Uma equipe liderada pelo astrofísico Michael Shull, da Universidade do Colorado, em Boulder, nos EUA, reconstruiu o passado da vizinhança solar e descobriu que, há cerca de 4,4 a 4,5 milhões de anos, duas estrelas muito quentes – Epsilon Canis Majoris (também conhecida como Adhara) e Beta Canis Majoris (ou Mirzam) – passaram perigosamente perto do Sol. Elas chegaram a apenas algumas dezenas de anos-luz de distância, bombardeando intensamente as nuvens de gás e poeira ao redor com radiação ultravioleta.
Em um artigo publicado recentemente no periódico científico The Astrophysical Journal, os cientistas relatam que isso teria ionizado gás de hidrogênio e hélio ao redor do Sistema Solar, deixando uma assinatura ainda detectável e ajudando a explicar um enigma que persiste há décadas.
O que a pesquisa revelou:
- Modelos indicam que as estrelas Adhara e Mirzam passaram relativamente perto do Sol há milhões de anos;
- A radiação ultravioleta desses objetos teria ionizado as nuvens interestelares ao redor do Sistema Solar;
- O gás da chamada “Bolha Quente Local” também contribui para a ionização observada;
- O trabalho ajuda a explicar por que o hélio aparece mais ionizado do que o esperado na vizinhança;
- As descobertas mostram como o ambiente galáctico pode afetar a habitabilidade ao longo do tempo.
Impactos das estrelas quentes na vizinhança do Sol
Nos arredores do Sistema Solar, existe um conjunto de nuvens interestelares tênues, uma espécie de “neblina” de gás e poeira composta principalmente de hidrogênio e hélio. Elas se estendem por dezenas de anos-luz e estão imersas em uma cavidade da galáxia conhecida como Bolha Quente Local, região onde o material interestelar é mais rarefeito e permanece aquecido por antigos eventos explosivos.
Nos anos de 1990, os astrônomos começaram a medir com mais precisão esse ambiente, com ajuda de equipamentos como o Telescópio Espacial Hubble, da NASA. Observações apontaram que uma parcela considerável dos átomos dessas nuvens está ionizada, com destaque para o hélio, que aparece mais carregado do que os modelos simples previam.
A pesquisa de Shull encaixa algumas peças nesse quebra-cabeça ao simular retroativamente os movimentos do Sol, das estrelas vizinhas e das próprias nuvens, todas em constante deslocamento. “É como um jogo onde todas as peças estão se movendo”, disse o cientista. “O Sol está se movendo. As estrelas estão se afastando de nós. As nuvens estão se dissipando.”
Os cálculos apontam que, no passado recente em termos cósmicos, Adhara e Mirzam, que atualmente estão a mais de 400 anos-luz da Terra, na Constelação do Cão Maior, passaram muito mais perto do nosso sistema. Estrelas do tipo B, como essas, brilham de forma intensa e têm vidas curtas em comparação com o Sol. Ao cruzarem a vizinhança solar, sua radiação ultravioleta teria arrancado elétrons de átomos nas nuvens locais, deixando um “rastro químico” que ainda persiste. “Se pensarmos em 4,4 milhões de anos atrás, essas duas estrelas teriam sido de quatro a seis vezes mais brilhantes do que Sirius é hoje, de longe as estrelas mais brilhantes do céu”, disse Shull.

Bolha Quente Local também foi moldada por radiação
A equipe também considera outras fontes de ionização. A própria Bolha Quente Local provavelmente foi esculpida por sucessivas supernovas, cujo efeito ainda se sente: o gás aquecido dentro da cavidade continua emitindo radiação ultravioleta e raios X que banham as nuvens ao redor. Além disso, anãs brancas próximas podem ter contribuído com uma parcela desse brilho ionizante. No conjunto, essas influências ajudam a resolver por que, nas medições, não apenas o hidrogênio, mas principalmente o hélio aparece tão carregado.
Para Shull, compreender essas condições físicas tem implicações que vão além da curiosidade astronômica. “O fato de o Sol estar dentro desse conjunto de nuvens que nos protege da radiação ionizante pode ser um fator importante que torna a Terra habitável hoje”. Em outras palavras, a trajetória do Sol pela galáxia e o ambiente interestelar ao seu redor podem ter moldado, de forma sutil, a história da biosfera.
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Os pesquisadores destacam que a ionização atual tende a se dissipar lentamente, à medida que os átomos recuperam elétrons livres. Já Adhara e Mirzam devem esgotar seu combustível estelar nos próximos milhões de anos e terminar em supernovas – um espetáculo explosivo, mas totalmente seguro para nós. “Uma supernova explodindo tão perto poderá iluminar o céu”, disse Shull. “Será muito, muito brilhante, mas estará longe o suficiente para não ser letal.”
Ao integrar dados sobre radiação estelar, movimentos das estrelas vizinhas e características das nuvens, o estudo oferece uma visão minuciosa da vizinhança do Sol. Ele mostra como o ambiente galáctico molda a ionização do gás, afeta o fluxo de raios cósmicos e influencia os riscos para missões espaciais.
Essas condições externas, embora sutis, influenciam a proteção da Terra contra radiação e outros perigos cósmicos, mostrando que a habitabilidade do nosso planeta depende também do contexto cósmico em que se encontra.
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