8 de outubro de 2025
“Uma rave é o que podemos fazer agora — uma
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McKenzie Wark / DR

Há livros que se leem com a mente, outros com o corpo. Raving, de McKenzie Wark, é um desses — não se entende, sente-se. A sua escrita pulsa como uma batida techno, com paragens, loops, distorções e luzes estroboscópicas de linguagem. “O método que vou usar para escrever sobre raves será descrever algumas situações […] salientar conceitos que emergem e fechar tudo num destilar desses conceitos antes de a batida parar” — avisa a autora logo nas primeiras páginas. E é isso que faz: um ensaio que respira na cadência do som, na dissolução do eu, na vibração partilhada do corpo coletivo.

A rave como filosofia encarnada

No universo de Wark, a rave não é apenas uma festa. É um rito de sobrevivência, uma prática colaborativa, uma forma de pensamento que se dança. O livro abre com o corpo exausto e feliz de uma mulher trans de meia-idade — a própria Wark — à saída de uma rave queer em Brooklyn. “Cansaço bom. Descanso os pés. Bebo água. O céu clareia.” Esse registo físico é o alicerce da sua filosofia: pensar começa no corpo, não na abstração.

As raves de que fala não são eventos de luxo, mas situações construídas nas franjas da legalidade, organizadas por comunidades queer e trans que precisam desses espaços para existir. Wark diz: “Interessam-me as pessoas para as quais a rave é uma prática colaborativa que torna esta vida suportável.” A rave, portanto, é uma pedagogia da presença — uma ecologia afetiva onde os corpos encontram modos temporários de liberdade. O livro é atravessado por um sentimento de cuidado: “Água?”, grita a narradora a uma amiga suada e trémula. O gesto banal torna-se político, o contrário da solidão.

Capa do livro / DR

Em Raving, Wark inventa conceitos que soam como faixas de techno. Um dos mais belos é o de xenoeuforia — a alegria alienígena, a felicidade de ser estranho e de estar entre estranhos. “Durante umas batidas, ou milhares delas, eu não ser. Não estar aqui. Em lado nenhum.” Essa suspensão do eu — que a psiquiatria chamaria de dissociação — é para ela uma experiência de libertação e não de doença. A dissociação é a gramática corporal das pessoas trans: “Somos gente que precisa de se ausentar do corpo ou do mundo. O corpo parece equivocado. O mundo trata-nos como equívocos.” Outro conceito é o de femunismo de ketamina — um feminismo subterrâneo e químico, que entende o entorpecimento e o delírio não como fuga, mas como tática. “Quero resgatar à psiquiatria pelo menos algumas dissociações da linguagem. Quero encontrar maneiras de esta incapacidade também poder ser capacitadora.” Aqui, Wark reconfigura o pensamento queer e feminista como experiência sensorial radical: a rave é um laboratório de afetos, de drogas, de sons, de falhas.

A linguagem segue a pulsação do som. Há momentos em que o texto se torna pura textura sonora: “O ar denso, quente, húmido, pulsante, todo ele só ruído e mais ruído […] Tudo é movimento, membros, cabeças, tecnologia, luz, ar.” Wark escreve como quem compõe um set. O ensaio torna-se corpo, a crítica torna-se pista.

Da teoria ao corpo

A história criativa de McKenzie Wark ajuda a perceber o alcance de Raving. Durante décadas, ela foi conhecida como uma das mais influentes teóricas da cultura digital — autora de A Hacker Manifesto (2004), Gamer Theory (2007) e Capital Is Dead (2019). Eram livros sobre a lógica do capitalismo informacional, a abstração, o valor, o trabalho. Obras inteligentes, mas frias, ainda presas à cabeça.
Com Reverse Cowgirl (2020) e Philosophy for Spiders (2021), Wark vira-se para o corpo — o seu corpo trans, em transição, em experimentação. Raving (2023) é o auge dessa viragem. A teórica cibernética torna-se escritora sensorial, uma etnógrafa das margens queer e uma cronista do prazer como política.

Se nas obras anteriores Wark estudava a relação entre capital e abstração, aqui ela propõe outra forma de materialismo: o da carne que dança. As batidas são “as máquinas de ritmo que excedem-nos. Implacáveis. Desviaram o que dantes chamávamos história.” E nesse desvio, nesse intervalo entre batidas, ainda há espaço — “um espaço por vir”, refere.

