
O nome de Amaro Freitas é cada vez mais omnipresente na música contemporânea. O pianista brasileiro tem ganhado mais reconhecimento no mundo do jazz a cada novo lançamento, algo que até o levou a cruzar a barreira muitas vezes intransponível da música instrumental e dita “erudita” para uma certa visibilidade mainstream. O seu talento já foi requisitado por artistas brasileiros como Liniker, Manu Gavassi, Lenine, Sandy e Criolo (este último recebeu-o no tema “Esperança”, que também conta com a participação de Dino d’Santiago). Talvez isso se deva à sua visão musical única, que já moldou o jazz à sua herança negra (Sangue Negro, de 2016), às suas origens recifenses (Rasif, de 2018) e à música da diáspora africana (Sankofa, de 2021).
A sua aventura mais recente levou-o à Amazónia e à exploração da conexão ancestral que as tribos indígenas amazónicas têm com o território agora conhecido como Brasil, tendo resultado no aclamado trabalho Y’Y (lê-se yé-yé), lançado há pouco mais de um ano e que conta com grandes nomes do jazz contemporâneo, como Shabaka, Brandee Younger ou Jeff Parker. Para além da Amazónia, inspirou-se ainda na técnica do piano preparado de John Cage, que envolve usar objetos entre as cordas ou os martelos do piano para produzir efeitos sonoros. Isso é notório ao longo de Y’Y e da sua música táctil, imprevisível e, acima de tudo, viva como a selva.
Sentado ao piano de sua casa, que fica em Recife, no Nordeste do Brasil, Amaro Freitas conversou connosco sobre o seu processo de composição, a sua experiência com tribos indígenas brasileiras e até sobre a temática anti-imigração que tem assolado Portugal nas últimas semanas. Foi uma conversa muito interessante que aguça o apetite para a sua próxima apresentação em Portugal, que acontecerá em Matosinhos, no festival Matosinhos em Jazz, no próximo dia 6 de Julho.
Como é que funciona o processo de composição das tuas músicas? Tens alguns gatilhos que influenciem esse processo?
Eu sou um cara que estuda muito. Quando eu estou em turnê, eu peço um pouco a mais de soundcheck para poder ter um tempo de prática no instrumento. Antes de ter um piano em casa, eu estudava no piano de um estúdio de um amigo. Então, muita coisa da composição vem dessa busca no estudo. Algumas coisas são insights. Vêm na minha cabeça, eu gravo no celular e depois sento e começo a desenvolver. Algumas vezes isso também já veio por sonho. Mas sempre esteve relacionado a uma experiência de vida que estava acontecendo comigo.
Por exemplo, o meu disco Rasif foi quando eu estava descobrindo o meu próprio território. “Rasif” é uma palavra árabe que dá origem a Recife e a palavra Pernambuco — “Paranambuco” — vem do tupi-guarani [família linguística dos povos indígenas do Brasil] e significa “mar que arrebenta”. No centro do nosso Recife, no Marco Zero, você vê o mar quebrando nos arrecifes e todo esse terreno rochoso da palavra “rasif”. Aí você entende que, para além de português, neerlandês e africano, esse território é muito indígena e também árabe. Eu estava descobrindo tudo isso. Tem a música “Trupé” [segunda canção de Rasif] em homenagem a esse coco trupé, que é um coco [estilo musical e ritmo do Nordeste brasileiro] que vem da Porta do Sertão, de Pernambuco: Coco Raízes de Arcoverde, Irmãs Lopes… Eles tocam o coco e tem uma sandália de madeira que toca um tablado de madeira. A minha atenção, quando eu escuto esse coco, não é na melodia mas sim na célula rítmica que essa sandália de madeira cria, quando toca o tablado, que é diferente. Eu estava escutando a célula do coco tradicional [imita ritmo do coco].
