
O diplomata Jorio Dauster tem um histórico importante como negociador. Lidou com questões relacionadas ao comércio internacional durante grande parte da vida profissional. Fez carreira no Itamaraty; integrou a representação brasileira no Canadá e na Tchecoslováquia; atuou na Organização Internacional do Café, em Londres; renegociou a dívida externa no governo de Fernando Collor; e dirigiu a Vale logo após a privatização da mineradora. É atualmente consultor de empresas. Tem credenciais de sobra para analisar com propriedade o recente tarifaço imposto ao Brasil pelo presidente dos Estados Unidos, Donald Trump.
Em entrevista, Jorio acredita que “estamos em plena Segunda Grande Guerra Fria, um período de crescente turbulência, porque a hegemonia norte-americana está sendo contestada pela rápida ascensão da China, acompanhada pela Índia e por outros países asiáticos, enquanto a Europa sofre uma decadência acelerada”.
Para ele, a atitude de Trump cria um precedente grave. “A ‘diplomacia da chantagem’ de Trump é um retrocesso histórico, ao romper o sistema de organizações multilaterais que havia sido promovido por seu próprio país após a Segunda Guerra Mundial”, afirma. O risco é “desorganizar todas as redes de suprimento em nível global”.
Leia também: Decisões de Flávio Dino no STF desdobram-se em disputa politica no Maranhão
O diplomata reconhece que o potencial financeiro e comercial do Brics é o alvo central tanto da guerra de tarifas conduzida por Trump quanto de todas as movimentações externas voltadas à contenção do poderio chinês.
Mas, apesar disso, observa que o Brics ainda não chega a ser uma ameaça real, porque não é um agrupamento econômico, como o Mercosul e a União Europeia; não tem um tratado constitutivo, regras formais de procedimento ou tarifas comuns. Também não vê num horizonte próximo o grupo criando uma moeda única para negociações. Trata-se mais de “um mero instrumento de cooperação internacional”.
Jorio avalia que o maior poder de reação do Brasil se baseia na capacidade de resistência do povo brasileiro. Como resposta, ele não acredita que uma retaliação, neste momento, seja a medida mais efetiva e que seria mais fácil partir para negociações com os próprios empresários americanos, que também estão sendo prejudicados com as medidas de Trump. Segundo ele, o Pix, “tirou um pão bilionário da boca de muitos bancos estrangeiros e das plataformas de cartões, os quais, sem dúvida, fizeram, fazem e farão pressões contra o Brasil por tal motivo”.
Além de diplomata, Jorio é um prestigiadíssimo tradutor de clássicos da literatura — J.D. Salinger, Vladimir Nabokov, James Baldwin, Philip Roth, Ian McEwan, Jonathan Franzen, Salman Rushdie…, só pra citar alguns autores. Em Brasília, onde mora, Jorio concedeu a entrevista que segue:
Como o senhor traduz a atual ordem geopolítica mundial?
Estamos em plena Segunda Grande Guerra Fria, um período de crescente turbulência, porque a hegemonia norte-americana está sendo contestada pela rápida ascensão da China, acompanhada pela Índia e por outros países asiáticos, enquanto a Europa sofre uma decadência acelerada. Já vai longe a ideia proposta por Francis Fukuyama sobre o “fim da história”, em que o capitalismo e a democracia burguesa constituíam o coroamento da evolução da humanidade após a liquidação do fascismo e do socialismo. Novas forças tecnológicas e novas formas de organização social geram uma acomodação sempre conflitiva das placas tectônicas da ordem geopolítica mundial com consequências ainda imprevisíveis.
O uso da chantagem como instrumento diplomático está no centro da crise aberta por Trump. Esse método de fazer política externa desequilibrará os alicerces da geopolítica mundial?
A “diplomacia da chantagem” de Trump é um retrocesso histórico, ao romper o sistema de organizações multilaterais que havia sido promovido por seu próprio país após a Segunda Guerra Mundial. Por suas feições autocráticas e imperialistas, as ameaças lançadas por Trump contra ex-aliados e inimigos em potencial provocam um tsunami de incertezas que desorganiza todas as redes de suprimento em nível global e alarma as chancelarias acostumadas a rituais diplomáticos de longa tradição. As idas e vindas do próprio presidente norte-americano, representadas pelo TACO (Trump Always Chickens Out), só fazem aumentar os níveis já altíssimos de desconfiança e perplexidade com que ele é visto.
Qual é a consequência e a sustentabilidade da guerra tarifária imposta na base da chantagem a médio e longo prazos?
