17 de julho de 2025
o disco que mudou Tame Impala
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Capa do disco “Currents”

Um dos mitos mais adorados pelos críticos musicais é o da consagração do génio musical solitário. O músico que se isola do mundo, acompanhado dias, semanas, meses a fio, apenas pelos seus instrumentos. O músico incapaz de pregar olho, incapaz de pensar em outra coisa que não em canções. Um cientista louco em constante experimentação, em busca da perfeição pop. Adoramos uma história assim, mesmo que saibamos que estes mitos têm tanto de peta prejudicial como de verdadeiro. E a história da pop está recheada, para o bem e para o mal, destes seres mitológicos. 

Em 2015, o australiano Kevin Parker, mestre de cerimónias musicais mais conhecido como Tame Impala, deu aos críticos a possibilidade de escreverem muitos capítulos sobre a sua solidão. Nos meses anteriores, tinha-se isolado no seu estúdio caseiro, localizado à beira-mar na costa ocidental da Austrália, a tentar idealizar a sua versão de música pop. Não precisou de muito equipamento para efetuar essa busca – apenas uma guitarra antiga, uma bateria decrépita e uns quantos sintetizadores vintage –, mas necessitou de tempo e paciência. Muita paciência. Até Currents ver a luz do dia, precisamente a 17 de julho de 2015 – faz hoje dez anos –, Parker precisou de garantir que as suas novas canções soavam exatamente como desejava. Só assim pôde erguer os sons que preenchem o seu magnum opus.

A perceção de Kevin Parker como um perfecionista já existia antes de Currents ser revelado ao mundo. Apesar de esporádicas contribuições de alguns dos seus amigos músicos oriundos de Perth, na Austrália, cidade onde começou a tocar em bandas antes de começar a gravar canções em casa e publicá-las no MySpace, Tame Impala foi sempre o bebé musical de Parker. Porém, Currents, o terceiro longa-duração de Tame Impala, foi mesmo o primeiro álbum que Kevin Parker fez “99% sozinho”. Isolado do mundo, acompanhado apenas pelos seus melhores amigos: instrumentos musicais. Por defeito, o mito de Kevin Parker foi criado. E como Currents foi delineado como uma (suposta) reinvenção para o polímata musical australiano – facto que se tornou mais óbvio após o lançamento dos singles –, a intriga em torno do álbum só se tornou mais “quente”.

Entendo totalmente o porquê dos críticos olharem para Currents como uma reinvenção de Tame Impala. Contudo, passados dez anos, é possível observar que Kevin Parker já tinha deixado pistas suficientes para ser passível de deduzir que tinha um disco como Currents dentro de si. Afinal, desde o primeiro dia  abraçou a influência da eletrónica na sua música. Por exemplo, o EP de estreia de Tame Impala, Tame Impala H.I.T.S (2008), contém duas remisturas, marcando o início de um padrão presente em 99% da discografia de Tame Impala (foge à regra o EP homónimo de 2008). Para cada álbum de Tame Impala, existe um segundo disco constituído por remisturas de canções do álbum e por novas malhas que Parker considerou não serem boas o suficiente para fazerem parte do álbum. 

Além disso, algumas canções de Tame Impala dos tempos de Tame Impala (2008) e InnerSpeaker, álbum de estreia publicado em 2010, mostram como a relação de Kevin Parker com a música eletrónica evoluiu com o tempo. “Remember Me”, o lado B de “Sundown Syndrome”, single editado em 2009, é uma versão de um hit da música de dança dos anos 90. Em InnerSpeaker, os primeiros momentos de “Runway, Houses, City, Clouds” soam perigosamente perto da EDM da altura. Porém, tudo isto ainda estava muito distante do som “pop” de Currents. Ainda era necessário Parker experimentar virar mais uns quantos frangos para chegar ao seu paraíso pop.

