A trajetória da uva Goethe no sul de Santa Catarina reúne a história de imigrantes, adaptação agrícola, resistência cultural e o avanço científico. A variedade, criada nos Estados Unidos e trazida ao Brasil por imigrantes europeus, encontrou nos vales entre a serra catarinense e o litoral um ambiente propício para se desenvolver. O território acabou se tornando o único do mundo a cultivar e vinificar a uva Goethe de forma estruturada e contínua, dando origem a um vinho que se tornou símbolo regional.
O resultado dessa escolha aparece tanto na produção agrícola quanto na organização dos produtores, na atuação da pesquisa pública e no reconhecimento nacional da tipicidade do vinho. Os municípios que formam os vales da uva Goethe — Urussanga, Pedras Grandes, Morro da Fumaça, Cocal do Sul, Treze de Maio, Orleans, Nova Veneza e Içara — compartilham uma história comum que explica por que a uva se tornou parte da identidade local.
Essa identidade voltou a ganhar destaque depois que o Instituto Nacional de Propriedade Industrial (Inpi) elevou a indicação geográfica da região para denominação de origem (DO), reconhecendo oficialmente a região como produtora do vinho com características determinadas pela interação entre ambiente e tradição humana.
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A criação da uva Goethe ocorreu por volta de 1850, quando o horticultor norte-americano Edward S. Rogers realizou um cruzamento entre variedades de origem italiana e americana. Rogers decidiu homenagear Johann Wolfgang von Goethe, escritor alemão, ao nomear a nova uva que passou a circular entre pesquisadores e agricultores de vários países.
No Brasil, ela foi introduzida por italianos que distribuíram as mudas entre famílias de imigrantes que viviam no sul catarinense. As plantas se adaptaram às condições climáticas e começaram a se multiplicar. A partir desse movimento, o plantio ganhou mais organização e a vinificação começou a estruturar economicamente pequenas propriedades. A uva passou a integrar rituais familiares e o consumo cotidiano.
O marco decisivo veio quando os imigrantes vinificaram a Goethe pela primeira vez. O aroma e o sabor os remeteram imediatamente aos vinhos do norte da Itália. Esse episódio é lembrado como o “primeiro caso de amor à primeira taça” da vitivinicultura brasileira.
A uva Goethe produz um vinho considerado de sabor único. (Foto: Aires Mariga/Epagri)VEJA TAMBÉM:
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Pesquisa pública organiza, estrutura e fortalece a produção da uva Goethe
A estação experimental da Empresa de Pesquisa Agropecuária e Extensão Rural de Santa Catarina (Epagri) em Urussanga, implantada em 1942, teve papel central no desenvolvimento agrícola da região. Nos primeiros anos, avaliou centenas de cultivares, difundiu técnicas de manejo e vinificação e prestou assistência técnica a produtores, contribuindo para consolidar bases produtivas que permanecem.
Com as reorganizações institucionais ocorridas nas décadas seguintes, a unidade integrou diferentes estruturas federais e estaduais até ser incorporada à Epagri em 1991. A partir de então, a pesquisa ganhou aprofundament com desenvolvimento de estudos sobre manejo fitossanitário, sistemas de condução, porta-enxertos e processos de vinificação específicos para a Goethe.
Nos anos 2000, a estação se tornou protagonista no processo de criação da indicação geográfica dos vales da uva Goethe. Coordenou estudos climáticos, geográficos e agronômicos, elaborou normas técnicas e participou do treinamento do conselho regulador. O trabalho resultou na indicação de procedência em 2011, a primeira de Santa Catarina.
O gerente da estação experimental, Stevan Arcari, explica que coube à Epagri, junto dos produtores e de outras instituições, realizar os estudos científicos que caracterizaram a uva Goethe, delimitar a área geográfica e elaborar o dossiê encaminhado ao Inpi. “Também desenvolvemos capacitações para os vitivinicultores e lançamos um manual técnico com orientações práticas de cultivo”.
A unidade mantém experimentos com cultivo protegido, melhora de vida de prateleira e ajustes de vinificação. A equipe é formada por 11 pesquisadores que atuam em fruticultura, olericultura e outras áreas ligadas à produção agrícola regional.