Uma batida comum

De certa forma, Raving é o livro que o MIL gostaria de ler em voz alta às três da manhã. O festival é um território de descoberta e é nesse cruzamento que o pensamento de Wark vibra.

Tanto o livro como o festival tratam a música como espaço de encontro entre diferenças. O MIL é uma constelação de artistas independentes, de comunidades queer, de sonoridades híbridas. Wark escreve que “a rave é uma distribuição de anomalias sem norma”. Essa frase poderia estar no manifesto curatorial do festival.

McKenzie Wark © Cortesia de McKenzie Wark

O MIL, ao criar pontes entre culturas lusófonas e o circuito global, pratica o que Wark chama de “apropriação das máquinas” — a recodificação do som e da tecnologia como ferramentas de libertação, e não de controlo.

Como a autora, o festival trabalha o som como política de afeto: ambos reconhecem que a música, mais do que estética, é sobrevivência, comunhão, energia.

Mas há também uma tensão produtiva. Raving fala das raves ilegais, suadas, improvisadas, espaços de risco e anonimato. O MIL, como festival institucional, opera dentro de um enquadramento logístico e económico. O que o livro nos lembra é que a verdadeira potência do som está no seu excesso, na sua capacidade de desbordar, romper o enquadramento, de sujar o palco, de dançar fora de cena.

O diálogo entre ambos é fértil: Raving oferece ao MIL uma crítica amorosa. Mostra que a festa não é só entretenimento, mas um modo de imaginar outra economia dos corpos numa política da euforia, do cuidado e do erro. Festivais que ouvirem essa lição poderão transformar-se, mais do que vitrines, em comunas temporárias, em raves do pensamento.

O corpo como manifesto

Em Raving, McKenzie Wark escreve: “Não sei porque preciso disto, mas sei que preciso.” Essa confissão é o coração do livro — e talvez da nossa época. Dançamos, estudamos, escrevemos, porque precisamos, não porque sabemos.

Num mundo que insiste em produtividade e clareza, Wark reivindica o direito à confusão luminosa.

Assim, Raving não é apenas um livro sobre música, mas sobre o direito à opacidade. À experiência sem tradução, à vida que não precisa de justificar.

Na sua escrita há uma ternura por todos os que sobrevivem a dançar: trans, queer, racializados, exaustos, bêbados de som e de desejo. “O que não nos mata vai-nos matar na mesma, mas podemos fazer com que nos faça dançar um bocado, para nossa necessidade e prazer.”

E talvez seja isso que o festival MIL e Raving partilham no fundo: a crença de que a música, quando é vivida no corpo, pode ser uma forma de pensamento. Que entre o som e o silêncio há espaço para existir e nesse intervalo, por um instante, dançar é pensar.

A partir da sua casa no Brooklyn, (Ms. Wark? “Mackenzie”!) cedeu a seguinte entrevista. 

O seu livro mais recente, Raving, parece um manifesto sobre viver, dançar e pensar de outro modo. É simultaneamente um diário íntimo e um ensaio teórico. O que a levou de volta ao mundo das raves depois de tantos anos, e como é que essa experiência se transformou em escrita?

Fui raver noutra vida, noutro século, noutro país. Depois da minha transição — há sete anos — percebi que o único antídoto eficaz para a disforia era dançar. Uma amiga minha, também trans, respondeu: “Querida, aparece no meu apartamento às três da manhã. Eu levo-te.” E levei isso a sério.

Nessa noite tocava a Juliana Huxtable, que eu não conhecia, e percebi logo que estava diante de algo real. Senti-me em casa — e pensei: isto é melhor do que antes. Há sempre nostalgia pelos anos 90, mas as raves de hoje são mais ricas, mais conscientes, mais políticas. Quis encontrar uma linguagem que fizesse justiça a isso.

Escrevi o livro em apenas seis semanas — por acaso, uma encomenda de última hora da Duke University Press. Não escrevia há três anos; a transição alterou o meu corpo e também a forma como penso. Foi como deixar o clarinete e pegar num saxofone — o instrumento é outro, o som também. Raving devolveu-me a escrita. E é o único dos meus livros com o qual ainda estou feliz.

McKenzie Wark / DR

Estava nervosa com a receção do livro?

