Nos últimos anos, tem havido uma atenção redobrada à música independente que se faz na Dinamarca. Se, há algum tempo, já tínhamos a presença de bandas como os Efterklang ou os Iceage, agora a cena está a virar-se para algo mais misterioso, apesar de tão prosaico como o dia-a-dia. É música que encontra as vilosidades estranhas e por vezes escondidas do quotidiano e as resgata para o plano visível — ou, neste caso, audível — enriquecendo-o. Apesar de haver artistas mais acessíveis, como o prova o R&B de Erika de Casier, nomes como ML Buch (que tivemos oportunidade de ver há uns meses) ou Astrid Sonne normalmente rejeitam as opções mais fáceis.
Isso traz-nos às Smerz, que se incluem nesta última categoria. Apesar de não serem dinamarquesas, mas sim norueguesas, este duo passa uma boa parte do seu tempo em Copenhaga, acabando quase por ser um membro honorário desta cena. E, agora, bastante aclamado devido a Big City Life, lançado no início deste ano. Inclusive, saiu ontem um disco de reedições desse álbum, que inclui todas as artistas mencionadas anteriormente e ainda o vocalista dos Iceage, Elias Bender Rønnenfelt.
Como sempre, o olho da ZDB está sempre posto neste tipo de fenómenos que normalmente causam alguma comoção nos melómanos mais atentos. É por isso que este concerto das Smerz sobre o qual discorremos sucedeu perante um B.Leza cheio. As pessoas acudiram em força para ouvir a sua pop invulgar, ocasionalmente dançável, ocasionalmente soturna, mas sempre cativante.

Mas antes, a abertura do concerto ficou a cargo de Girls 96. Entraram em palco ao som dos Tears for Fears, com o clássico “Everybody Wants to Rule the World”, provavelmente escolhido no tom pós-irónico de quem sabe que é realmente uma canção excelente. O que se seguiu teve pouco a ver com Tears for Fears — tirando talvez “Ainda Importa”, que, com uma outra produção, tinha potencial para ser um hit dos anos 80. Girls 96 são um duo composto por Paloma Moniz e Ricardo Gonçalves, e têm apenas 8 músicas editadas até hoje, desde que se apresentaram pela primeira vez no ano passado. Foi por isso que Ricardo nos foi relembrando ao longo do concerto de que o mesmo seria “curtinho” — mesmo tendo contado com uma versão esparsa mas musculada de “Thank You”, da Dido. Apesar disso, a sua música é intensa o suficiente para deixar uma marca.

A atitude blasé dos músicos serve quase como contraponto de uma performance sufocante, em que há pouco espaço vazio. Entre os sintetizadores de tons graves, as vozes arrastadas dos artistas, o fumo que enchia a sala do B.Leza e as luzes faiscantes a desorientar-nos, não há escapatória das suas músicas densas que tocam na música de dança eletrónica e no electroclash. Felizmente, não queríamos escapar, principalmente quando as batidas ficavam mais aguerridas, como no combo vencedor que fechou o concerto com “Obcecada” e “Ficas no Chão”. Desde a última vez que os havíamos visto, num pequeno showcase durante a primeira entrega de sempre dos Prémios Futura, notou-se uma franca melhoria em termos de atuação, o que nos deixa intrigados relativamente ao que se seguirá para Girls 96.
Se inicialmente achámos que o concerto pudesse ser demasiado intenso para servir de abertura, essa mesma intensidade funcionou como uma ótima limpeza de palato, que efetivamente situou a nossa mente na sala de concertos em que estávamos e não noutro lado qualquer. Assim, ficámos plenamente prontos para experienciar o concerto de Smerz, que tem o seu quê de onírico e inquietante. Foi a bateria forte de “But I Do” que lhe deu início, numa versão menos produzida que em estúdio, adicionando textura à canção. Aliás, em geral, a bateria tornou as versões de quase todas as músicas mais orgânicas, apesar de por vezes se sobrepor um pouco na mistura de som. Por outro lado, o baixo complementou-a, permitindo a banda entrar nos grooves que tornam as suas canções tão sinuosas.

Catharina Stoltenberg e Henriette Motzfeldt, o duo responsável por elas, interpretam as suas canções como se se tratassem de extensões de si mesmas. Esguias, pouco dadas a devaneios, aparentemente indiferentes, mas capazes de seduzir a plateia nos momentos certos, vão-se revezando nas vozes e nos lugares que ocupam em frente ao microfone ou às teclas. As músicas seguem-se quase sem pausas entre si, por vezes em versões alteradas ao vivo — por exemplo, a primeira metade de “Feisty” foi interpretada de forma mais jazzy e o sintetizador que a fecha em disco foi substituído pelo baixo. Esse espírito livre do jazz permeou outros momentos, como as teclas desconstruídas tocadas a certa altura por Henriette e que acabaram por desembocar em “Big City Life”.
Por mais que tenhamos adorado os grooves já mencionados, os momentos mais lentos do concerto revelaram-se consistentemente como os mais bonitos e envolventes. Um exemplo foi o R&B esparso de “Win”, cuja sensualidade era ligeiramente desconcertante, quase como se fosse um produto produzido em IA e pleno de artefactos. Apesar de isto soar como um insulto, garantidamente não o é. Com pouco mais do que a voz de Henriette e a batida de um drum pad, fez-se um momento quase irreal e irrepetível. Outro belíssimo exemplo foi a balada de término de relação, “A Thousand Lies”, com as suas teclas espiraladas a pontuarem uma das performances vocais mais emotivas da banda.
De seguida, “Easy”, a canção que fecha Big City Life com ginga de hip hop adquiriu ao vivo uns laivos de slowcore em termos de melodia, também conhecida como melancolia à anos 90. “Have I said too much?”, repetia Catharina, sabendo perfeitamente que pouco revela. Os momentos em que tanto ela como a sua companheira de banda mais revelam são exatamente os momentos menos rítmicos que já mencionámos acima. Mas não houve nenhum tão impressionante como a penúltima canção, “Dreams”, em que uma tempestade de sintetizadores quebrados parece envolver a voz processada de Henriette. Mais uma vez apenas suspensa por uma batida constante de um drum pad, mas desta vez no olho de uma espécie de furacão sónico, pede-nos “Dream about me” e vai soltando um “a-ha-a” vulnerável, repetido até ao final da música, já sem acompanhamento instrumental.
Para o fim, como é claro, ficou guardado o maior trunfo da banda: “You Got Time and I Got Money”, uma canção de amor com um alcance épico dentro da relativamente pequena escala sónica da banda. É sensual, idílica e ligeiramente tonta; muito como alguém que está apaixonado. É um triunfo que nos levou de volta para a morrinha de Outono que caía enquanto trauteávamos a sua doce melodia, de volta à nossa própria vida de cidade grande. Porque, como dizíamos no início deste texto, estas são canções que vivem do quotidiano e por sua vez o ampliam. Com as Smerz, a cidade soa mais fixe.
Fonte: https://comunidadeculturaearte.com/smerz-ao-vivo-a-banda-sonora-de-uma-cidade-estranha-e-fixe/

