 
                DAVI MOLINARI
Cheguei ao Fale Mais Sobre Isso e, logo na porta de entrada, me deparei com o sorriso aberto e o abraço afetuoso de Juvenal, que foi logo me acusando de traidor.
— Você é o Joaquim Silvério dos Reis ou Eduardo Bolsonaro? — brincou, ao me receber. — Soube que esteve em outro bar em Brasília, a terra do tapinha nas costas, e nos deixou aqui, eu e o Doutor, sozinhos. Sua ausência foi notada.
Antes que pudesse chegar à mesa onde eu pretendia filar mais uma consulta gratuita com o psicanalista, guru de todas as emoções, me dirigi a Juvenal e respondi:
— Que bom que minha ausência foi notada. Seria bem antiético se vocês dois — disse, apontando ao psicanalista — não falassem sobre mim em meus horários. Afinal, a psicanálise é “amoral”, não é, mesmo? Não julga, apenas se alimenta do drama alheio. Seria a Ética da Singularidade do meu bolso, se eu pagasse pela sessão.
Juvenal me acompanhou até o Doutor. Ele estava sentado no mesmo canto de sempre, a caderneta fechada sobre a mesa, os óculos escorregando levemente pelo nariz e um ar de quem já sabia o diagnóstico antes da anamnese. Sentei e o cumprimentei efusivamente, mas ele, como sempre, usou a modéstia como reciprocidade. Apenas ergueu uma sobrancelha e fez aquele meio aceno com a cabeça — gesto que mistura tolerância, ironia e cobrança. Não sei se por timidez ou por não querer reforçar o processo de transferência ao qual eu já estava entregue, plenamente.
— Doutor, não sou um traidor… encontrei um psicólogo em Brasília, mas ele era apenas meu amigo. Minhas sessões serão sempre aqui, no Fale Mais Sobre Isso. Aliás, a traição me perturba profundamente. É quase um complexo de Édipo às avessas, em que a gente não mata o pai, mas ele te vende por um perdão de dívidas, tipo o Silvério dos Reis.
O Doutor pegou a caderneta com calma metódica, ajeitou os óculos com o indicador e escreveu alguma coisa do tipo necessidade de atenção ou sentimento de culpa. O rosto impassível — apenas o movimento do queixo denunciava que estava se divertindo comigo.
— Eu sei que é meio exagerado, mas eu nunca faria como o senador Flávio Bolsonaro em pedir a Trump que bombardeasse a nossa própria mesa, a Baía de Guanabara, ou o que fosse! — Juvenal, cadê o combo de manjubinhas e chope? — gritei. — Aliás, isso me produz uma raiva incalculável. É a Pulsão de Morte freudiana voltada para a soberania nacional!
Como coadjuvante terapêutico, Juvenal acompanhava minha sessão enquanto servia a combinação preferida de todos os deuses e fadas do Fale Mais Sobre Isso: manjubinhas crocantes e chopes espumantes. Ele mirou os olhos do Doutor e disparou:
— Doutor, nosso cliente é, acima de tudo, um homem ético que age de acordo com o que diz e pensa. Uma coerência que não se encontra na Comissão de Ética da Câmara dos Deputados — aqueles covardes que arquivaram o processo de traição de Eduardo Bolsonaro por 11 a 7.
O Doutor ajustou o relógio no pulso, desviou o olhar para a espuma do chope e fez um discreto gesto com a mão, como quem autoriza o paciente a continuar.
— Sim — eu disse —, como pode ser chamada de Comissão de Ética? Se bem que até a máfia tem sua própria moral. É a moral do grupo, Juvenal, particular e mutável.
O Doutor inclinou ligeiramente a cabeça para o lado — aquele gesto sutil de quem diz “siga”, mas com uma ironia quase paternal.
Ele anotou algo e, ao final, tamborilou os dedos sobre a caderneta — tic nervoso de quem está se contendo para não diagnosticar em voz alta.
— O Paulo Figueiredo, outro traidor de provocar iras imensuráveis, acredita piamente que os bilionários lhe devem dinheiro pela campanha de provocar os ataques à democracia brasileira a partir de Orlando. O pobre neto riquinho de ditador tem dificuldades para manter o custeio da casa e implora por PIX dos empresários. Ele está vivendo uma neurose de abandono com cifrões!
O Doutor anotou, ergueu o olhar por cima dos óculos e fez aquele trejeito de lábios comprimidos que significa: “isso é sério, mas eu entendo o sarcasmo”.
— O que mais me perturba é o fato de muita gente ter dado a própria vida pela liberdade, para que esses tipos de gente, de adjetivos impronunciáveis, usassem a democracia para envenenar a nação brasileira por dentro. Eles não se conformam com o resultado das eleições, com a escolha que nós, aqui do Fale Mais Sobre Isso, fizemos. Então eles, como Calabar ou Silvério dos Reis, nos traem. São os X9… Isso aqui devia ser uma zona neutra, mas a fúria deles contamina até o meu chope. A nossa pulsão de vida coletiva, que é a democracia, está sendo sabotada pela pulsão de morte deles — o golpismo.
O Doutor limpou os óculos com o guardanapo — sinal claro de que a sessão estava chegando ao clímax. Me olhou sem pressa, como quem pesa cada palavra antes de desmontar o mundo interno do paciente.
— Só teremos um final apoteótico, Doutor, quando os traíras voltarem para a insignificância de onde vieram, quando a verdade do inconsciente deles for confrontada com a Responsabilidade Singular de seus atos. O que, convenhamos, nunca vai acontecer, sem o povo nas ruas. E essa é a minha eterna frustração.
O Doutor então me olhou fixamente, deu um longo gole no chope, respirou fundo e soltou a frase atômica:
— Você não está revoltado só com a traição. Está é com inveja do sossego de quem faz sujeira sem peso na alma.
Fiquei mudo. A manjubinha engasgou. O Doutor pousou o copo, levantou uma sobrancelha e, com um único e silencioso gesto da mão, pediu outra rodada a Juvenal, que sorriu, cúmplice.
Juvenal suspirou e concluiu, enquanto servia dois chopes:
— No fim das contas, o Brasil só vai se curar quando parar de perdoar quem o trai em nome de uma falsa esperança.
Publicado originalmente em Divã no Boteco – LIV. Enviado pelo autor.
Fonte: https://horadopovo.com.br/traicao-abala-etica-do-fale-mais-sobre-isso/

 
                             
                             
                             
                             
                            