Um pouco. Quis honrar o mundo de onde ele vem, sem o explorar nem me comportar como uma turista. Raving é um ato de amor para com as pessoas que me ajudaram a viver. Quis encontrar uma linguagem que respeitasse o que acontece nesses espaços. A reação tem sido maravilhosa — até recebo abraços na pista de dança de pessoas que vêm dizer “obrigada”. Isso é tudo.

Logo no início escreve: “O método que usei para escrever sobre raves foi descrever situações e destilar conceitos antes de a batida parar.” Como é que se traduz a urgência da pista de dança em linguagem teórica?

A linguagem pode fazer tudo. Há quem escreva sobre o início do universo — por que não sobre uma rave?

Mas o que me interessava era a forma específica como a música techno pensa. É uma arte feita com máquinas — laptops, sintetizadores, software —, e quis ver o que isso ensinava à escrita. O techno que amo não tem clímax nem catarse, é circular, anti-narrativo. Tentei escrever como quem está dentro de um bom set: o ritmo mantém-se, muda subtilmente, e o corpo pensa com o som.

Antes, a minha escrita era influenciada pelo jazz — improvisação, deriva, notas em falta. Aqui, aprendi outra cadência, mais mecânica e corporal. Foi uma maneira de pensar com o som.

“Interessam-me as pessoas para as quais a rave é uma prática colaborativa que torna esta vida suportável.”

Há uma vulnerabilidade muito presente: uma mulher trans a regressar à pista, não como observadora, mas como parte da multidão. O que significou para si ser simultaneamente sujeito e testemunha?

Quis manter um certo olhar de descoberta. O livro chama-se Raving, não DJing — é a experiência da dançarina, não da artista. Tentei mostrar o que é entregar o corpo a uma experiência coletiva.

Estruturalmente, há vinte e seis personagens, uma por letra do alfabeto. Sabemos pouco sobre cada uma — porque é assim que acontece na noite: o anonimato é parte do pacto. A história não está nas biografias, mas nas relações entre corpos.

E, claro, há pequenos episódios — encontros falhados, afetos efémeros, gestos de cuidado. Quis que fosse legível, vivo, divertido, mesmo quando experimental.

“Vivemos numa era em que o futuro parece escasso. Pensar demasiado nisso paralisa. Por isso, o que podemos organizar hoje torna-se vital. A rave cria um tempo lateral, o “tempo-k”, um desvio onde ainda podemos agir. Admitamos: o antropoceno é real. Mas, enquanto dançamos, talvez consigamos evitar os piores futuros. Uma boa festa ajuda-nos a continuar.”

Em Raving há uma cena em que oferece água a uma rapariga. Ainda sente essa necessidade de cuidar dos outros?

Sim, é uma responsabilidade coletiva. Nem toda a gente pensa assim, mas quem anda nisto há mais tempo sabe que o cuidado é parte da festa. Já cuidaram de mim também. Na rave, há momentos em que alguém precisa de ajuda — e não se pode fingir que não se vê. Ser a “mãe da rave” faz parte da minha natureza, e há ternura nisso.

McKenzie Wark © Z. Walsh

Durante a transição deixou de conseguir escrever. Como é que a sua mente mudou nesse processo?

Foi uma transformação subtil e profunda. Tomei controlo do meu corpo — das hormonas, das formas — e isso mudou tudo. Não há razão para temer essa plasticidade: o corpo é maleável, e muitos seriam mais felizes se pudessem brincar com isso.

As hormonas alteram o modo como sentimos e processamos emoções. Não é que as mulheres sejam mais emocionais, é que se relacionam de outro modo com o mundo afetivo. Essa nova relação abriu-me espaço interior: uma espécie de conforto emocional que sempre procurei. Raving nasceu desse reencontro com o corpo — um corpo que já não me expulsa.

Inventou conceitos memoráveis — “xenoeuforia”, “femunismo de ketamina”. O que é, afinal, a xenoeuforia?

A xenoeuforia é a alegria de ser estranho — o prazer de estar entre estranhos. É uma forma de dissociação que se abraça, não que se evita. Para muitas pessoas trans, a dissociação é inevitável: o corpo parece errado, o mundo trata-nos como erro. Mas, às vezes, há um modo de a viver como liberdade. É quando o corpo se torna estrangeiro, mas amável.

Quis encontrar linguagem para essas experiências estéticas que não cabem na psicologia nem na teoria política tradicional. O termo veio-me da necessidade de nomear um prazer que é, ao mesmo tempo, alienação e pertença.

