WALTER NEVES
Núcleo de Pesquisa e Disseminação em Evolução Humana
Instituto de Estudos Avançados-USP
Rezava a lenda que nossos primeiros ancestrais só teriam deixado a África a não mais que 1.6 milhões de anos, apenas após a invenção da indústria Acheulense, isso pelo famoso Homo erectus, que surgiu na África por volta de 1.8 milhões de anos. Explico: a primeira indústria de pedra lascada é denominada Olduvaiense e é datada entre 2.6 e 1.6 milhões de anos. Era uma indústria muito simples, basicamente constituída por lascas naturalmente cortantes obtidas por percussão direta entre um percutor (martelo) de pedra e um bloco de materia prima, esse, também, de pedra, naturalmente. Em outras palavras, nossa primeira caixa de ferramentas era constituída por apenas uma ferramenta: lascas naturalmente cortantes. Pode parecer pobre demais, mas o fato é que foram essas míseras lascas que nos proporcionaram o domínio das savanas, pobre em recursos vegetais, mas ricas em recursos animais: principalmente carniças deixadas pelos grandes felinos, repletas de carne residual, tendões e tutano. Portanto, uma mina de proteina animal, pronta para ser explorada. E foi isso o que a indústria Olduvaiense nos proporcionou, levando também à bipedia obrigatória, já que a obtenção das carcaças exigia um grande deslocamento pelas savanas.
Para muitos, apesar do mérito que essas lascas tiveram em nossa evolução, eram simples demais para permitir ao Homo erectus explorar paisagens muito diferentes daquelas da África. Por isso ficaram restritos àquele continente até mais ou menos 1.6 milhões de anos, quando surgiu, finalmente, uma grande inovação tecnológica: a indústria Acheulense. Essa sim, que além de continuar a produzir lascas naturalmente cortantes, passou a produzir ferramentas formais, apesar de que não mais do que meia dúzia. E mais ainda: essas ferramentas eram primeiramente concebidas na mente e uma vez concebidas essas formas eram impostas sobre a pedra, também por lascamento direto. Asssim, surgiram, portanto os “machados de mão”, os picões e os talhadores.
Portanto, rezava ainda a lenda, que foi esse quite de ferramentas, já mais bem sofisticado que o do Olduvaiense, que permitiu a exploração de novas paisagens, isso fora da África. Só para reforçar: a saída da África, pelo Homo erectus, só teria se dado após o surgimento do Acheulense, por volta de 1.6 milhões de anos.
Mas a lenda caiu. Em meados dos anos 1990 e início dos anos 2000, foi encontrado no Cáucaso, mais especificamente na República da Georgia, o sítio de Dmanisi, datado em 1,8 milhões de anos e adivinhem só: as ferramentas de pedra eram tipicamente Olduvaiense (lascas) e os crânios não eram bem de Homo erectus. Cinco crânios no total foram encontrados e numerados de 1 a 5. Desde então, estabeleceu-se na comunidade científica duas grandes discussões: a que espécie pertenciam esses crânios e se ali estava representada apenas uma espécie. Ambas as discussões correram em paralelo por duas décadas e meia. Os crânios de 1 a 4 mostravam características intermediárias entre Homo habilis e Homo erectus, tornando muito difícil sua classificação. Suas capacidades cranianas são muito menores do que as de um Homo erectus típico. Para complicar a situação, o crânio 5 mostra-se bastante diferente dos demais, sugerindo, para alguns, a existência em Dmanisi de duas espécies distintas. Basta dizer que o crânio 5 tem uma capacidade craniana de menos de 500cm3, na faixa do que é encontrado entre os australopitecínios, ancestrais do gênero Homo.
Desde 2011 nosso grupo de pesquisas paleoantropológicas da USP vem se dedicando com afinco a essas questões, sobretudo se os 5 crânios de Dmanisi pertencem a uma ou mais espécies e que espécies seriam essas. Após várias publicações em revistas menos chamativas, publicamos agora na revista PlosOne, uma das mais reputadas no meio acadêmico, um artigo mostrando que de fato existiram em Dmanisi duas espécies, que denominamos: Homo caucasi e Homo georgicus. A primeira seria representada pelos crânios de 1 a 4, e seria uma forma intermediária entre o Homo habilis e o Homo erectus e não esse último propriamente dito. Já o crânio 5 pertenceria a uma segunda espécie, Homo georgicus, muito mais robusta que a primeira, com dentes muito maiores e com um cérebro diminuto, como salientado acima. Não teria sido totalmente descabido de fenestrar o georgicus do gênero Homo e alocá-lo no gênero Australopithecus ou Paranthropus, mas preferimos adotar uma postura mais conservadora.
Nossa proposta certamente trará grande alvoroço na comunidade paleoantropológica internacional, sobretudo porque vem de um país sem tradição consolidada nessa área do conhecimento.
Fonte: https://horadopovo.com.br/dmanisi-uma-ou-duas-especies-de-homininios/
