“O mar, bata ele onde bater, é uma decalcomania que não podemos arrancar sem que atrás fique o nosso próprio corpo em carne viva.”
Luís Miguel Nava
No final de outubro, Ricardo Ribeiro e Ana Moura apresentaram “Maré”, uma nova canção escrita e produzida por Agir, acompanhada por um videoclipe introspetivo realizado por André Caniços. O tema marca mais um capítulo no diálogo criativo que os une. Agir já havia composto “Má Sorte” para Ribeiro e colaborado com Ana Moura na sua canção “Manto de Água”.
“Maré” é uma canção de encontro, tanto artístico como filosófico. Ricardo Ribeiro descreve-a como um tema “de almas reunidas conscientes do mar, ora sereno ora revolto, da vida”. O mar aqui é mais do que cenário: é um plano de salvação. É a força que permite resistir ao peso do quotidiano e ao desgaste do tempo. Amor e empatia surgem como gestos de redenção, não em sentido religioso, mas humano: a possibilidade de se salvar um no outro, através da escuta e da partilha.
Quanto terminei de ouvir esta canção, perguntei a mim mesmo: o que podemos aprender com esta “Maré”? Pedi ajuda ao compositor. Em conversa, Agir responde-me: “Vamos assistindo a uma metamorfose artística que é constante. No entanto, só podemos saber com clareza para onde vamos se soubermos de onde viemos. Toda a estética tem de vir alicerçada com algo mais profundo, senão será apenas um ‘embrulho’”, acrescenta, sublinhando que “para isso, carece de estudo, dedicação, sensibilidade e pessoas sem medos que arriscam outros estilos”.
É dessa coragem que nasce esta colaboração: “Fiquei feliz com o voto de confiança do Ricardo, e este caminho conjunto permite mostrar que a música eletrónica e urbana também tem profundidade.” Por fim, confessa: “O que interessa é que, onde o Ricardo e a Ana estiverem, saberá sempre a fado — é uma fase nova que procura novos mares e marés, até porque viver sempre na nossa zona de conforto não tem grande interesse”.
Para mim, antes de tudo, a maré não é vazio repetido, nem o silêncio é ausência. O tempo, quando se renova, não se repete — transforma-se. Vejo “Maré” como uma canção de resistência à estagnação: propõe o movimento como forma de permanência, os testemunhos culturais como diálogos e não declarações. Ensina-nos que o que se repete nunca é o mesmo, porque cada onda transporta fragmentos de todas as anteriores: É a pedagogia da transformação.
Agir refere também que “existe algum preconceito sobre a tradição”. De facto, a palavra “tradição”, ultimamente, tem sido alvo de alguns infortúnios. São vários os discursos que instrumentalizam a tradição como impedimento à comunicação intercultural. “Tradição” vem do latim traditio, de dare, dar. Transmitir é entregar-se, não conservar. A maré é a mais perfeita metáfora da tradição: dá-se e retira-se, regressa diferente, leva consigo o que tocou. “Maré” recupera essa ideia de dádiva. Na fusão de estilos, há entrega; É a tradição em ato — não a que repete, mas a que renova.
Lisboa é uma cidade polifónica, onde as diferentes músicas urbanas confluem: o Fado, o R&B, o Soul e a música eletrónica são, essencialmente, expressões unas porque partilham a mesma origem: são vozes populares que provêm da mesma consciência coletiva. Descobrir e entender a cidade de Lisboa é explorar as suas sonoridades. “Maré” prova que as fronteiras entre o que é “nosso” e o que é “do mundo” são ilusórias e que a maturidade desta colaboração nasce de compreender a transformação como forma de
unidade cultural.
O que nos resta senão a maré como gesto de continuidade? A arte nunca repousa sobre uma superfície calma. A maré dá-nos paz e fervor, mas, acima de tudo, presença em corpo nu. Que não temamos o seu movimento, mas antes nos deixemos levar pela transformação que ela impõe. Ricardo Ribeiro, Ana Moura e Agir reencontram-se nessa travessia partilhada: a de manter viva a coragem de procurar. E Enquanto houver quem cante a maré, haverá quem resista à secura do tempo
Fonte: https://comunidadeculturaearte.com/enquanto-houver-quem-cante-a-mare-havera-quem-resista-a-secura-do-tempo/