Essa célula que eles criam gera esse ritmo [imita ritmo diferente, do coco trupé] com os pés, no sapateado. Eu digo: “meu Deus, isso é incrível!” Eu quero trabalhar o coco trupé junto com a isorritmia [técnica que combina uma sequência fixa de notas musicais com uma rítmica], que é algo novo para mim. Então, eu crio… [toca melodia de “Trupé” no piano]. E daí vão nascendo [as canções].
O quotidiano é extremamente importante para a minha composição. Isso tem a ver com a fala de Nina Simone, é impossível a minha música não estar alinhada com o tempo que eu vivo.

Os teus primeiros três álbuns aproximam-se mais da cultura negra, da diáspora africana e também das tuas origens recifenses. No entanto, no Y’Y conectas-te mais com sonoridades e termos indígenas. Como é que foi fazer música tendo como base algo mais longe da tua realidade?
Aqui no meu estado, Pernambuco, tem algumas comunidades indígenas. Na Amazónia, tem mais de 300 comunidades indígenas… São 300 línguas diferentes. A gente não tem o interesse ou a preocupação de olhar para isso com um olhar mais sensível. A gente não aprende isso na escola nem nas nossas casas. Então, quando eu chego na Amazónia, eu descobri um outro Brasil. Eu vi um outro rosto, uma outra comida, rios largos que se encontravam mas não se misturavam, coisas que eles chamam como casas flutuantes, aquela floresta, aquela imensidão, uma humidade absurda. Vi também o narcotráfico muito pesado dentro das comunidades indígenas, uma poluição muito grande. Mas cada uma com a sua língua, com a sua ancestralidade, com a sua oralidade de gerações e gerações, um conhecimento e uma conexão com a natureza absurda.
Nesse mesmo momento, eu estava sabendo do piano preparado de John Cage, estava querendo colocar isso numa sonoridade que lembrasse mais uma identidade brasileira. E eu fiquei muito movido com esse Brasil que os brasileiros não conhecem tão bem. Os brasileiros que têm condições de pegar um voo preferem ir para Miami, para Nova Iorque, para a Europa, para a Disney… Pouquíssimos brasileiros têm noção da importância desse território. Eu fiquei muito louco com isso. Conversei com Heron, com Herb e com Socorro, que são indígenas que trabalham na Universidade Federal do Amazonas, convivi com eles e mostrei o que eu estava pensando de música. A gente falou sobre lendas do norte, como Mapinguari [criatura gigante de pêlo vermelho e de um só olho], Uiara [uma sereia muito bela que vive no Rio Amazonas], Boto Cor-de-Rosa [um golfinho que se transforma num homem elegante nas Festas Juninas], Cazumbá [um ser mágico que mistura caraterísticas de homem, mulher e animal]… E eu disse que queria fazer um trabalho que se conectasse a isso, porque estava muito tocado e queria levar essa mensagem com a minha música. Eu não queria que soasse a apropriação cultural porque eu não sou indígena. Eles entenderam que aquilo ali era muito mais um momento de troca entre comunidades do que apropriação cultural. Foi muito legal poder ter vivido essa experiência com os indígenas.
Se você for pensar, por exemplo, no piano preparado do John Cage, ele vai ter ali porca, parafuso, etc., para criar uma sonoridade totalmente industrial. Eu queria trazer um piano preparado que tivesse madeira, sementes amazónicas, jogo de dominó… No piano preparado do John Cage não tem swing, mas nesse piano preparado que eu trago, o piano dança; tem swing. Acredito que criei um piano preparado tropical, que trouxe essa identidade do Brasil e que foi a um lugar mais profundo da nossa raiz ancestral, que é os indígenas que vivem aqui há tanto tempo e conhecem tão bem essa terra.
Acredito que tenhas aprendido muita coisa nessa experiência. Quais foram os pontos principais dessa ancestralidade e conhecimento primitivo que mais te tocaram?
