sido o feedback da tua passagem por lá?
É interessante, é selvagem, é desafiante e acho que é realmente gratificante. Tenho muito respeito pela música que surgiu na América do Norte no último século, por isso, poder participar nisso, estar lá e absorver a história do jazz e do soul é uma bênção. Tem sido agradável, porque tenho viajado para a Europa e para o Reino Unido nos últimos oito anos, mais ou menos, ganhando impulso aqui e ali e depois começar do zero novamente nos EUA. Isso é ótimo, vou poder fazer toda essa viagem novamente. Vou ter a oportunidade, pouco antes de vir para Portugal, de tocar no Montreal Jazz Festival, o que será incrível. Foi sempre um grande objetivo meu tocar naquele festival, por isso, vai ser muito giro.
É a primeira vez que vens a Portugal. O que conheces deste país?
Vim passar férias a Lisboa, mas é a primeira vez que venho para tocar. Não sei muita coisa, sei coisas triviais, como as praias serem lindíssimas, há alguns artistas que adoro em Portugal, tanto pintores como músicos.
E quem e o que vais trazer contigo para este concerto?
Vou trazer comigo o Yusuf Ahmed, que vai estar na bateria, e o Matt Gedrych, que vai tocar baixo. São dois artistas de Londres. A Margot Mool vai estar na percussão e nos backing vocals. Eu e o Finn Rees vamos estar no teclado. O Finn é outro artista da Austrália, também parte dos 30/70. Vamos tocar muitas músicas do meu mais recente álbum, “The Making of Silk”. Estou sempre a compor músicas novas, por isso, tenho algumas músicas novas que estou muita entusiasmado para tocar e que vou tocar. Também temos trabalhado muito com a música de Roberta Flack desde que ela faleceu, há alguns meses. Estou a gostar muito de aprender algumas das suas músicas e de aprender mais sobre ela como artista. Podíamos tocar uma música da Roberta e depois veremos. Gosto de manter a minha banda na ponta dos pés. Por vezes, basta colocar músicas novas.
O que podemos esperar do teu futuro?
Em breve lançarei algumas músicas que não entraram no mais recente álbum como parte da deluxe version. Também estou muito perto de terminar o próximo álbum. Em maio do ano passado, tive a oportunidade de gravar nos Abbey Road Studios com uma banda totalmente australiana. Na verdade, os membros do 30/70. Fomos para Abbey Road, o que foi uma loucura. Gravei algumas músicas e isso está quase terminado, portanto, isso sairá muito em breve.
Fonte: https://comunidadeculturaearte.com/entrevista-allysha-joy-na-minha-musica-quis-ter-sempre-o-equilibrio-entre-algo-realmente-comovente-e-algo-que-se-possa-ouvir-e-divertir/