“A história não está nas biografias, mas nas relações entre corpos.”

E o “femunismo de ketamina”?

Começou como uma brincadeira com o “acid communism” de Mark Fisher. Ele procurava uma utopia através dos ácidos; eu quis pensar através da dissociação — e, claro, do humor.

A ketamina é comum nas raves e, usada com cuidado, pode abrir outros modos de consciência. Pensei-a também de forma metafórica: e se usássemos esse estado dissociativo como lente estética?

O termo femunismo veio de um meme que cruzava uma foice com uma varinha mágica — necessidade e prazer. Quis criar um feminismo sensível às críticas internas ao movimento — ao racismo, ao colonialismo, à exclusão das pessoas trans — mas ainda assim celebratório. Gosto de pistas de dança centradas no feminino, não porque sejam identitárias, mas porque produzem outras formas de cuidado, graça e solidariedade. É disso que se trata: dançar com as palavras como dançamos com o corpo.

“Somos gente que precisa de se ausentar do corpo ou do mundo. O corpo parece equivocado. O mundo trata-nos como equívocos.”

O techno é o pano de fundo do livro. Como é que essa música, nascida do afro-futurismo de Detroit, moldou o seu pensamento?

O techno é música negra — e é importante repeti-lo. Não nasceu em Berlim, mas em Detroit, no fim da era industrial. Era uma tentativa de imaginar outro futuro.

No livro, concentro-me em artistas como Juliana Huxtable e Jasmine Infiniti — mulheres trans negras que reinventaram o género musical. Eu sou uma convidada não convidada nesse espaço, e tento reconhecer esse limite.

Às vezes ouço música enquanto escrevo, mas raramente techno; prefiro o silêncio ou sons ambiente. No entanto, quando ando pela cidade, ouço sets a 140 batidas por minuto — o som certo para caminhar. É uma maneira de trazer o ritmo da rave para a vida quotidiana.

A dada altura escreve que a rave é “um ambiente artificial e temporário construído pelo trabalho coletivo de muitas mãos”. Como concilia a alegria e o desespero na mesma batida?

A rave não é uma utopia. As pessoas trazem consigo racismo, transfobia, desigualdade — mesmo que não o queiram. Em Nova Iorque, quem limpa o chão das festas são quase sempre imigrantes da América Central. A festa existe dentro do sistema, não fora dele. Tentamos dobrar uma pequena esquina do mundo, criar uma bolha de amor e ritmo dentro das suas ruínas.

Há uma fisicalidade intensa — corpos, suor, lágrimas, euforia. Vem da cultura negra e da urgência de “get free”, de libertar-se, ainda que temporariamente. Não é um futuro prometido; é o que podemos fazer agora.

Vivemos numa era em que o futuro parece escasso. Pensar demasiado nisso paralisa. Por isso, o que podemos organizar hoje torna-se vital. A rave cria um tempo lateral, o “tempo-k”, um desvio onde ainda podemos agir. Admitamos: o antropoceno é real. Mas, enquanto dançamos, talvez consigamos evitar os piores futuros. Uma boa festa ajuda-nos a continuar.

“Gosto de pistas de dança centradas no feminino, não porque sejam identitárias, mas porque produzem outras formas de cuidado, graça e solidariedade.”

As ideias de Raving dialogam com festivais como o MIL, em Lisboa, que cruzam música underground, pensamento crítico e novas comunidades. Se pudesse criar uma “conversa Raving” nesse contexto, como seria?

Seria algo como o que co-curamos em Nova Iorque — o Writing on Raving, uma série de leituras que acontecem em clubes. Reunimos escritoras e pessoas que não escrevem, mas que têm histórias e conhecimento sobre o que é estar na noite. Gosto dessa mistura de saberes.

O objetivo é criar um espaço de reflexão dentro da própria festa — onde a experiência intensa da rave se possa transformar noutra forma de arte. Já publicámos uma antologia com esse nome, e talvez venha aí uma segunda.

Imagino algo assim em Lisboa: um encontro de vozes bilingues, de quem vive e pensa a música. Seria bonito — uma rave que também se escreve.

McKenzie Wark vai estar em Lisboa e no Porto para apresentar o seu novo livro “Raving”.

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Fonte: https://comunidadeculturaearte.com/entrevista-mckenzie-wark-uma-rave-e-o-que-podemos-fazer-agora-uma-forma-de-existir-entre-ruinas/