5 de dezembro de 2025
“A linguagem que se fala na padaria toca-me muito mais
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Tim Bernardes / Fotografia de Marco Lafer Isabela

São 17 os músicos de orquestra que vão acompanhar Tim Bernardes em “Raro Momento Infinito”, o espetáculo que o artista brasileiro levará ao Campo Pequeno, em Lisboa, a 26 de novembro, e ao Super Bock Arena a 29 de novembro, no Porto. Após já ter apresentado o espetáculo em São Paulo, chegou a vez de Tim Bernardes apresentar aos seus fãs em Portugal os arranjos originais, escritos por si, ao vivo: “O meu último disco, “Mil Coisas Invisíveis”, também tem arranjos, mas quando faço as turnés por aí, normalmente faço o show solo, eu com o meu violão e piano, e ainda não tinha tido a oportunidade, embora tivesse vontade, de dar vida aos arranjos originais do disco”, confessou o músico em entrevista à Comunidade Cultura e Arte (CCA). 

Quanto aos desafios dos espectáculos com orquestra em Portugal, com direção do maestro Martim Sousa Tavares, Tim Bernardes complementa que “vai ser ver como é que os músicos portugueses vão tocar, como é a dinâmica com o Martim [Sousa Tavares], mas é um show que já está levantado: as partituras, as coisas todas já vêm prontas”. Foi através do vinil “Capitão Fausto & Orquestra das Beiras” que Tim Bernardes teve conhecimento de Martim Sousa Tavares: “Tinha esse vinil e já me tinham falado muito bem dele, que era um maestro também jovem, que também falava um pouco a língua da música popular, não tão fechado no clássico. Então, foi uma escolha natural quando a gente estava pensando em quem chamar para dirigir”

Além dos espetáculos em Portugal, Tim Bernardes falou à Comunidade Cultura e Arte como foi crescer numa família de músicos – é filho do artista Maurício Pereira e irmão mais velho de Chico Bernardes – sobre como é compor também para outros artistas, neste caso Maria Bethânia e Alaíde Costa, para quem compôs, respectivamente, “Prudência” e “Praga”, mas gravados pela primeira vez para si este ano; sobre o que gosta de ler, mas sem esquecer: “Hoje em dia sou um pouco avesso à intelectualidade gratuita, ao eruditismo exagerado. Para mim, a linguagem que se fala na padaria toca-me muito mais do que algo preso a barroquismos. Gosto da música popular, do rock’n’roll, das coisas que transmitem o mistério da vida de uma maneira quotidiana, sem a ideia académica, teórica, erudita, esses formalismos”

Podemos começar pelos teus espetáculos em Portugal, acompanhados por uma orquestra comandada pelo maestro Martim Sousa Tavares. Como surgiu a ideia e quais achas que vão ser os desafios no acompanhamento por orquestra?

Na verdade, já fazia para as gravações do meu primeiro disco a solo, “Recomeçar”, os arranjos de orquestra. Estava já fazendo algumas coisas nos últimos discos d’O Terno também: arranjos de cordas e sopros. O meu último disco, “Mil Coisas Invisíveis”, também tem arranjos, mas quando faço as turnés por aí, normalmente faço o show solo, eu com o meu violão e piano, e ainda não tinha tido a oportunidade, embora tivesse vontade, de dar vida aos arranjos originais do disco. A primeira vez que consegui fazer isso foi mais ou menos há um ano e meio, dois anos, no Teatro Municipal de São Paulo, o teatro antigo da cidade, de óperas. Então transcrevi, percebi quantos instrumentistas ia precisar, fiz as transcrições dos meus arranjos para um grupo constituído por nove cordas, cinco sopros, uma harpa e juntei, também, o baixista acústico e bateria. A gente ensaiou e levantou aquele espetáculo naquela época. Pelo facto de morar em São Paulo e serem músicos daqui, foi viável porque é uma produção grande. Infelizmente, não podia viajar com toda essa produção. 

Agora, em outubro e no começo de setembro, fiz de novo esse show em São Paulo, me convidaram para uma temporada de shows num teatro bonito daqui, e a gente fez cinco shows apresentando esse repertório com uma orquestra local, um grupo de músicos e um maestro muito legal também de São Paulo. Já tinha, por isso, essa vontade de fazer o mesmo em outras cidades e, curiosamente, Lisboa e Porto são os locais em que tenho mais público depois de São Paulo e Rio [de Janeiro]: é quase que uma extensão do meu público brasileiro. Chegam a ter mais público, até, do que algumas cidades do Brasil. Foi, então, um caminho natural dos sítios em que poderia fazer a produção desse espetáculo. Vou chegar com esses arranjos prontos, vamos ensaiar com músicos portugueses, o Martim vai dirigi-los e os arranjos são meus. 