Quando eu cheguei na aldeia, a primeira coisa que me impactou é que o cacique [líder de uma tribo de indígenas] está sentado numa ciranda onde todo mundo fica de igual para igual. Eles fritaram algumas formigas com farinha. Eles alimentam essas formigas com limão e aí, na hora que a gente come, eles dizem “essa é uma formiga cítrica”. Interessante demais, o sabor é maravilhoso. A gente comeu carne de jacaré, comeu costela de tambaqui [peixe de água doce]. Eu vi as casas flutuantes que os indígenas constroem, eles moram na margem do rio nessas casas. Em determinados momentos do ano, eles se mudam. Isso tem a ver com a relação que eles têm com a floresta. Quando chegou uma primeira comunidade de neerlandeses nesse território, eles queriam construir as casas nesse terreno. Os indígenas disseram “não constrói aí, esse terreno é a casa do rio”. [Os neerlandeses responderam] “Que conversa”, e construíram. De seis em seis anos, acontece um alagamento em que a água praticamente chega no teto das casas.
Então, os indígenas já tinham essa relação enquanto a gente ficou muito distante da Natureza. A gente criou um outro mundo dentro do nosso planeta. Eles não. Eles têm uma relação. Por exemplo, o rio tem nome e faz parte da família. O rio é a minha prima, a árvore é o meu tio. Não tem lógica eu passar uma serra na árvore. Eu estou matando alguém da minha família se eu cortar uma árvore. Eu não vou poluir o rio, eu vou estar infectando os peixes. É uma outra lógica, uma outra forma de ser. Você está experienciando ali uma coisa que é extremamente diferente da nossa vida urbana. Ver essa conexão que eles têm com a natureza, a forma como eles pensam, no que eles acham graça, o quanto a nossa mente já é tão maliciosa e perceber que eles têm um outro tipo de coisa quase inocente… A primeira vez que eu fui fiquei uma semana, a segunda vez que eu fui fiquei dez dias. Foram momentos de aprendizados gigantes.

No nosso estilo de vida urbano não temos esse tipo de conexão. De que forma é que tu consegues manter-te conectado a essa ancestralidade?
Eu acredito que a música é quase uma fotografia daquele momento, só que ainda mais intensa. Quando alguém posta uma foto, a gente capta um pouco da ideia. A música consegue chegar mais perto ainda. Compor e criar uma sonoridade que lembrasse a Amazónia fez com que eu emocionasse várias pessoas ao redor do mundo: “Amaro, naquele momento eu me senti dentro da floresta amazónica, que bizarro”. A música vem como esse lugar de espiritualidade, ela nos torna mais humanos. Esse disco é um tributo à Amazónia, mas também fala sobre questões do contemporâneo que a gente vive agora, que é o desflorestamento, a poluição dos rios, o narcotráfico, o aquecimento do planeta, a desertificação de várias cidades, chuva exagerada, não tem chuva… Eu queria, através dessa música, dizer: “olha que incrível é a Amazónia, mas a gente precisa cuidar, a gente precisa acordar.” Talvez já passou até do tempo de a gente fazer isso. Eu não sei até onde eu consigo resolver alguma coisa com isso, sendo bem honesto, mas a música é a forma que eu encontrei de conseguir ter um diálogo e um propósito de vida. Eu acredito muito no poder da música como um lugar de ritual, de espiritualidade e como um recorte da sensibilidade que eu tenho a partir das questões desse momento que eu vivo.
Qual é, para ti, a maior beleza do Brasil?
Caramba, que pergunta difícil! [risos] Tem tanta coisa boa no Brasil. Eu diria que a alegria dos brasileiros é uma coisa bem interessante. Eu me lembro que toquei uma vez com um pianista israelense no Japão e esse cara ficou sério durante todo o festival. Aí, ele chegou no Brasil e já chegou assim, ó [começa a sorrir de forma matreira]. Eu olhei pra ele: “Tudo bem?”, e ele respondeu, “Hoje eu vou no samba!”. O cara virou uma outra pessoa! Eu me lembro que a minha assessora de imprensa em Portugal uma vez falou: “Os brasileiros são muito beijoqueiros, gostam de beijar muito”. A gente é assim, mais calorosa. Talvez isso seja por conta da temperatura aqui também. É mais quente, é um país dançante. Eu acho que a maior beleza é o próprio brasileiro e é a maior desgraça também, sabe? [risos].
