Barricadas, carros incendiados, bombas e tiros de fuzis. O cenário de guerrilha urbana visto no Rio de Janeiro nesta terça-feira (28) é o reflexo visível do confronto entre o crime organizado e o poder público. Enquanto as facções ocupam as comunidades com a imposição de um poder paralelo baseado na violência e no terror, o Estado procura meios de retomar os territórios dominados, onde serviços básicos, proteção e moradia são cobrados pelos criminosos.
A trincheira intransponível pelas forças de segurança nos morros cariocas é a concretização da velha máxima de que o crime ocupa a ausência do Estado. Com o fortalecimento de facções como o Comando Vermelho, a retomada do controle total das áreas ocupadas por traficantes e milicianos parece uma utopia na Cidade Maravilhosa.
Em entrevista à Gazeta do Povo, o ex-secretário da Segurança Pública do Paraná e delegado da Polícia Federal (PF) Wagner Mesquita explicou que a cidade do Rio de Janeiro possui duas características principais que possibilitam o domínio territorial das facções criminosas: a falta de hegemonia dentro do crime organizado e a urbanização desordenada das favelas controladas.
Ele comparou a atuação do Comando Vermelho das comunidades cariocas com a do Primeiro Comando da Capital (PCC), facção nascida nos presídios de São Paulo, que domina o crime organizado no estado paulista com infiltração no poder público, por meio da corrupção, lavagem de dinheiro e até com a presença em licitações.
“O Comando Vermelho predomina, mas não é hegemônico. Nós temos outras facções que também têm acesso a drogas e armas dentro das favelas, que é um lugar em que o Estado não existe. Não existe rua, não existe calçada, não existem serviços públicos, não existe nada. Existe só aquele aglomerado de pessoas vivendo em condições precárias e sob as ordens da criminalidade”, comentou.
Apesar de as áreas de pobreza serem comuns em todo o país, Mesquita afirma que a grande diferença é que no Rio de Janeiro existe uma total ausência do Estado e a impossibilidade de entrada dos serviços públicos mais básicos de segurança, saúde e educação nos territórios sob o controle das facções ou das milícias. “Em outros estados, existem áreas pobres, invasões e áreas dominadas pelo crime, mas não existe um local em que a polícia não faça patrulhamento. Se for chamada, ela vai lá atender a ocorrência. A PM vai fazer o patrulhamento”, compara.
“Tanto a milícia quanto o tráfico exploram a população para que ela fique dessa forma. É conveniente que seja assim. Hoje, o tráfico já constrói barracos, a milícia constrói prédios. Recentemente, de forma corajosa, a prefeitura do Rio de Janeiro destruiu empreendimentos imobiliários da milícia”, acrescenta o delegado da PF.
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Traficantes recebem treinamento de guerrilha urbana, aponta coronel
A megaoperação policial para prender 100 traficantes nos complexos do Alemão e da Penha, na zona norte do Rio de Janeiro, resultou em 64 mortes até a publicação desta reportagem, sendo quatro policiais, o que torna essa a operação mais letal já registrada no Rio de Janeiro. Durante o confronto, a facção criminosa chegou a utilizar drones para lançar bombas nos policiais cariocas.
Coronel da reserva da Polícia Militar do Rio de Janeiro, Clayton Silva afirma que investigações apontam que integrantes do Comando Vermelho receberam treinamento de ex-policiais e são equipados com armamentos pesados por meio do tráfico de armas. “Esses marginais conseguem conjugar, reunir alguns fatores que classificam as suas ações como terroristas, entre elas a utilização de táticas de guerrilha e a conduta de patrulha […] Essas pessoas já têm conhecimento de práticas das forças regulares”, comentou.
Com mais conhecimento, ele ressalta que o crime organizado passou a utilizar novas técnicas para a construção de barreiras que impedem a chegada dos blindados, com seteiras, perfurações nos muros para observação e para colocar os fuzis durante a troca de tiros.
“Não é mais barricadas de chamas em pneus; eles fazem grandes construções arquitetônicas. Não tem mais um dormente de trem fincado no chão. Há grandes dispositivos que abrem e fecham para impedir a entrada de veículos blindados, anteparos construídos de forma a ter uma verdadeira fortificação. O relevo do Rio de Janeiro também é muito propício, bem diferente de fazer uma incursão em favela plana”, compara o coronel.
Segundo ele, as ações são práticas de guerrilha urbana provenientes do conhecimento repassado por agentes da segurança pública, o que também aponta para a infiltração das facções no poder público, seja por meio da corrupção ou pelo acesso a informações privilegiadas.
“Isso caracteriza um narcoestado. Já tivemos um representante na Alerj [Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro] preso por envolvimento com tráfico, milícia, o que também favorece muito a entrada desses armamentos”, lembrou Silva, sem citar o nome do deputado estadual TH Joias. O parlamentar foi preso no início de setembro acusado de envolvimento com o Comando Vermelho.
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ADPF das favelas “deu fôlego” para crime organizado no Rio de Janeiro
Para o ex-secretário de Segurança Pública do Paraná e delegado da PF Wagner Mesquita, a “ADPF das favelas”’ foi “preponderante” para o fortalecimento do crime organizado nos morros dominados pelas facções no Rio de Janeiro. Durante aproximadamente cinco anos, a ADPF 635 — sob relatoria do ministro Edson Fachin — restringiu as ações policiais nas favelas
“Isso possibilitou o crescimento dessas facções nos últimos anos de maneira exponencial. Deu fôlego e tempo para que as facções do Rio de Janeiro conseguissem capitalizar, comprar mais armamento e expandir a atuação para outros estados”, avalia Mesquita.
Ele lembra que o Complexo do Alemão, local da operação desta terça-feira (28), se tornou um refúgio para criminosos foragidos de outros estados, justamente pela proteção imposta pela “ADPF das favelas”. “A situação que chegou a esse ponto tem nome e sobrenome: é a ADPF 635. As facções não chegariam a esse ponto entre si e contra o Estado sem o gás, sem o tempo necessário para se organizar, comprar armamentos e munições.”
Fonte: https://www.gazetadopovo.com.br/brasil/por-que-o-crime-organizado-mantem-dominio-territorial-no-rio-de-janeiro/