Os desafios que enfrentámos têm a ver com a necessidade de ensaiar os músicos de orquestra e afinar coisas de arranjos. Os músicos eruditos funcionam diferente dos músicos populares. Temos de deixar tudo muito bem anotado, quando é uma dinâmica mais baixa, quando se toca mais forte, então, existe esse desafio que, para mim, foi bem legal de superar e aprender mais. Embora tenha estudado música na faculdade, tenha aprendido essas coisas, não é o que uso de forma mais frequente no meu quotidiano. Quando faço arranjos, faço no estúdio, por isso é outra dinâmica, tem outro funcionamento: a hierarquia da orquestra, o maestro, essas coisas todas. Então, tivemos esses desafios até deixarmos esse show bem montado. Agora, acho que o desafio vai ser ver como é que os músicos portugueses vão tocar, como é a dinâmica com o Martim [Sousa Tavares], mas é um show que já está levantado: as partituras, as coisas todas já vêm prontas. 

Já conhecias o Martim Sousa Tavares antes deste desafio? 

Não. Os meus amigos da banda Capitão Fausto fizeram um show com ele dirigindo a orquestra. Tinha esse vinil e já me tinham falado muito bem dele, que era um maestro também jovem, que também falava um pouco a língua da música popular, não tão fechado no clássico. Então, foi uma escolha natural quando a gente estava pensando em quem chamar para dirigir. 

Tim Bernardes / Fotografia de Marco Lafer Isabela

Embora tenhas uma noção muito boa de como fazer arranjos – isso nota-se nos teus álbuns – ao mesmo tempo nos teus espetáculos, enquanto Tim Bernardes, nota-se um lado mais intimista. Lembro-me quando estiveste no Coliseu do Porto, no ano passado, e esse lado intimista ser bastante perceptível. Neste espetáculo vais ser tu com 17 pessoas em palco.

Ao fazer o show, o desafio era tentar perceber como isso poderia ser quase uma banda sonora, pensando mais em cinema. Do cantor, compositor, solista fazendo um show mais intimista. Você poder esquecer a orquestra em alguns momentos e poder se sentir mais sozinho, porque gosto de sentir que é um para um, totalmente sozinho no palco. Para mim, é muito importante ver o quanto eu consigo não perder o clima de intimidade, manter o intimismo, mas nos momentos em que a orquestra vier, poder aproveitá-la.

Isso tem a ver com o trabalho da luz, dos arranjos. São arranjos com muitos momentos em que toco sozinho e a orquestra vem para realçar uma parte da música. Isso já é uma coisa em que penso muito nos discos. Sinto que um disco meu de cantor, compositor, tem de funcionar totalmente ao violão e voz, e que um arranjo tem de vir só para reforçar alguma emoção e não para roubar a cena da intimidade da canção. 

“Os músicos eruditos funcionam diferente dos músicos populares. Temos de deixar tudo muito bem anotado, quando é uma dinâmica mais baixa, quando se toca mais forte, então, existe esse desafio que, para mim, foi bem legal de superar e aprender mais.”

O Martim Sousa Tavares também tem essa preocupação em desmistificar o lado elitista da música clássica. De fazer a aproximação até com outros estilos de música. Qual é a tua opinião? Achas que todos os estilos de músicas podem realmente se juntar, unir-se, sem haver esse tipo de preconceito? 

Acho que sim. Acho que no Brasil isso é muito praticado, também. O purismo não é muito levado a sério. A tropicália é isso. O que era um samba puro, uma música popular brasileira, foram misturados com o que estava acontecendo na época: os Beatles, a música de fora, o Jazz. No Brasil, vemos isso no resultado de muitos discos, como é bem-vinda a mistura. Isso não significa também que não ache legal ouvir alguma coisa de folclore totalmente puro, ou um samba totalmente sem influências de fora, ou a música clássica que é completamente a música erudita. Mas acho que a junção, para mim, também é tão natural quanto a existência individual desses estilos. 

Há dois temas que já tinhas composto há algum tempo: “Prudência”, para a Maria Bethânia, e “Praga” também, para Alaíde Costa.  Queres falar um pouco destes temas e do porquê de serem gravados só agora para ti?