É uma terra realmente incrível. Todo planeta é incrível, mas pensa comigo. A gente tem a Mata Atlântica, a miscigenação, a cultura musical… O que é que eu estou querendo dizer com isso? Alguns estudiosos, muito tempo atrás, quando vieram estudar a Mata Atlântica brasileira, perceberam que existia uma coisa não uniforme. Tem uma árvore que é muito fina e alta. Ao lado dessa árvore, tem uma árvore baixa e gorda. Ao lado dessa árvore, tem um pé de bananeira. Eles entenderam que, em qualquer outro lugar do mundo, para você ver uma árvore dessas e uma dessas [juntas], você teria que andar quilómetros e quilómetros. É a mesma coisa quando você sai de Lisboa e passa pela região do Alentejo para o Algarve. Você percebe que a paisagem vai mudando, mas as árvores são parecidas. Elas têm um formato de cone, como se fossem pinheiros. Depois ficam mais espaçadas, como se fossem cajueiros, mais baixinhas. Aqui [no Brasil] a gente vai ter uma diversidade absurda. No mesmo metro quadrado, tem duas árvores que seriam improváveis no mundo todo.
Se você pedir: “me apresenta cinco brasileiros, Amaro”. Vai ter um com o meu rosto, um com rosto branco, outro com rosto indígena… “Amaro, me fala um pouco sobre a música brasileira”. Meu amigo, só aqui em Pernambuco: coco, baião, ciranda, maracatu, caboclinho, cavalo marinho, frevo [todas elas expressões culturais de cariz popular]… Eu te falei sete géneros musicais só no meu estado. Aí a gente vai para o Rio de Janeiro, o Maranhão, a Bahia… Isso se multiplica. O Brasil, por mais que pareça ser clichê, tanto do ponto de vista de uma mata, de raça, do ponto de vista cultural, é diverso. É o país da diversidade. Talvez essa seja a maior beleza do nosso país.
Tens muito reconhecimento na cena jazz no estrangeiro. Como é a receção da tua música no Brasil comparada com o estrangeiro?
Eu e o Laércio, que é o meu empresário, começamos a fazer um trabalho sempre pensando nesses dois pilares e na importância de estar fora do Brasil constantemente. Desde 2018 que eu estou tocando fora do Brasil. Mas a gente também entendia a importância de tocar no Brasil. É tanto que vários artistas saem de Pernambuco, eles vão morar em São Paulo e no Rio de Janeiro, porque essas duas cidades são o centro do Brasil. Eu consegui ter um reconhecimento internacional e, hoje em dia, um reconhecimento nacional morando em Pernambuco. Para mim, isso é muito simbólico, isso é político. Isso fala sobre um posicionamento de estar no meu território, de um menino me ver na rua e dizer assim: “poxa, eu te vi em Nova Iorque”. Aí eu digo: “mas eu estou aqui agora e você pode estar lá um dia, mano”. Saber que existe uma quantidade de crianças que estão estudando piano por conta de mim e de ter hoje um público considerável no Brasil.