O laboratório de Lonerism (2012), segundo álbum de Tame Impala, serviu para essa experimentação. Em canções como “Feels Like We Only Go Backwards”, Parker abraça o R&B para desenhar uma canção de pop-psicadélico bem eficiente. Em “Sun’s Coming Up”, escuta-se a devoção por inteiro do australiano a Brian Wilson e aos Beach Boys. Em momentos como estes de Lonerism, Parker mostrou ao mundo que não era só um tipo com cabelo comprido obcecado com a música dos Cream ou dos Black Sabbath. Era também um tipo obcecado com canções pop e com cada vez menos vergonha de o admitir. Por essa altura, em entrevista à Pitchfork, admitiu que tinha mais de uma mão cheia de canções escritas a pensar em Kylie Minogue, devota australiana da electropop retrofuturista dançável. Além do mais, em entrevista ao Ípsilon, referiu também que sempre adorou a ideia de música pop “mais do que a música pop propriamente dita”. A vergonha tinha desaparecido.

Tame Impala em 2014 / Fotografia via Wikipédia

Entre 2012 e 2015, criou-se o ambiente quasi-perfeito para o sucesso de Currents. 2013 é um ano em que ocorrem várias transformações no mainstream, transformações essas que acabaram por alimentar, sem Kevin Parker saber, o triunfo de Currents daí a dois anos. Por um lado, o apetite por pop retrofuturista era real – o sucesso de Random Access Memories, dos Daft Punk, assim o demonstrou. Por outro, a estética indie (marcada por cores psicadélicas, macias e pastel), alimentada pelo Tumblr e pelo sucesso de discos como AM, dos Arctic Monkeys, ou de artistas como Lana del Rey ou The 1975,¸explodiu em popularidade em 2013. Tame Impala fazia também parte desse simulacro de movimento, todo ele colocado dentro da mesma caixinha do “indie”. Nas canções introspetivas sobre solidão e inseguranças de InnerSpeaker e Lonerism, os queridinhos e queridinhas do indie encontraram algum conforto. Eram as camadas de guitarra a funcionar como almofada.

“O disco tornou-se numa referência para essa geração, uma espécie de coleção de hinos feitos por um quase trintão que pareciam encapsular experiências comuns à adolescência: o primeiro amor, o primeiro coração partido, o verão psicadélico que se quer eterno.”

Apesar do desejo de Kevin Parker se aproximar ainda mais da pop no período pós-Lonerism, em 2012 esse desejo era apenas e só isso: um desejo. Contudo, nos três anos seguintes, a indústria tomou nota de Kevin Parker. Tame Impala passou de projeto promissor do underground a dar nova vida ao rock psicadélico para um projeto a estar no radar do mainstream. Em 2013, com a ajuda do hit alternativo “Elephant” – devoção aos Cream condensada em canção pop –, Lonerism foi nomeado para o Grammy de Melhor Disco Alternativo. Em 2014, Kendrick Lamar colaborou com Parker numa versão de “Feels Like We Only Go Backwards” (intitulada apenas de “Backwards”) para a banda sonora de Divergente. Lembram-se disso? Eu não. E é também em 2014 que Kevin Parker começa a colaborar com um artista que tem grande influência na criação de Currents: o DJ e produtor britânico Mark Ronson.

No início de 2015, alguns meses antes do lançamento de Current, Mark Ronson lançou Uptown Special, o seu quarto longa-duração. Nesse disco, do qual faz parte o super hit “Uptown Funk”, Kevin Parker oferece a sua voz a três canções. Uma dessas canções, “Daffodils”, single publicado em 2014, é o mais próximo daquilo que o australiano iria revelar ao mundo daí a uns meses. Em “Daffodils”, Parker utiliza o seu falsetto até dizer chega. O baixo é ultra-dançável. A groove e as vibes estão no ponto. Quando Parker foi para estúdio trabalhar nas canções de Currents, as experiências com Ronson deixaram marca. Em entrevista à Stereogum, admitiu que estas ajudaram-no a “abraçar diferentes métodos para gravar música”, métodos que depois Parker aplicou na edificação sonora de Currents.

Kevin Parker (fotografado em 2015) no Lollapalooza / Fotografia via Wikipédia

Contudo, apesar da proeza pastiche-pop de “Daffodils”, a canção continua a ser uma malha de Mark Ronson e não uma canção de Tame Impala. A “Daffodils”, faltam as camadas (fruto da devoção completa a Loveless dos My Bloody Valentine, uma das grandes referências sonoras de Kevin Parker) que são uma das imagens de marca do estilo de produção do australiano. Parker precisou, então, de perceber como dar vida à sua ideia de música pop sem deixar para trás as suas características como produtor e o seu ethos musical: fazer canções que, acima de tudo, funcionam como uma “vibe”, declarou em 2009. Para Parker, não importa se as suas canções são feitas a partir de sons de guitarras ou de sintetizadores. O que importa é que, no final, as suas canções soem à vibe que pretende. Conjugar isso com a sua ideia de música pop era a peça de puzzle que faltava para Currents. As camadas e camadas de sintetizadores sobrepostas nas canções de Currents têm esse propósito: soarem a uma vibe.