A uva Goethe se adaptou bem ao clima da região Sul de SC. (Foto: Divulgação/Progoethe)VEJA TAMBÉM:
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Denominação de origem transforma os vales da uva Goethe
A denominação de origem reconhece que o vinho Goethe produzido no sul catarinense apresenta características diretamente vinculadas ao território. A distinção abrange oito municípios e vale apenas para produtos elaborados exclusivamente com a variedade.
Entram na certificação vinhos brancos secos e suaves, espumantes feitos pelos métodos champenoise e charmat, vinhos leves e licorosos. A delimitação geográfica estabelece regras sobre onde é permitido plantar, como deve ser o manejo e quais práticas de vinificação devem ser adotadas.
A topografia irregular, a amplitude térmica entre dia e noite e os microclimas formados pela serra geral e pelo mar criam condições específicas para o desenvolvimento da videira. Esses fatores contribuem para o perfil aromático reconhecido pelos produtores e técnicos.
Além disso, a DO preserva práticas tradicionais, como o sistema de condução em latada e o uso de tanques de alvenaria. A certificação também reforça o enoturismo, que se consolidou como fonte de renda para diversas propriedades rurais.
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Associação une produtores, fortalece a identidade regional e projeta a Goethe
De acordo com a presidente da Associação ProGoethe e sócia-proprietária da vinícola Vigna Mazon, Patrícia Mazon Freitas, a conquista da denominação de origem só foi possível a partir da organização coletiva dos produtores. “A associação estruturou os controles exigidos pela DO e fortaleceu o grupo como entidade representativa diante do mercado e das instituições”, afirma. A ProGoethe reúne sete vinícolas e um número semelhante de produtores de uva.
Segundo ela, o principal desafio agora é avançar na gestão institucional. “Nosso foco é estruturar uma secretaria executiva capaz de nos representar na captação de recursos, no diálogo com instituições e também na participação mais ativa junto a outras indicações geográficas”, explica.
Patrícia destaca ainda o papel cultural do vinho Goethe na identidade catarinense. Para ela, a variedade seguiu trajetória semelhante à dos imigrantes que se estabeleceram no sul do estado. “Assim como os imigrantes, a Goethe precisou se adaptar a um território completamente diferente daquele de origem. E essa adaptação permitiu que famílias se fixassem aqui e construíssem seu novo lar. Há mais de 100 anos, esse vinho faz parte da mesa do catarinense”, diz.
A presidente da ProGoethe ressalta que a singularidade da uva é também o principal fator de atração do enoturismo regional. “Ter uma uva típica, única e rara nos coloca em roteiros nacionais e internacionais e desperta o interesse de quem busca vinhos do novo mundo com identidade própria”, afirma. Segundo ela, a estratégia atual prioriza a aproximação com o consumidor por meio da experiência turística.
Por que produtores mantêm a Goethe mesmo com dificuldades
A Goethe não é uma uva simples de manejar. Produz menos do que outras variedades, é sensível a chuvas no período de colheita e exige atenção especial no processo de extração do mosto, já que possui casca fina e polpa mucilaginosa. Essas características elevam o risco e o custo para o produtor.
Conforme o gerente da estação experimental da Epagri, no mercado, a variedade também enfrenta obstáculos. Não é amplamente conhecida do público, e o fato de ser híbrida — resultante do cruzamento entre espécies americanas e europeias — ainda causa resistência entre consumidores influenciados por referências tradicionais da Europa.
De acordo com ele, mesmo diante desses fatores, os produtores dos vales da uva Goethe optaram por mantê-la. A decisão está ligada à história regional e ao impacto que a uva teve na trajetória das famílias que colonizaram o território. “Vinificar Goethe é, para muitos, preservar uma herança que diferencia a região no cenário do vinho nacional”.
Além do valor simbólico, há o resultado sensorial. O vinho produzido apresenta aroma que combina flores brancas, frutas silvestres, flor de laranjeira, pêssego, maçã verde e leve nota de mel. “A acidez equilibrada contribui para um perfil que se tornou a marca da região”.
Fonte: https://www.gazetadopovo.com.br/santa-catarina/a-regiao-do-brasil-que-se-tornou-conhecida-pela-producao-de-uvas-e-vinhos-raros/
