9 de setembro de 2025
A Fundação de São Luís: Entre História e Invenção
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A história da fundação de São Luís, capital maranhense, nunca foi consenso. Muito além de uma disputa entre franceses e portugueses, trata-se de um exemplo de como a historiografia pode transformar versões históricas em invenções míticas que atravessam gerações.

Durante séculos, prevaleceu na historiografia a versão clássica segundo a qual a cidade teria sido fundada em 1616 por Jerônimo de Albuquerque, após a expulsão dos franceses comandada por Alexandre de Moura. Esse entendimento pode ser observado em fontes do século XIX, como o jornal O Arquivo (1846), periódico científico e literário ligado à Associação Literária Maranhense (fundada em 1845), da qual Gonçalves Dias era membro efetivo e que tinha como presidente Alexandre Teófilo.
Nesse jornal, Jerônimo de Albuquerque é claramente exaltado como o verdadeiro fundador de São Luís: “Jerônimo d’Albuquerque, fidalgo da Casa Real, comandante das duas primeiras expedições para a conquista do Maranhão aos franceses, e fundador da sua capital, tomou posse do governo em meados de novembro de 1615, por nomeação do general da armada e conquista, Alexandre de Moura.” (O Arquivo, 1846).

A citação evidencia como, em meados do século XIX, a versão portuguesa da fundação ainda era predominante e se consolidava como verdade histórica aceita pelos intelectuais da época. Cronistas e historiadores como Berredo, Gaioso, João Lisboa, César Marques, Barbosa de Godóis, entre outros, consolidaram a narrativa da origem portuguesa, na qual os franceses não passavam de invasores passageiros.

Essa visão só começou a ser alterada de forma mais efetiva e sistemática, mais não exclusivamente – Há registros de versões de fundação francesa já no século XIX − nas primeiras décadas do século XX. Em 1911, o historiador Ribeiro do Amaral publicou artigos no Diário Oficial do Maranhão reinterpretando a cerimônia de 8 de setembro de 1612, realizada por François de Razilly – La Touche não estava presente, pois era protestante − e os capuchinhos franceses, como o verdadeiro auto fundador da cidade.

No ano seguinte, lançou o livro “Fundação do Maranhão”, reforçando a ideia de que São Luís nascera francesa.
O impacto foi imediato. Em 1912, São Luís celebrou pela primeira vez seu aniversário em grande estilo, já como tricentenário, não mais como cidade portuguesa, mas como herança francesa. Estava inaugurada uma nova tradição, forjada nos decênios iniciais da República, quando elites e intelectuais buscavam símbolos capazes de diferenciar o Maranhão do restante do país.
Esse mito da fundação francesa ganhou ainda mais força em 1962, nos festejos dos 350 anos da cidade.

Historiadores como Mário Meireles, em sua obra “França Equinocial”, e escritores como Astolfo Serra, em “Guia Histórico e Sentimental de São Luís”(1965), exaltaram a origem francesa como motivo de orgulho, transformando-a em marca de distinção cultural e nobreza histórica.
Mas o que estava em jogo não era apenas uma polêmica de datas ou personagens.

Como demonstrou a historiadora Maria de Lourdes Lauande Lacroix, em “A Fundação Francesa de São Luís e Seus Mitos” (2000), tratava-se de uma clara “tradição inventada”, no sentido atribuído por Hobsbawm e Ranger. A elite ludovicense, influenciada pelo galicismo em voga na época, apropriou-se da breve presença francesa (1612-1615) para construir um mito fundador que reforçava outro já consolidado: o da “Atenas Brasileira”.

A partir da década de 1930, começaram a surgir as primeiras vozes críticas à tese da fundação francesa. Ruben Almeida, em 1930, e Crisóstomo de Sousa, na década de 1940, já apontavam inseguranças e fragilidades nessa interpretação. Mais adiante, nas décadas de 1970 e 1980, o pesquisador e membro efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Maranhão, José Moreira, retomou a discussão em artigos de jornal, reforçando as dúvidas sobre a validade da versão francesa.

Em fins dos anos de 1980 e início de 1990, a crítica ganhou ainda mais consistência, em 1993, o professor Olavo Correia Lima deu um passo importante ao denominar a tese da fundação francesa de o “mito capital da história do Maranhão”, sendo o primeiro estudioso a empregar explicitamente o termo mito nesse contexto. Em 1997, quatro anos depois, Orlandex Viana (membro do IHGM) publicou uma série de artigos no jornal O Imparcial, nos quais classificava a chamada fundação francesa como uma “mentira histórica”.

O ponto de maior sistematização da crítica, contudo, veio com a historiadora Lacroix, que, em “A Fundação Francesa de São Luís e Seus Mitos (2000)”, apresentou a contestação mais sólida e abrangente. Em sua análise, demonstrou que a ideia de uma fundação francesa não passava de uma tradição inventada no século XX, desprovida de lastro documental consistente e sustentada muito mais por interesses simbólicos e culturais do que por evidências históricas.

Mais do que decidir se a fundação foi portuguesa ou francesa, o debate escancara o papel dos mitos na formação das identidades coletivas. Em São Luís, o mito fundador expressa o desejo das elites de associar a cidade a um passado nobre e singular, capaz de projetar o Maranhão como espaço distinto no cenário nacional.

Assim, a polêmica sobre a fundação de São Luís ensina que a história não é apenas registro do passado, mas também construção de memórias, invenção de tradições e criação de símbolos. Revisitar esses mitos é, portanto, um exercício de crítica e de consciência histórica, capaz de revelar mais sobre aqueles que os inventaram do que sobre os fatos originais que pretendem narrar.

Fonte: https://oimparcial.com.br/noticias/2025/09/a-fundacao-de-sao-luis-entre-historia-e-invencao/