Foi nessas camadas e camadas de sintetizadores que Kevin Parker passou meses sozinho a trabalhar, e são essas camadas que dão vida à primeira canção de Currents: “Let It Happen”. Ao longo de mais de 7 minutos de neo-psicadelismo dançável capaz de fazer corar os Avalanches, Kevin Parker revela a nova versão de Tame Impala. Ainda hoje, considero que “Let It Happen” não só a melhor malha de Currents como a melhor canção de Tame Impala. “Oh, but maybe I was ready all along”, canta Kevin Parker a dado ponto na canção. Ele estava pronto para a mudança. O resto do mundo, ao que parece, também estava. Para trás, ficava a ideia de Tame Impala como projeto responsável pelo revivalismo do rock psicadélico que marcou os primeiros anos da década de 2010. Para a frente, começava a ideia de que Kevin Parker queria jogar o jogo da R&B, do funk e da nu-disco (tudo esbranquiçado, diga-se…). Em suma, Kevin Parker queria deixar de ser Kevin Parker, o nome por detrás de Tame Impala, e passar a ser Kevin Parker, um produtor de canções pop.

As únicas canções de Currents que se aproximam da euforia de “Let It Happen” são a estupenda “The Less I Know The Better” (*o* hit de Tame Impala) e “Disciples” (perfeição pop em menos de 120 segundos). Na altura, algumas críticas menos positivas a Currents, como a de João Bonifácio no Ípsilon que descreveu o álbum como estando recheado por canções maioritariamente “tame” (mansas), apontavam esse como o principal calcanhar de Aquiles do disco. Porém, o objetivo de Currents não é soar eufórico (apesar de que faria bem a Currents se tivesse mais uma malha ao estilo de “Let It Happen”). Pelo contrário. Opera num conjunto de moods e vibes díspares que são apresentados como um todo contemplativo (é essa a vibe do álbum). É o álbum de Tame Impala que mais se aproxima de um disco conceptual. E qual o conceito? Currents conta a história do término de uma relação romântica e das repercussões desse mesmo fim. A arte imita a vida e Kevin Parker estava a passar precisamente pelo fim de uma relação durante a criação de Currents. Depois de dois álbuns a cantar sobre isolamento e solidão, Parker estava, efetivamente, sozinho. Entre Lonerism e Currents, a sua relação com a música francesa Melody Prochet, mastermind do projeto Melody’s Echo Chamber, terminou. 

Se InnerSpeaker e Lonerism funcionam como premonição do desastre, Currents é o som do pós-desastre. É a história de um interveniente a tentar lidar com as consequências do final de uma relação romântica, mas não só. Como Ian Cohen escreveu na Pitchfork, Currents é um disco sobre o fim de uma relação a “vários níveis”. “É sobre o final de uma relação romântica, mas também sobre a separação [de Kevin Parker] com a guitarra como principal instrumento para se exprimir”, referiu o crítico norte-americano na sua crítica amplamente positiva ao álbum. 

“Dez anos depois, Currents é o melhor e mais interessante álbum de Tame Impala. É um dos melhores e mais influentes discos lançados na década de 2010. O “indie” nunca foi mais a mesma coisa depois de Currents. Nem a pop. Essa é a herança deste álbum.”