Bom, esses temas são parte desse lado paralelo aos meus discos, quando atuo quase como um compositor para outras pessoas: já compus para a Gal Costa; o “Prudência” foi para a Maria Bethânia e o “Praga” para a Alaíde Costa. Quando me chamam, faço para alguém gravar, mas às vezes ficava essa vontade de gravar eu mesmo essa versão e  poder entrar num álbum futuro. Mas nesse caso, como tinha duas canções que eram dois sambas, elas conversavam entre elas e tinha vontade de ter alguma coisa. Gosto da ideia do compacto, de lançar um vinil pequeno com lado A e lado B e que não precise de ficar atrelado à ideia mais densa de um próximo álbum. Gosto de poder lançar umas coisas entre álbuns: EPs e coisas assim. Quando olhei para as duas juntas, senti que poderiam ser um bom parzinho para lançar, enquanto não estou fazendo o disco completo. 

Mas gostas desta ideia de ser o compositor que escreve para outras pessoas? De teres canções interpretadas por outras vozes, por outras artistas?

São coisas que não faço sempre, mas as experiências foram bem legais. Por sorte, fui convidado para compor para alguns desses mais velhos da música brasileira que admiro muito. Nunca negaria fazer uma canção para a Maria Bethânia ou para a Gal Costa. Fiz também para o Jards Macalé, pessoas assim. Para mim é legal. Tem um outro peso, é um pouco mais leve para o compositor quando você não está carregando a canção, dando a cara. Às vezes, também permite que você componha, no meu caso, pensando num personagem, numa situação, sem uma letra tão pessoal. Permite com que se fique menos fiel à sua persona, ao seu personagem, e você pode ser um pouco mais aberto.

Acho legal. Não é a minha atividade principal, mas foi sempre uma surpresa agradável quando fui convidado e aceitei fazer coisas assim. 

Consegues estipular essa diferença quando compões para outros? Sentes que consegues ser mais abrangente, sair de ti, quando compões para outros artistas? 

Penso que sim, mas por exemplo, a Gal Costa gravou uma canção que já tinha composto, a “Realmente Lindo”, e que não compus, por exemplo, pensando nela. Era, no entanto, uma canção que por mais que fosse pessoal, talvez fosse universal e fez sentido para ela. Cada canção é uma canção, é muito caso a caso. Há muitas canções mais pessoais que sinto que não fariam muito sentido serem gravadas por um outro artista. Ao mesmo tempo, a “Realmente Lindo” era e fez sentido ser gravada pela Gal Costa.

Às vezes, posso compor pensando já no que vai ser para aquela pessoa. Uma coisa que sinto às vezes quando estou compondo, como aconteceu com a “Praga”, para a Alaíde, é que não é obrigatório existir uma coerência para com a minha discografia. Posso compor  mais uma música avulsa e posso me permitir fazer uma canção que talvez, naquele momento, eu próprio não gravaria. Mas divirto-me compondo e pode fazer sentido para outra pessoa. É legal porque é a outra área do ofício de compositor. São exercícios interessantes.

Tim Bernardes / Fotografia de Marco Lafer Isabela

Mas, por exemplo, penso que no MPB havia muito essa tradição também de partilhar composições. Por exemplo, tens o caso do trio Vinicius de Moraes, Tom Jobim e João Gilberto. O João Gilberto acabou por compor, também, mas penso que foram só duas canções da autoria dele. Sentes que atualmente, nas novas gerações de artistas no Brasil, também há muita esta cultura de partilha e de colaboração? 

Acho que, curiosamente, existe menos isso. Vejo alguns casos, mas acho que o século XXI, com a nossa subjetividade, parece ser um século mais voltado para refletir sobre a individualidade, sobre assuntos íntimos, mais pessoais. A gente vê isso. O que é que as pessoas escolhem mostrar no Instagram, na rede social? A identificação faz-se pelo íntimo.

Você fala: “Ah, esse artista também escova os dentes”. Vejo muito o intimismo e a veracidade a aparecer mais na composição do nosso século. Temas mais pessoais do que externos, sejam eles quais forem. Acho que num primeiro momento isso tem muito a ver com o surgimento da canção indie, esse lado do bedroom.

