1 de julho de 2025
Fé, cultura e resistência no São João em pesquisa
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São João do Maranhão é mais do que uma festa: é um território simbólico onde o sagrado e o profano se encontram, se misturam e se tornam indissociáveis. No compasso das matracas, dos pandeirões e dos tambores, pulsa uma espiritualidade que atravessa séculos, expressando a resistência, a memória e a identidade de um povo.

Essa dimensão do sagrado no São João maranhense, muitas vezes percebida por quem participa, mas pouco explorada academicamente, é o foco da pesquisa desenvolvida pela professora Marilande Martins Abreu, do Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Maranhão (UFMA), que investiga como a religiosidade popular estrutura as manifestações culturais do ciclo junino, com especial atenção para o bumba meu boi.

Coordenadora do Grupo de Pesquisa Mina que estuda religião e cultura popular, a professora Marilande dedicou-se a investigar uma das expressões mais simbólicas dessa relação entre religiosidade e cultura popular: o boi de encantado, tendo como objeto o estudo de caso do boi de encantado Barbatão, ligado ao Jardim de Encantaria, um antigo terreiro de tambor de mina, localizado no bairro do Anjo da Guarda, em São Luís.

O resultado dessa pesquisa dará origem ao artigo científico intitulado “Tambor de mina e festas populares: o boi de encantado no Terreiro Jardim de Encantaria’, escrito em coautoria com a professora Sariza Caetano, da Universidade Federal do Norte do Tocantins (Ufnt). O texto integrará uma coletânea nacional dedicada aos estudos sobre religiões e manifestações religiosas no Brasil.

O sagrado que vive no bumba meu boi

O bumba meu boi, patrimônio cultural do Brasil e símbolo máximo da cultura maranhense, é uma manifestação que sintetiza, com poucos elementos, a fusão do sagrado e do profano, da arte e da espiritualidade, da festa e da devoção. Por trás dos bordados dourados, das toadas emocionadas e dos autos dramatizados, existe um tecido invisível que sustenta toda essa tradição: a fé.

No Maranhão, essa manifestação não se resume a folclore nem a celebração estética: ela é, sobretudo, uma prática de devoção. O boi dança, canta, vive e morre em rituais que evocam mitos, crenças e entidades espirituais, tanto do catolicismo popular quanto das religiosidades afro-ameríndias, como o tambor de mina, o terecô e a encantaria.

“Existe uma forte devoção em toda relação dos boieiros com o boi, como existe também uma devoção em relação ao boi que vai passar por alguns ritos. O boi passa por um ciclo ritual: ele é batizado, sai para brincar e despois ‘morre’. Esse ciclo, que se renova anualmente, é marcado por rezas, ladainhas, velas e outros elementos”, detalha. Não é exagero dizer que ‘o boi é uma oração que dança’. E, dentro desse universo tão amplo, existe um expressão que leva essa conexão com o sagrado a um nível ainda mais profundo: o boi de encantado.

O boi de encantado

Diferente dos grupos organizados em associações culturais, com estrutura administrativa própria, o boi de encantado nasce dentro dos terreiros. Nessas casas, o boi não é apenas uma personagem ou elemento folclórico. Ele é, na verdade, uma extensão das entidades espirituais que regem o terreiro, um corpo ritual que também dança, canta e se manifesta na matéria.

O tema central da pesquisa da professora Marilande é o boi de encantado Barbatão, que pertence ao Terreiro Jardim de Encantaria, liderado por Pai Clemente, e tem como entidade patrona a cabocla Dorinha de Leguá, ligada à linhagem espiritual da família de Leguá, muito conhecida nos cultos de tambor de mina do Maranhão. “O boi de encantado geralmente nasce a partir de uma promessa ou pelo pedido de uma entidade. O boi de Barbatão é ligado à entidade farrista Dorinha de Leguá. Essas entidades, normalmente, descem para brincar, festejar, dançar, beber e confraternizar com os devotos”, explica a pesquisadora.

Esses bois não estão no circuito comercial, nem nos arraias turísticos. Eles existem, primordialmente, dentro da dinâmica espiritual do terreiro. Participam das festas internas, dos rituais, das obrigações, dos pedidos e agradecimentos feitos às entidades. Toda a sua estética — do bordado do boi às roupas dos brincantes — é consagrada, rezada e preparada segundo os fundamentos da religião.

As visitas de campo para fundamentar a pesquisa começaram em 2016 e incluíram a participação em rituais fundamentais, como o batizado e a morte do boi, além de outros momentos de festa e de devoção no terreiro. O trabalho revelou como o bumba meu boi, na condição de expressão estética e cultural, entrelaça-se de forma indissociável com a prática religiosa da encantaria.

Uma oração coletiva que dança

O São João maranhense, com toda a sua pluralidade de sotaques e cores, tem, na religiosidade, um de seus pilares mais profundos. Isso não se restringe aos bois de encantado. Mesmo os grupos considerados profanos ou comerciais carregam em sua trajetória uma dimensão espiritual evidente. O batizado, as promessas cumpridas em forma de danças e toadas, as rezas antes das apresentações, tudo isso confirma que o boi é, para muitos, uma oração em movimento.

“O papel da religiosidade nas festas juninas são visíveis e presentes. O catolicismo popular é muito forte, além de ser uma festa em homenagem aos santos católicos, a religiosidade popular prevalece. As entidades das religiões de matriz africana também gostam dessas brincadeiras da manifestação da cultura popular e participam”, afirma Marilande.

Nos bois de encantado, essa dimensão não é apenas presente, ela é o próprio fundamento da existência do grupo. O boi, nesse contexto, não é um adereço cultural. Ele é uma entidade, um corpo que dança e canta em nome dos encantados, dos caboclos, dos mestres e mestras espirituais que sustentam as práticas da casa.

Pesquisa, memória e resistência

O trabalho da professora Marilande tem por objetivo lançar luz sobre esse aspecto muitas vezes invisibilizado da cultura maranhense. O objetivo é justamente sistematizar, registrar e dar visibilidade a essas práticas, que fazem parte da vida das pessoas, dos territórios, das comunidades, mas que muitas vezes não aparecem nos estudos ou nas políticas culturais.

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Fonte: https://oimparcial.com.br/noticias/2025/06/fe-cultura-e-resistencia-no-sao-joao-em-pesquisa/