Eu fiz um show aqui em Recife, foram mil ingressos vendidos. Toquei num festival agora no Rio de Janeiro, tinham 12 mil pessoas. Toquei num outro festival para 2 mil e 300 pessoas, um outro festival que toquei para, sei lá, 15 mil pessoas, e esses são todos festivais de jazz que dão acesso aberto. Mas durante alguns momentos do ano, a gente faz o teste de entender: quantas pessoas pagam para assistir o meu show? E a gente tem tido resultados incríveis, que provam que é possível ter um reconhecimento internacional mas que, quando você também se importa com isso, você pode ter um público aqui no Brasil. Uma vez, eu encontrei uma pianista chamada Helena Elias. Ela disse: “Amaro, não abandone o Brasil. Porque, assim que você abandonar o Brasil, o Brasil te abandonará”. Nosso país tem essa beleza toda que eu te falei, mas é um país complicado para a cultura, para o artista. Eu me considero um caso raro, uma exceção. E a exceção nunca é uma coisa tão boa, porque quer dizer que outros não vão acontecer. A minha luta é para que isso não seja dessa forma, para que outros também aconteçam. Só assim a gente tem uma cena. A gente pode falar sobre a música instrumental não pensando em um herói. “Ah, esse cara é o cara do futebol, ele é o nosso herói.” Não, é melhor a gente ter um coletivo. Pela falta de a gente ter referências coletivas, criou-se uma coisa no Brasil do herói. É importante que existam outras pessoas.
Agora, abriu uma nova casa de jazz em Los Angeles, chamada Blue Note Los Angeles, e só tem eu de brasileiro na programação. Está lá o Kamasi Washington, o Christian Scott, o Shabaka, a Aja Monet, toda essa galera da cena do jazz contemporâneo. Isso me dá um orgulho de poder ter furado essa bolha de estar ali, mas eu queria que outros brasileiros estivessem ali também. O Brasil é diferente de como as coisas acontecem fora. Gilberto Gil está tocando agora numa turnê em arena aqui no Brasil, mas, quando ele vai tocar em Portugal, é para 2 mil, 3 mil pessoas. Então é entender que a música brasileira que é consumida no nosso país não é a mesma música brasileira que é consumida fora do Brasil. O Brasil é uma grande ilha que criou a sua própria dinâmica, a sua própria música e vai consumir essa música. A música que eu faço não está dentro desse catálogo do que é o brasileiro. Então, para mim, poder observar que mil pessoas compraram ingresso para me assistir é 10% de um público que me conhece. Ou seja, 10 mil pessoas me conhecem daquela região e isso é muita coisa. É uma vitória para a música instrumental.
Como é que escolhes as pessoas com quem colaboras?
Algumas colaborações vieram sem eu conhecer a pessoa, mas eu entendi que isso seria importante para a música. Como por exemplo Lenine, Sandy, Manu Gavassi… São artistas pop brasileiros que têm uma projeção muito grande e, para mim, estar ali não como pianista que gravou aquela música e sim como featuring, é importante. Os músicos que gravaram no meu disco Y’Y — Shabaka, Hamid Drake, Brandee Younger, Jeff Parker e Aniel Someillan — eu encontrei em festivais na Europa. A Europa me mostrou um outro tipo de música que está acontecendo no mundo todo, porque o mundo todo está aí.
São músicos que têm uma veia muito forte do spiritual jazz, de entender essa conexão a partir de um mantra, de uma música que conecta de outras formas. É uma música que fala quase como se fosse você mesmo falando, só que através do instrumento, como se o instrumento e você virassem uma coisa só. Fui conhecendo esses personagens, ficando admirado e convidei eles para participar do meu disco.
Portugal está a passar por um sentimento generalizado de anti-imigração que afeta muitos imigrantes brasileiros. Tenho bastantes amigos do Brasil que estão a ficar preocupados por isso. Na tua perspectiva, quais são as melhores formas de mitigar estes sentimentos negativos e aproximar as pessoas?
A cultura, a arte sempre teve esse papel de aproximar as pessoas. No documentário do Milton Nascimento, o Wayne Shorter, saxofonista que tocou e gravou junto com o Milton o disco Native Dancer, falava que, diferente do Donald Trump da outra vez que ele foi presidente — ele queria construir um muro para separar o México dos Estados Unidos — o Milton Nascimento está fazendo uma música que cria pontes e que quebra muros. Você vai perceber que, geralmente, as pessoas que têm um tipo de pensamento mais de direita, mais conservador, não vão gostar tanto da arte, porque a arte traz uma liberdade. Traz uma expressão que geralmente é contrária ao que a gente chama de poder, autoridade, ordem, etc. A arte vem para quebrar isso.