Ao mesmo tempo, o pessoal do Bala Desejo já chegou dividindo bastante: vejo o Zé Ibarra e a Dora Morelenbaum cantando canções um do outro e cantando canções do Tom Veloso, eles compõem em parceria. As letras não são tão de uma profundidade individual e tem mais a ver, às vezes, com a melodia e com a partilha. Vejo que existe também esse espírito, mas noto também que talvez seja uma tendência mais, até, do nosso tempo, geracional, do que de território. 

Já quanto aos próprios Capitão Fausto, Tame Impala ou Mac DeMarco, o compositor surge voltado para dentro da própria alma e, ao retratar coisas por dentro, consegue comunicar com as pessoas que também estão tentando entender a própria interioridade. Acho que às vezes esse tipo de canção é mais difícil de ser cantada por outro que não o compositor, mas tem sempre um pouco de tudo.

Voltando a “Prudência” e “Praga” que saíram nas plataformas em abril, são sambas. Também te identificas com os primórdios do samba brasileiro, por exemplo, como o Cartola? Achas essa geração também interessante, também te influencia? 

Sim, muito, e isso desde bem pequeno. Ouvi e conectei-me muito naturalmente com o tipo de melodia, o tipo de som, o tipo de assuntos. Então o Cartola e o Nelson Cavaquinho, acho que é o tipo de samba ou de música brasileira que ouvi mais. Vem, depois, uma coisa mais do tropicalismo e coisas assim, mas em termos de composição acho que é um tipo de melodia mais antiga, mais arcaica e, ao mesmo tempo, é muito natural pelo jeito de tratar os assuntos do coração e da cabeça de uma maneira muito direta. identifico-me muito com a crueza da coisa assim. Não é à toa que relaciono isso um pouco com o rock & roll mais antigo. É uma coisa mais crua. Não sei, mas vem-me o preto e branco à cabeça.

Curioso que há uma fadista portuguesa, não sei se conheces, a Gisela João, que já fez versões de músicas do Cartola, “As Rosas Não Falam” e “O Mundo é um Moinho”. Uma das coisas que ela diz é que são sambas, mas pela crueza e pela forma de sentir as letras quase que parecem fados.

Acho que essa época do samba, o samba-canção, o samba brasileiro antes da bossa nova, revela o parentesco com a música portuguesa, que é natural. É um dos ingredientes primeiros da música do Brasil, a canção portuguesa e o ritmo e a percussão africana. Você vê em Tom Jobim o lado francês impressionista, mais da música clássica, mas esse tipo de canção popular é muito semelhante à canção portuguesa, dá para entender isso.

O “Mil Coisas Invisíveis”, o teu último álbum de originais, foi nomeado ao Grammy Latino 2003, na categoria de melhor álbum de música popular brasileira. Já o apresentaste em Portugal no ano passado, nos Coliseus do Porto e Lisboa, e voltaste a reforçar que este é um disco com muitos mistérios e muito metafísico. Chegaste a dizer isto: “As canções que vinha escrevendo falavam sobre o mistério inconsciente e o que é estar aqui, o que é falar desse lado metafísico.” Há muita filosofia aqui. Isto é extremamente filosófico. 

Sim, penso que sim. Não há nenhuma intenção em falar sobre filosofia, é um impulso, um ímpeto natural humano, uma curiosidade quase mística nossa de tentar entender o que é isso, o que está acontecendo aqui. Ainda mais vocês em Portugal, se você lê as coisas do Fernando Pessoa, tipo um “Livro do Desassossego” [do semi-heterónimo Bernardo Soares], percebe que é um tipo de reflexão que é muito humana, que vai do filosófico, encosta no metafísico, no místico, no religioso, no quotidiano, no banal, no social. São coisas para as quais a gente tem uma curiosidade inata.

Tim Bernardes / Fotografia de Marco Lafer Isabela

A altura do Covid fez-te pensar mais nisso? 

Acho que sim. Não sei se me fez pensar mais, ou se foi um momento de menos estímulos em que essas reflexões mais essenciais, que talvez fiquem ofuscadas pelos murmúrios do dia-a-dia, começaram a surgir. Você fica mais contemplativo quando está agindo menos, falando menos, pensando menos, então você começa a reparar o que está por baixo das atividades todas.

Quais são os temas sobre os quais te interessa ler, quais são os livros que mais te interessam ler?

