21 de julho de 2025
A familiaridade dos Gilsons e a voz aveludada de Jota.pê
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Fotografia de Herman da Cunha / CCA

O festival Ageas Cool Jazz, como tem sido seu apanágio nas edições pós-pandemia, voltou a dedicar mais um dia da sua eclética programação adjacente ao jazz à música brasileira. Desta vez, o recinto que ocupa parte do Parque Marechal Carmona e o Hipódromo Manuel Possolo, em Cascais, encheu-se para ver Jota.pê e os Gilsons. O recinto estava notoriamente mais populoso do que no evento anterior do certame, que contou com os Ezra Collective e Jordan Rakei, denotando o grande entusiasmo do público pelos cabeças-de-cartaz. O que se notou também foi a enorme presença de brasileiros, que, querendo apoiar os seus artistas nacionais e sentir um gostinho de casa, compareceram em peso.

Fotografia de Herman da Cunha / CCA

Antes disso, o palco Cascais Jazz Sessions, localizado no anfiteatro do Parque Marechal Carmona, recebeu a pianista Isabel Rato em formato de quinteto. A sua mostra de jazz apontou mais à escola clássica do jazz, com o toque relativamente invulgar de contar com voz no alinhamento. João David Almeida, o vocalista, tinha um timbre reminescente de Luís Represas, o que se adequou ao repertório focado no cancioneiro português de Zeca Afonso. Ouvimos, entre outras, “Que Amor Não Me Engana” e “Era Um Redondo Vocábulo”.

Mas não só de Zeca se fez o concerto. Para “Gaia”, canção de autoria da líder do quinteto escrita a pensar na falta de direitos das mulheres, Isabel Rato fez um pedido incomum para um concerto de jazz: palmas. O público atento e respeitador não se fez rogado e engrossou a secção rítmica. Infelizmente, o tempo de apresentação foi curto e a banda não pôde tocar a última canção do alinhamento. Ainda assim, foi um final de tarde agradabilíssimo que encaixou bem na sequência lusófona que se seguiria.

Fotografia de Herman da Cunha / CCA

Jota.pê encontra-se neste momento numa trajetória ascendente na sua carreira. Para além de ter ganhado 3 Grammys Latinos no final do ano passado, tem feito inúmeras colaborações com artistas de peso, incluindo Dominguinho, um álbum com João Gomes, o mais recente ícone do forró brasileiro. É de admirar, então, a sagacidade do Cool Jazz em trazê-lo neste dia. “Quem já me conhece?”, perguntou o artista no início do concerto, para uma resposta avassaladora de gritos. “Para quem ainda não conhece, o objetivo é que ainda aí estejam quando o concerto terminar”, brincou.

Mas era difícil que alguém abandonasse um concerto tão bem executado e, acima de tudo, encabeçado por uma voz tão deliciosa como a de Jota.pê.A sua voz grossa tem a ginga inconfundível da música brasileira e, para além disso, uma enorme projeção. Aparentemente sem esforço, enchia todo o recinto do grande palco Ageas com o seu timbre caloroso, que traz a canções de matriz africana como “Uns Cafuné a Domicílio” o calor necessário.

Fotografia de Herman da Cunha / CCA

Como mencionado antes, as suas colaborações com outros artistas têm sido mais que muitas. Tanto que, a certa altura do concerto, o alinhamento se fez quase inteiramente de versões ou colaborações. Para começar, atirou-se à sua versão de “A Ordem Natural das Coisas”, do rapper Emicida, não sem antes nos contar sobre como a amizade entre os dois floresceu após esta versão e até partilhar um enternecedor excerto de uma conversa entre Emicida e a sua filha de 5 anos.

De seguida, veio aquele que talvez tenha sido o momento mais especial da noite, particularmente pela ponte que fez com Portugal. Jota.pê apresentou aquela que diz ser a sua canção “mais de protesto”, a mesma que lhe rendeu um dos Grammys Latinos da edição de 2024: “Ouro Marrom”. A tocante letra exalta a sua pele negra e clama pelo fim do sofrimento racista que assola aqueles que têm a mesma tonalidade de pele que ele. Para gáudio do público, Dino d’Santiago subiu ao palco para cantar a canção com ele, numa participação que não podia ser mais adequada, tendo em conta a aguerrida luta que Dino tem travado do nosso lado do Atlântico pela consagração de direitos iguais para a comunidade negra em Portugal e além-fronteiras. Para além da importância que o momento já teria por si só, a carga emocional que os dois músicos imprimiram à suave canção foi arrepiante.

Fotografia de Herman da Cunha / CCA

Num momento em que o sentimento anti-imigração ganha cada vez mais força em Portugal, são momentos como este, em que se constroem pontes culturais entre os dois países inevitavelmente ligados por uma história maioritariamente devastadora, que nos podem aproximar apesar das adversidades. É por isso que foi também muito especial ouvir, num concerto de Jota.pê, o fado de Teresinha Landeiro. “Visita Inesperada”, a canção que uniu ambos os artistas para uma versão conjunta, foi cantado por ambos em palco.