Se a gente for pensar na história da arte, a única coisa que muda são as máscaras. Mas a gente já viveu isso em vários períodos como sociedade. Hoje a gente tem o celular, que nos dá um turbilhão de informações, que podem ser corretas ou não, e que podem levar uma audiência gigante a uma linha de raciocínio. Podem criar coisas tão incríveis como também coisas perigosas. Mas o modelo é o mesmo.
Eu acho que a arte continua cumprindo esse papel e quanto mais a gente der às pessoas acesso à música, ao teatro, ao cinema, aos livros… É muito difícil uma pessoa que tem acesso a esse tipo de coisa se tornar uma pessoa radical, porque você entende o outro, você compreende a partir de uma outra perspectiva. “Nossa, eu amo música portuguesa; nossa, eu amo música brasileira” — isso já cria uma empatia através do som. Quando a gente cria conexões através da culinária, da arte, com a cultura de um território, a gente tem uma outra perspectiva sobre família. Para o brasileiro, tem algumas coisas que são muito complicadas, porque a gente é muito misturada. Os países que têm essa coisa da raça pura têm um outro tipo de visão, mas eu percebo que isso não é só com pessoas estrangeiras, é um comportamento. Todo mundo veste uma roupa muito parecida, todo mundo faz uma música meio parecida, então isso fala sobre o comportamento de um povo.
Agora, quando existe só uma situação de dominação, escravização ou colonização, onde eu sou beneficiado e tenho um mínimo de interesse em conhecer, ou onde a vida do outro não importa, a gente começa a criar essas dificuldades e linhas imaginárias do que é cada território. Não dá para França, Portugal ou Inglaterra terem bagunçado tanto o mundo e querer que nada aconteça de volta. “Ah, agora a galera quer morar em Portugal, os africanos querem morar na França”. Você foi lá, você bagunçou, você mexeu no ninho do formigueiro, quer que as formigas fiquem de boa? Eu acho que, até como uma dívida histórica, o comportamento dos países europeus deveria ser outro, sabe? Fora do planeta, o astronauta olha aquele vazio do universo e diz: “a única coisa que a gente tem é esse planeta”. Aí desce no planeta: um bocado de confusão, demarcando — “não, aqui é seu lugar, aqui é o meu”, “eu vou jogar uma bomba”, “eu vou te matar”. A gente vive nessa loucura e, de certa forma, criamos a arte como algo subversivo mesmo, que contraria tudo isso.
Que sentimentos ou sensações pretendes conjurar no teu público, quando tocas ao vivo?
A coisa do jazz que mais me pega é o estado de presença. Eu preciso prestar atenção no meu parceiro. Então estamos aqui [toca uma melodia no piano] e ele tem que estar comigo. A magia só vai acontecer se a gente estiver realmente presente. Aí vai improvisar, vai fazer motivos, vai criar coisas que vão vir na hora. Essa energia pega o público e fica todo mundo envolvido, “caramba, o que vai acontecer agora?”
O disco [Y’Y] é uma parte piano solo e outra parte com participações e eu criei uma outra coisa agora com trio. Está muito legal, levou essa música para um outro lugar. Acho que o público vai também se emocionar com esse tributo à Amazónia e, se fechar os olhos, poder ter essa sensação de que estão na floresta, mas agora com um trio. Eu estou muito empolgado para tocar no festival jazz de Matosinhos, que é um festival tão importante. Eu adoro tocar em Portugal, adoro o público português, a comida de Portugal, o clima de Portugal… Adoro isso aí.
Fonte: https://comunidadeculturaearte.com/entrevista-amaro-freitas-a-musica-e-a-forma-que-eu-encontrei-de-conseguir-ter-um-dialogo-e-um-proposito-de-vida/