É nos momentos mais contidos de Currents que se escuta o sumo temático do disco. Em “Eventually”, canção sonhadora e emotiva preenchida por sintetizadores, Parker canta como a separação se tornou (finalmente) na única solução possível para ambos os intervenientes da relação (“And I know just what I’ve got to do and it’s got to be soon / ‘Cause I know that I’ll be happier and I know you will too”); em “Past Life”, malha assim-assim onde se sente tanto a influência da trilogia de The Weeknd como de Random Access Memories, canta sobre como esta relação do passado, de vez em quando, regressa para assombrar a sua rotina (“Well, somewhere between a lover and a friend / It was different back then / Surreal, poetic but uncertain”); em “Reality In Motion”, abraça a possibilidade de novos futuros e atrações, mesmo que esses futuros e atrações sejam pautados pelos mesmos erros de sempre. Sobre esses, canta-os em “Cause I’m A Man”, R&B orelhudo sarcástico sobre as desculpas masculinas esfarrapadas, e em “New Person, Same Old Mistakes”, malhão que termina o disco e que funciona como a catarse definitiva de Currents. Como cantaria anos mais tarde Maria Reis, “O presente repete as coisas do passado”. Para Parker, o presente de Currents podia parecer muito igual ao seu passado: isolado e inseguro. Porém, estava tudo prestes a mudar para o australiano. Se em Lonerism ficou às portas do mainstream, em Currents estava prestes a tornar-se um player deste. Tal como queria e desejava.

Capa do disco “Currents”

Dentro e fora da Austrália, Currents foi aclamado pela crítica. Surgiu em várias listas de melhores álbuns de 2015 (e, mais tarde, da década de 2010), foi nomeado para um Grammy, e venceu dois prémios nos que são essencialmente os Grammys australianos (os ARIA Music Awards) – o de Melhor Álbum Rock e Álbum do Ano. Para os fãs de Tame Impala, porém, lembro-me que a aclamação não foi tão imediata nem unânime. Os fãs antigos de Tame Impala olharam para Currents com desconfiança. Se as guitarras não eram o elemento principal da dissonância de Kevin Parker, para quê a devoção? Mas para os novos fãs, muitos deles adolescentes, Currents e Kevin Parker tornaram-se na sua meca, na sua personalidade.

No ano seguinte da edição de Currents, era muito complicado não escutar alguma canção do disco caso se circulasse no seio de qualquer grupo de jovens devotos à música alternativa. O disco tornou-se numa referência para essa geração, uma espécie de coleção de hinos feitos por um quase trintão que pareciam encapsular experiências comuns à adolescência: o primeiro amor, o primeiro coração partido, o verão psicadélico que se quer eterno. A estética de psicadélico suave e colorido da capa de Currents funcionava como esperança para os sonhos de um futuro que parecia risonho. Foi o último suspiro de boas vibes antes das vibes se tornarem putrefactas. Afinal, 2016 estava ao virar da esquina e o mundo estava prestes a mudar. Nada foi bem o mesmo depois desse ano.

Para Kevin Parker, Currents foi o pináculo da sua carreira. Foi o melhor disco que tinha lançado até então, e desde aí não lançou música nem de perto nem de longe tão interessante ou dissonante como as canções de Currents. The Slow Rush, o álbum que apareceu cinco anos depois de Currents e onde Parker abraçou ainda mais a influência da música de dança, soa a todo o aborrecimento que alguns críticos apontaram a Currents em 2015 (no calor da noite, pergunto-me se esses críticos também estavam certos sobre Currents). As colaborações que foi efetuando a seguir ao ano de 2015, desde Lady Gaga a Dua Lipa, de Kanye West a Travis Scott (muitas das vibes do trabalho de Parker são uma referência enorme para o trap-psicadélico de Scott), e de Justice a canções de bandas sonoras esquecíveis (Mínimos 2: A Ascensão de Gru), também não são memoráveis o suficiente para justificar Kevin Parker desejar ser um novo Max Martin, facto que o australiano assumiu em 2020 à Billboard. Terá Kevin Parker, mais do que toda a gente, acreditado demasiado no seu próprio mito? Terá Currents contribuído para o quão focada em vibe se tornou a pop – do hip-hop à pop mais comercial – nos anos seguintes? Parcialmente, acredito que sim.

De qualquer forma, o legado de Kevin Parker e de Currents perdura. Dez anos depois, Currents é o melhor e mais interessante álbum de Tame Impala. É um dos melhores e mais influentes discos lançados na década de 2010. O “indie” nunca foi mais a mesma coisa depois de Currents. Nem a pop. Essa é a herança deste álbum.

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Fonte: https://comunidadeculturaearte.com/dez-anos-de-currents-o-disco-que-mudou-tame-impala/