Daí para a frente, as canções assumiram traços mais próximos a diferentes géneros que encaixam no rótulo de adult contemporary, nomeadamente um pop rock suave, um estilo facilmente associado à sua participação no programa The Voice Brasil. A verdade é que esse segmento do concerto não foi particularmente cativante, a não ser pela sua voz capaz de derreter manteiga. Foi quando Jota.pê trouxe mais brasilidade à sua música de novo que o interesse voltou a subir, justamente para a última canção do alinhamento. “Quem é Juão” é sobre o artista ser a banda sonora do romance dos outros, em vez de viver o seu próprio romance. Foi um momento humorístico e leve, animado pelo batuque do pandeiro e que, eventualmente, evoluiu para um som funky que nos lembrou da “música para churrasco” de Seu Jorge.

Fotografia de Herman da Cunha / CCA

Depois de cerca de meia hora de pausa, os “filhos de Gil” — os descendentes de Gilberto Gil também conhecidos como Gilsons — subiram ao palco principal para grande entusiasmo da plateia. A banda tem encontrado bastante sucesso com a sua MPB tranquilizadora, que, como mencionámos na nossa entrevista em 2024, destila “a tradição musical brasileira numa linguagem sónica mais moderna, sempre com uma leveza que já faz parte da sua identidade musical”. Por outras palavras, é fácil gostar da música dos Gilsons.

Uma das coisas mais características da banda é as frases que a banda repete nas suas canções e que facilmente entram nas nossas memórias. Coisas como: “Algum ritmo em comum fez-nos encontrar / Algum ritmo em comum fez-nos conversar” ou “Eu quero te dar o meu amor devagarinho”. Basta ouvi-las um par de vezes para se revelarem familiares em qualquer contexto. Um outro ponto essencial da música dos Gilsons é a sua percussão suave. Por mais que a sua origem musical seja a Bahia, a casa de tantos diferentes ritmos, na sua música esses ritmos são reduzidos a um sussurro que parece vir do quarto ao lado, retendo principalmente os graves que pretendem mais embalar e acolher que aguerrir, como em “Devagarinho” ou “Love Love”.

Fotografia de Herman da Cunha / CCA

À semelhança do concerto de Jota.pê, a certa altura a maioria das canções do alinhamento fez-se de versões e colaborações — aliás, como já era esperado, o próprio Jota.pê subiu a palco para os músicos tocarem a sua canção conjunta, “Feito a Maré”. A música brasileira sempre foi feita de um grande espírito colaborativo, algo que se tem estendido até à contemporaneidade. Talvez isso até seja ainda mais real para a família Gil, que vive e respira musicalidade. No caso dos Gilsons, estas colaborações enriquecem a sua música de paleta sonora relativamente limitada.

Um ótimo exemplo disso é “Presente”, a música que os BaianaSystem fizeram para (e com) eles. Aí, o baque mudo da percussão dos Gilsons que já referimos é substituído por uma batida mais possante e dançável, bem característica dos “novos novos baianos”, como lhes chamou a banda. Esse epíteto vem como referência à banda que ainda ecoa por todos os lados na música brasileira, os Novos Baianos, que os Gilsons também honraram em concerto com uma versão musculada de “Swing de Campo Grande”.

Fotografia de Herman da Cunha / CCA

Para terminar as colaborações, uma “nova baiana” foi referenciada: Rachel Reis. A sua música com os Gilsons é “Bateu”, uma espécie de bachata baiana (também conhecida como “arrocha”) cujas letras passaram no ecrã por trás da banda. O mais engraçado foi que as letras não estavam sincronizadas com a canção até ao refrão que diz “Coube direitinho / Encaixou certinho”. Foi um momento engraçado que diz muito sobre a atenção ao pormenor da banda.

Já perto do fim, os Gilsons fizeram uma referência ao sítio que chamam de casa e que já inspirou tanta, mas tanta música: a Bahia. “Voltar à Bahia” foi tocada numa versão mais dançável que a de estúdio, para manter os ânimos altos. Até porque o momento mais esperado ainda estava para vir: a versão de “Várias Queixas”, dos Olodum, que a banda regravou e que se espalhou como fogo. Foi cantada a plenos pulmões pelo público, levando até a banda a calar o acompanhamento musical e deixar-nos a cantar a cappella. A ovação final foi estrondosa e obrigou a banda a estender um pouco mais o concerto. Este foi provavelmente o maior concerto dos Gilsons em Portugal e mais um cimentar da sua relação certamente duradoura com o nosso país.

Logo após o final do concerto, Rita Lig tomou as rédeas do palco Late Nights para quem quis prosseguir com a festa. Até ao final de julho, ainda haverá mais três dias de concertos no Cool Jazz: Slow J e Silly (dia 23), Tindersticks e Ganso (dia 26), e Masego e Amaura (dia 31).

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Fonte: https://comunidadeculturaearte.com/a-familiaridade-dos-gilsons-e-a-voz-aveludada-de-jota-pe-no-ageas-cool-jazz/