1 de novembro de 2025
Como são as torturas do Comando Vermelho, denunciadas pelo MP
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A decisão da 42ª Vara Criminal do Rio de Janeiro que autorizou a prisão preventiva de dezenas de membros do Comando Vermelho e embasou a Operação Contenção, realizada na terça-feira (28) nos complexos do Alemão e da Penha, apontou a ocorrência de uma série de torturas a moradores por parte de membros da facção.

O juiz Leonardo Rodrigues da Silva Picanço citou diretamente o caso de uma mulher que foi obrigada a permanecer dentro de uma banheira de gelo como punição por ter, segundo os criminosos, arrumado confusão em um baile funk. Já em outro caso, um membro do grupo foi amarrado e arrastado por um carro durante vários minutos por supostamente ter passado informações a uma facção rival.

Mas os métodos de tortura e execução empregados pelo Comando Vermelho são variados e utilizam violência extrema para impor medo, punir “desvios de conduta”, eliminar rivais e reprimir moradores que se oponham ou denunciem suas atividades. Frequentemente as sessões de tortura são gravadas e repassadas em grupos de troca de mensagens para funcionar como “recado” à comunidade.

A Gazeta do Povo apurou junto a fontes da segurança pública do Rio de Janeiro quais são os métodos mais comuns de tortura e abusos contra moradores inocentes e até mesmo membros da facção.

Castigos públicos

Os castigos públicos são um dos principais métodos do Comando Vermelho e normalmente não acabam em morte. O objetivo da facção é marcar temporária ou permanentemente a vítima para servir como um aviso a toda a comunidade, deixando claro o que não será tolerado pelo grupo criminoso.

Um desses crimes consiste em arrancar ou raspar os cabelos das vítimas. Apesar de a medida normalmente ser aplicada a mulheres por recusa a se envolverem afetiva ou sexualmente com lideranças do crime, em janeiro quatro mulheres tiveram os cabelos raspados por, segundo os traficantes, participarem de um “grupo de fofoca” em um aplicativo de mensagens.

Outros castigos públicos envolvem tiros nas mãos e/ou nos pés, mutilações e até mesmo o arrastamento das vítimas presas a veículos. No caso mencionado pelo Ministério Público na denúncia que originou a operação policial recente, enquanto o homem era arrastado por um carro, a cena foi transmitida ao vivo para o traficante apelidado de “BMW” enquanto o criminoso “faz piada do sofrimento alheio, debochando da vítima agonizante”, mencionou a Promotoria na denúncia.

Como explica à Gazeta do Povo o delegado Fabrício Oliveira, coordenador da Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil (Core), o Comando Vermelho tem a prática de torturar pessoas na presença de familiares e, sempre que possível, filmar o crime para difundir entre os moradores.

“O objetivo é fazer a vítima sofrer ao máximo e que outros testemunhem esse sofrimento para conseguirem subjugar essa população pelo terror. Então as pessoas ficam aterrorizadas, morrendo de medo de serem as próximas vítimas, de fazerem ou falarem qualquer coisa que possa ser interpretada negativamente por esses traficantes”, explica Oliveira. 

Criminosos fazem chamada de vídeo para mostrar a líder do tráfico tortura de homem arrastado em carro (Foto: Ministério Público do Rio de Janeiro)

Execuções após veredito dos “tribunais do crime”

O assassinato de moradores e mesmo de membros do Comando Vermelho acontece graças aos “tribunais do crime”, em que lideranças do tráfico em uma determinada comunidade julgam a conduta das vítimas e definem o castigo. A pena de morte normalmente acontece com delatores (moradores que colaboraram com a polícia ou grupos rivais), devedores do tráfico e dissidentes da facção.

“A ausência de processo legal é a marca de um poder que se coloca acima de qualquer lei. O objetivo é duplo: eliminar opositores e usar a morte como um espetáculo público para aterrorizar e garantir a obediência dos sobreviventes”, diz o coronel da Polícia Militar do Rio de Janeiro (PMERJ) Fábio Cajueiro, ex-comandante de operações.

As execuções acontecem normalmente por fuzilamento, enforcamento ou “micro-ondas” – uma das mais brutais formas de tortura e execução, da qual foi vítima o jornalista Tim Lopes em 2002, no Complexo do Alemão.