Na essência, nove entre 10 economistas acreditam que as tarifas são um imposto a ser pago pelos consumidores norte-americanos e, por isso, esperam que nos próximos meses essa realidade esteja refletida nas prateleiras dos supermercados e nas estatísticas de crescimento da economia. Alguns sinais dessas tendências já começam a aparecer, porém, tipicamente, Trump demitiu a responsável pela divulgação dos dados sobre emprego quando não gostou do que veio a lume publicamente.
O crescimento do Brics é uma razão mais forte para a guerra de tarifas contra o Brasil do que a anistia de Jair Bolsonaro?
O Brics não é um agrupamento econômico como o Mercosul e a União Europeia, porque não tem um tratado constitutivo, regras formais de procedimento ou tarifas comuns, não passando atualmente de uma aliança política, um mero instrumento de cooperação internacional. Criado no longínquo 2009 (ano da primeira cúpula) por Brasil, Rússia, Índia e China, em 2011, incorporou a África do Sul (passando a ostentar o acrônimo Brics) e, a partir de 2024, ganhou novos membros (Arábia Saudita, Egito, Emirados Árabes Unidos, Etiópia e Irã). Esse conjunto de países já representa cerca de 39% do PIB mundial, medido em paridade do poder de compra, e seu potencial financeiro e comercial é o alvo central tanto da guerra de tarifas conduzida por Trump quanto de todas as movimentações externas voltadas à contenção do poderio chinês. A inquestionável identificação entre Trump e Bolsonaro por conta do assalto ao Capitólio em 6 de janeiro de 2021 e da invasão da Praça de Três Poderes em 8 de janeiro de 2023 serve basicamente como pretetrumpiana de que o governo do presidente e Luiz Inácio Lula da Silva é esquerdista, senão comunista, segundo os critérios do Maga (Make America Great Again).
Por que ainda não houve uma reação em bloco do Brics contra Trump?
Pelo fato, exposto acima, de que o Brics é um amontoado informal de países com posturas internacionais diferentes. Não obstante, já houve manifestações individuais de apoio ao Brasil, inclusive, por parte da China, e a Índia também é objeto de tratamento punitivo por importar grande volume de combustíveis da Rússia.
Trump teme a liderança de Lula, a regulação das big techs e o cumprimento das leis na punição aos golpistas do 8 de Janeiro? Isso pode ser um exemplo para o mundo?
Por alegadas razões de segurança, Trump deseja dominar o continente americano da Groenlândia (que já ameaçou invadir militarmente, apesar de ser um território autônomo do Reino da Dinamarca) à Patagônia (que já recebeu de bandeja pelas mãos de Milei). A postura de Lula e de outros governos “esquerdistas” da região é vista como uma ameaça por contrariar o propósito de alinhamento automático que Trump tenciona impor. No entanto, como os países não seguem o exemplo de nenhum outro e se movem apenas segundo seus interesses e condicionantes históricos, Lula pode receber alguns aplausos, mas só deve contar com a capacidade de resistência do povo brasileiro. Que será fortemente testada no futuro próximo.
O Brasil está adotando a postura adequada diante do tarifaço de Trump? Práticas de retaliação serão eficazes?
Diante do quadro de incertezas predominante e do menor alcance do tarifaço sobre as exportações brasileiras do que era inicialmente esperado, não aconselho que sejam tomadas medidas retaliatórias, pelo menos no momento. Na impossibilidade de interlocução entre os presidentes por decisão de Trump, devemos continuar a trabalhar com os compradores norte-americanos que também estão sendo prejudicados pelas atitudes intempestivas em curso.
Qual é o impacto do Pix no xadrez da economia global? Há alguma chance de vir a ser usado mundialmente, um tipo padrão-ouro?
A instauração do Pix tirou um pão bilionário da boca de muitos bancos estrangeiros e das plataformas de cartões, os quais, sem dúvida fizeram, fazem e farão pressões contra o Brasil por tal motivo. Há sistemas semelhantes em outros países e se estuda a possibilidade de criar redes que operem em conjunto. Tudo isso desagrada profundamente aos bilionários donos do poder, em particular Elon Musk, mas não há a menor perspectiva no horizonte visível de que o Brics crie uma moeda própria capaz de fazer frente ao domínio do dólar.
Leia também:
Quer receber as notícias da sua cidade, do Maranhão, Brasil e Mundo na palma da sua mão? Clique AQUI para acessar o Grupo de Notícias do O Imparcial e fique por dentro de tudo!
Siga nossas redes, comente e compartilhe nossos conteúdos:
Fonte: * Correio Braziliense
Fonte: https://oimparcial.com.br/noticias/2025/08/diplomata-de-carreira-afirma-estamos-em-plena-segunda-grande-guerra-fria/