
Desde que surgiu, a inteligência artificial levanta preocupações relacionadas às eleições ao redor do mundo. Agora, há evidências em pelo menos 50 países de que a tecnologia já trouxe impactos. É o que mostra uma reportagem do jornal The New York Times.
As ferramentas de IA são capazes de gerar imagens hiper-realistas. Elas são usadas para criar fotos e vídeos de candidatos ou apoiadores. Esses conteúdos mostram essas figuras públicas fazendo ou dizendo coisas que nunca fizeram ou disseram. Veja alguns casos que exemplificam:
- No Canadá, antes das eleições em abril, uma foto gerada por IA foi divulgada na plataforma X. Ela mostrava Mark Carney, candidato a primeiro-ministro, ao lado de Jeffrey Epstein – um empresário americano acusado de abusar de mais de 250 meninas menores de idade e de operar uma rede de exploração sexual.
- Na Polônia, postagens falsas nas redes sociais alertavam que um ataque terrorista poderia forçar o cancelamento das eleições no mês passado.
- Também na Polônia, um vídeo manipulado por IA que circulou no TikTok parecia mostrar o ex-presidente Trump apoiando Slawomir Mentzen, um líder de extrema-direita. Isso não aconteceu.
- Na Romênia, a IA desestabilizou a primeira rodada de votação no ano passado. Isso levou à realização de uma nova eleição. Um clone de voz gerado por IA substituiu a voz de Donald Trump. O áudio fazia parecer que ele dizia que o governo da Romênia estava “destruindo a democracia”.
- Na Argentina, a IA foi usada para editar a voz e os movimentos labiais do ex-presidente Mauricio Macri.
- Na Coreia do Sul, um vídeo parecia mostrar Lee Jae-myung, então candidato à presidência, fingindo uma greve de fome.
- Nos Estados Unidos, um vídeo manipulado por IA mostrava Kamala Harris dizendo que seu oponente, Donald Trump, se recusava a “morrer com dignidade”.
Ao mesmo tempo que a IA facilita a publicação e viralização de conteúdos falsos, rastrear sua origem pode ser uma tarefa muito difícil. O mau uso dessa tecnologia tem o objetivo claro de manipular eleitores e influenciar resultados. Além da criação e manipulação de conteúdo, as ferramentas podem trabalhar de uma forma “invisível”.
A IA pode atuar em camadas adjacentes, camadas anteriores na identificação de pautas, ou de quais potenciais conteúdos teriam aderência em um determinado país, fazendo scrapping de dados, análise de dados, análise social. A IA vai muito bem nisso, nessa hipercustomização. Especialmente no momento em que estamos tendo polarização e eleições muito acirradas em várias partes do mundo, em que pontos percentuais podem fazer a diferença.
Arthur Igreja, especialista em tecnologia e inovação
Esse uso indevido tem amplificado divisões sociais e partidárias. Também tem fortalecido o sentimento antigoverno, especialmente na extrema direita, que ganhou força em eleições recentes na Alemanha, Polônia e Portugal – aponta o NY Times.
Um retrato do uso da IA nas eleições de 2024
O Painel Internacional sobre o Ambiente da Informação, uma organização independente de cientistas com sede na Suíça, constatou o uso de inteligência artificial em 215 casos durante as eleições de 2024 ao redor do mundo. Esses dados foram coletados com base em declarações oficiais, pesquisas e reportagens.
De acordo com a pesquisa do painel, a IA teve um papel prejudicial em 69% dos casos analisados. Dezenas de deepfakes — fotografias ou vídeos que recriam pessoas reais — usaram IA para clonar vozes de candidatos ou transmissões de notícias.
Em apenas 25% dos casos analisados, a IA foi utilizada de maneira benéfica pelos candidatos. Eles recorreram à tecnologia para traduzir discursos e propostas para dialetos locais e identificar potenciais eleitores.
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Interferência internacional: países usam IA para moldar eleições em outras nações
Antes da inteligência artificial, gerar conteúdo e contas falsas em redes sociais exigia mais esforço e mão de obra. Com a IA, essa prática alcança maior velocidade e escala. Os usos mais intensivos e enganosos da IA vieram de países que buscam interferir em eleições fora de suas fronteiras, como Rússia, China e Irã, segundo a reportagem do New York Times.