Sou um leitor meio curioso porque como passo muito tempo tocando ou ouvindo música, buscando discos e coisas assim, o formato de letra, de música é uma coisa que me afeta muito. Depois, entendi que os livros que gosto muito de ler têm a ver, por um lado, com música, biografia, informação e o tentar aprender mais; por outro lado, gosto mais de coisas ensaísticas ou teóricas do que romances. Gosto muito de ler psicologia, gosto de ler bastante Jung, metafísica, poetas que são mais espirituais ou metafísicos: o Fernando Pessoa, para mim, é um exemplo de um desses poetas, assim como a Clarice Lispector. Sinto que é por aí. Leio, normalmente, coisas relacionadas com a cultura pop, música, ou coisas mais profundas de filosofia, psicologia e metafísica.

“Gosto da música popular, do rock’n’roll, das coisas que transmitem o mistério da vida de uma maneira quotidiana, sem a ideia académica, teórica, erudita, esses formalismos.”

 Em Portugal, interessas-te muito por Fernando Pessoa?  

Sim, mas não sou um grande conhecedor. Não li Camões, não sei. Não sou primordialmente um leitor, sou muito focado em música e leio o que me fisga, com o que sinto uma conexão natural. Sou assim com música também, não perco muito tempo tentando ler um livro se ele não me está cativando e o Fernando Pessoa me cativou de cara.

O Valter Hugo Mãe é outro escritor português dos novos que me emocionou muito e é uma coisa rara eu ler romance. No caso dele, no entanto, fiquei muito emocionado com “O Filho de Mil Homens”.

A poesia, por exemplo, tem muito de música. O ritmo da poesia, as palavras também podem ter música. 

Sim mas, ao mesmo tempo, também são universos diferentes. Não escrevo, muitas vezes, as minhas letras, decoro elas. Para mim, a palavra é falada, é oral, é cantada. Não precisa ser escrava da forma como ela é distribuída no papel. O funcionamento dela é prático, não é teórico.

Se formos, por exemplo, às histórias conhecidas pelo povo, as histórias que são mais conhecidas são precisamente aquelas que passaram de geração em geração pela oralidade, não foram escritas. 

São Paulo é uma cidade intelectual, tem a Universidade de São Paulo (USP) e é, de facto, uma cidade mais intelectual. A minha formação e a do meu pai é um pouco assim também. Acho que por causa disso, hoje em dia sou um pouco avesso à intelectualidade gratuita, ao eruditismo exagerado. Para mim, a linguagem que se fala na padaria toca-me muito mais do que algo preso a barroquismos. Gosto da música popular, do rock’n’roll, das coisas que transmitem o mistério da vida de uma maneira quotidiana, sem a ideia académica, teórica, erudita, esses formalismos.

Chegaste a dizer também no Coliseu do Porto (o que concerto a que assisti) que o tema “Meus 26” foi escrito em Lisboa. Queres falar um bocadinho sobre o processo de escrita desta música?

Tenho, realmente, essa lembrança de estar num quarto de hotel em Lisboa – já tinha começado essa música, mas tinha poucos versos – de me sentar e tocar ela num quarto de hotel perto da Avenida Liberdade, e fluíram alguns versos novos. Esse disco tem muito a ver com isso também, não tinha muita pressa de terminar. Por exemplo, “Meus 26” deve ter levado uns quatro ou cinco anos para completar. A “Balada de Tim Bernardes” também foi assim que comecei. Sabia que queria coisas mais ou menos assim, dentro da canção, mas não tinha pressa de achar as palavras que sabia que iam encaixar ali.

Tim Bernardes / Fotografia de Marco Lafer Isabela

Cheguei a entrevistar o teu irmão, o Chico Bernardes, quando esteve em Portugal, em 2020, no “Espaço Miguel Torga”, em São Martinho de Anta, Trás-os-Montes e Alto Douro, e cheguei-lhe a perguntar se era verdade que quando era mais jovem não esperava seguir música. O teu irmão respondeu o seguinte, que “não tinha uma ideia muito consolidada, mas a minha família, como deves saber, é cheia de músicos. Achava que já tinha músicos demais na família.” Quanto a ti, como foi viver numa família a transbordar de música?  

É difícil responder porque, para mim, era natural. Não sei como é uma família que não tem um pai músico, e quando comecei a virar músico, era na verdade só o meu pai. Depois vim eu e, depois, veio o Chico. O que reparei é que tinha um interesse natural por música que foi crescendo vertiginosamente e, quando chegou a época do vestibular, já estava entendendo que queria dedicar todo o meu tempo a isso. Já dedicava todo o meu tempo à música que consumia toda a minha energia vital, mas o meu pai tinha uma coisa muito legal: ele incentivava, mas não direcionava. Ele via que a gente gostava e dava os recursos ou punha numa aula, apoiava a gente se quiséssemos fazer algo com a música, mas ele não achava que tínhamos de ser músicos. 