Na denúncia recente, o Ministério Público mencionou o caso de um “vapor” – na linguagem do tráfico, o vendedor de drogas que fica no ponto de venda, conhecido como “boca de fumo”. O rapaz foi assassinado a tiros por ordem de uma liderança do tráfico conhecida como “Gardenal” porque teria perdido um carregamento de drogas. Gardenal ordenou que o gerente do tráfico local matasse o rapaz “na frente de geral”, para dar exemplos aos demais.

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Outros abusos contra moradores

Entre outras práticas de tortura ou abusos por parte de membros do Comando Vermelho contra a comunidade estão sessões de chicotadas, chineladas e pauladas, choques elétricos e abuso psicológico para aterrorizar a comunidade. A exploração sexual também acontece, normalmente com os líderes do tráfico forçando jovens, muitas vezes menores de idade, a relacionamentos amorosos – ou ameaçando familiares que se opõem à relação – ou a se envolverem em prostituição ou em bailes funk.

Além das torturas e explorações, há uma série de outras situações a que os moradores estão sujeitos, como a obrigação de ceder suas casas para armazenamentos de armas e drogas ou para criminosos armados permanecerem, e o uso de viciados como mão de obra escrava para o tráfico.

Comando Vermelho tem estrutura diferente do PCC, o que favorece violência ainda maior

A estrutura organizacional do Comando Vermelho difere de outras grandes facções, principalmente o Primeiro Comando da Capital (PCC). Como a facção originada em São Paulo possui uma cadeia de comando centralizada, com funções definidas (gerais, regionais, disciplina, finanças etc.) e comunicação padronizada, as decisões estratégicas passam por uma cúpula reduzida. Ou seja, o alto grau de hierarquia acaba gerando um controle maior das ações.

Já o Comando Vermelho tem uma estrutura totalmente descentralizada. Os chamados “chefes do morro”, que dominam os complexos, têm ampla autonomia em seus territórios e formam alianças entre si para decisões coletivas. Isso permite que cada favela tenha suas próprias regras para lidar com “insubordinações” de moradores, delações ou deserções. 

Na prática, essa forma de organização faz com que as lideranças que comandam as favelas só deixem seus cargos quando depostas à força por concorrentes. Para manter o poder e evitar traições, essas lideranças exploram a violência a fim de manter o controle da comunidade e a disciplina da “tropa”.

Além disso, o Comando Vermelho tem raízes em ideais revolucionários. Seu surgimento partiu da convivência dos fundadores da facção com presos políticos no presídio da Ilha Grande (RJ), resultando na transferência de uma série de técnicas e doutrinas de guerrilha revolucionária para o mundo do crime. Essa doutrinação de resistência à repressão do Estado é decisiva nos confrontos com as forças de segurança. Via de regra, os “soldados do tráfico” são proibidos de abandonar posições e armamentos, mediante ameaças de punições diversas.

“Na comparação com outras facções, os integrantes do Comando Vermelho são mais hostis, agressivos e covardes, não respeitando nem idosos, mulheres e crianças, que são usados como escudos humanos com frequência”, diz o coronel da PMRJ. “A presença de cemitérios clandestinos, para descarte de cadáveres das vítimas, em quase todas as favelas, aumenta o terror psicológico desses criminosos sobre a população”, prossegue Cajueiro.

Governo Lula resiste em classificar Comando Vermelho como organização terrorista

Mesmo diante da barbárie crônica que atinge moradores, policiais e grupos rivais, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, afirmou nesta quarta-feira (29) que o governo Lula não pretende equiparar facções criminosas a organizações terroristas.

Por conta dos números de violência e do espalhamento do Comando Vermelho por outros estados, o secretário da Polícia Civil do Rio de Janeiro (PCERJ), Felipe Curi, afirmou nesta sexta-feira (31) que é preciso modificar a classificação da facção não mais apenas como uma organização criminosa, e sim como terrorista.

“É preciso que haja uma mobilização nacional no sentido de combate a essa organização que não é mais criminosa, é uma organização terrorista, com práticas terroristas, com táticas de guerrilha, que dão ordens para execução de desafetos e de agentes públicos, que oprimem o morador da comunidade”, declarou.

Fonte: https://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/comando-vermelho-como-funcionam-torturas-que-motivaram-operacao-rio-de-janeiro/