Deyse Cioccari, diretora de pesquisa do Instituto Tria, aponta possíveis caminhos para conter a influência externa que ameaça a soberania dos países.
Quando um Estado manipula eleições alheias, com IA ou desinformação, estamos diante de uma violação de soberania. Acredito que a resposta não está apenas no direito internacional, mas na diplomacia cibernética. As punições podem vir por sanções multilaterais, corte de cooperação tecnológica e até restrições em fóruns internacionais. Mas o mais eficaz é a dissuasão reputacional: expor, com provas, quem corrompe o processo democrático global.
Deyse Cioccari, cientista política.
Uma campanha russa tentou incitar sentimento anti-Ucrânia antes da eleição presidencial do mês passado na Polônia, onde muitos refugiados ucranianos se estabeleceram. Foram criados vídeos falsos sugerindo que os ucranianos planejavam ataques para atrapalhar a votação.
O caso mais disruptivo ocorreu na eleição presidencial da Romênia no final do ano passado. No primeiro turno, em novembro, um candidato de extrema direita pouco conhecido, Calin Georgescu, assumiu a liderança com a ajuda de uma operação russa secreta. Entre outras ações, ela coordenou uma campanha inautêntica no TikTok. O tribunal ordenou uma nova eleição no mês passado. Georgescu, agora alvo de uma investigação criminal, foi impedido de concorrer novamente.
Críticos, incluindo o vice-presidente americano JD Vance e Elon Musk, denunciaram como antidemocrática a anulação da votação pelo tribunal. “Se sua democracia pode ser destruída com algumas centenas de milhares de dólares em publicidade digital de um país estrangeiro, então ela nunca foi muito forte para começar”, disse Vance em fevereiro.
Nas eleições presidenciais do ano passado nos Estados Unidos, inúmeros exemplos maliciosos levaram a Agência de Segurança Cibernética e Infraestrutura (CISA), o Escritório do Diretor de Inteligência Nacional e o FBI a emitirem um alerta público. Durante o governo Trump, essas agências desmantelaram as equipes que lideravam esses esforços.
A responsabilidade das big techs e dos governos
As principais plataformas de redes sociais — como Facebook, X, YouTube e TikTok — possuem políticas contra o uso indevido de inteligência artificial. No entanto, enfrentam dificuldades para detectar conteúdos falsos e de manipulação, especialmente com o avanço das ferramentas de IA generativa.
Estudos revelam que contas falsas criadas por IA conseguem burlar os sistemas de moderação em diversas plataformas, incluindo LinkedIn, Reddit, TikTok e as redes da Meta.
Sobre a capacidade das big techs de rastrear e retirar conteúdos falsos de suas plataformas, o especialista em tecnologia Arthur Igreja afirma:
A verdade é que ninguém conseguiu escalar isso direito e encontrar uma solução. Esse é um problema inerente dos conteúdos na internet, a baixa rastreabilidade. Porque muitas vezes se perde a origem de onde o conteúdo foi feito, onde ele foi alterado, manipulado, editado, revinculado. Do ponto de vista técnico, teria como melhorar drasticamente. Mas isso só acontece onde há interesse, principalmente, no mundo do direito autoral. Fora dele, é uma terra sem lei.
Arthur Igreja
A OpenAI relatou ter interrompido cinco operações de influência em 2024, em países como EUA, Índia e União Europeia. Também identificou uma campanha russa que usou o ChatGPT para apoiar um partido de extrema direita na Alemanha.

A União Europeia abriu uma investigação para apurar se o TikTok agiu adequadamente contra a desinformação durante eleições na Romênia, Irlanda e Croácia. A plataforma afirmou ter removido mais de 7.300 postagens em duas semanas, mas evitou comentários adicionais.
A IA é transnacional por natureza — os riscos também. A ausência de marcos comuns transforma a disputa eleitoral em uma guerra assimétrica. É urgente criar uma Convenção Internacional de Integridade Informacional para garantir que a IA não corroa o princípio democrático da autodeterminação dos povos.
Deyse Cioccari, cientista política.
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