Cresci com um gosto musical diferente do meu pai, muito mais para o rock’n’roll e o tropicalismo, enquanto o meu pai era do jazz, mais da poesia. Mas tem os seus desafios também. Quando você vai virando uma pessoa pública, ou começa a fazer algum sucesso ou a ter destaque, existe o desafio de, por exemplo, começar a ficar mais conhecido do que o meu pai, coisas assim. Tem uma série de coisas malucas.Mas acho que o bom é crescer num ambiente muito musical. Tocava nos teclados, tinha violões e coisas assim. Desde o meu um ano de idade que já tinha isso na minha casa. Estava acostumado a ficar no teatro enquanto o meu pai estava passando som. Quando tinha 15 anos, o meu pai me levava para ser roadie da banda dele. Então, pude crescer num ambiente musical do qual gostava e que, para mim, era estimulante. Conviver com o meu pai também me ensinou muito. Ele tem um tipo de pensamento de autor que acho que vai pegando por osmose: o jeito com que ele observava as coisas, as analogias, as comparações que ele fazia, ele pensava muito em música. Ele é muito um filósofo amador, de certa forma, da cidade de São Paulo, então foi muito bom. O Chico também foi uma revelação muito interessante: é oito anos mais novo do que eu, então cuidei muito do Chico como um irmão mais velho. Começou a tocar mais velho um pouco, tinha uns 13, 14 anos. Ele não começou de pequeno, mas ficou muito bom muito rápido, então foi uma surpresa. O Chico é uma coisa mais recente, na percepção de um irmão mais velho, claro.

“Uma banda é como um gangue, a gente atravessou a casa dos nossos 20 anos como uma equipa. Então, aos 30 anos, é normal adquirir um pouco essa emancipação, a própria independência, cada um com a sua vida independente. Acho que é natural que chegue um momento em que você quer também não ser só parte de um coletivo, poder entender um pouco melhor a sua individualidade.”

Quanto ao grupo O Terno, queres falar um pouco sobre o fim da banda? Se é um fim definitivo, se não é? 

A forma como comunicámos e anunciámos foi como um hiato por tempo indeterminado. Tocámos juntos por quase 15 anos e quando chegou a pandemia a gente estava lançando o “Atrás/ Além”: já tínhamos a sensação de que íamos gostar de fazer uma pausa depois do “Atrás/Além” e, n’O Terno, a gente sempre teve uma lógica de trabalho como a prioridade total. Isso funcionou muito para O Terno e acho que se não houvesse essa prioridade total – era o projeto principal de nós os três – seria difícil conseguirmos tudo o que conseguimos. Mas já tinha essa vontade. Então, depois da pandemia, a gente ainda queria fazer uma turné encerrando o ciclo do “Atrás/Além” e aí sim, íamos anunciar esse hiato porque sentíamos que a chama inicial que fez a gente ser uma banda já tinha consumido o que tinha para consumir, que a gente tinha feito o que a gente tinha de fazer.

Ao mesmo tempo, como ainda somos muito amigos – somos dos melhores amigos e tudo –  ainda tocámos, ainda temos conexão musical e tocamos bem juntos. A gente não quis também falar que é um fim total, porque se a gente resolver em algum momento fazer mais coisas juntos, então fica meio no ar. A gente se vê bastante, fazemos coisas, tocamos em outros projetos às vezes juntos. Uma banda é como um gangue, a gente atravessou a casa dos nossos 20 anos como uma equipa. Então, aos 30 anos, é normal adquirir um pouco essa emancipação, a própria independência, cada um com a sua vida independente. Acho que é natural que chegue um momento em que você quer também não ser só parte de um coletivo, poder entender um pouco melhor a sua individualidade. Nós três sentimos isso. 

Mas ainda foram 15 anos, pode-se dizer que houve uma geração que cresceu convosco.

Acho que sim, porque quanto às questões que a gente tinha nesse nosso crescimento, outras pessoas iam-se identificando. Sentimos isso, sim, que o público acompanhou o amadurecimento também. Aconteceu dos dois lados do palco.

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Fonte: https://comunidadeculturaearte.com/entrevista-tim-bernardes-a-linguagem-que-se-fala-na-padaria-toca-me-muito-mais-do-que-algo-preso-a-barroquismos/