Por entre os diferentes talentos emergentes portugueses que surgem radicados pela Europa, nomeadamente em Londres, aparecem dois nomes de nacionalidade portuguesa. Um deles é Raquel Martins, que continua a ser assídua presença em Portugal. O outro é Pedro Ricardo, jovem multi-instrumentista que tem as suas origens na cidade do Porto. Com grandes raízes musicais no jazz, é alguém que levou consigo o poder folclórico da música portuguesa para outros horizontes, entre eles Barcelona, Berlim e, claro está, Londres. Aqui, foi plantando sementes em formas de singles que anteviram o nascimento dos seus dois álbuns: “Soprem Bons Ventos” e “Un Nuevo Amanecer”, os dois lançados em 2023.
A estes, juntou-se, já no final desse mesmo ano, o EP “Dança de Rua”, com mais temas a fazer esta ponte entre o jazz convencional, o R&B, a música africana (“Cantar das Kandakinhas”, que significa mulheres em sudanês), a bossa nova e a música portuguesa, entre o fado e a mais folclórica (“Braguesa”). Em todos estes trabalhos, a chancela pertenceu à Soundway Records, editora com um cardápio bastante vasto em geografias e sonoridades, estendendo-se de África à Ásia, sem esquecer a música latina (“Un Nuevo Amanecer”, ao lado do músico argentino Damián Botigué).
Uma veia que tem paralela no seu perfil musical é a de DJ, veia que é identificada só pelo seu nome próprio, e que foi cultivando em Berlim, cidade que é um pólo de atração imenso para a música eletrónica (ouçam-se as sessões do canal HÖR Berlin). Neste mundo, destaque para o EP “She Is”, de 2019, para além de um programa na rádio Balamii e de um sem número de viagens a nightclubs. Segundo o próprio, é a veia que considera ser a sua mais pulsante e natural. Contudo, a sua presença em Portugal, para três concertos (na Sala Lisa, em Lisboa, no Passos Manuel, no Porto, e no Piolho, na Praia da Tocha, Cantanhede) prenunciava ser uma apresentação mais ao nível do jazz, com um trio a ser anunciado para o palco. Para além de Ricardo, proeminente ao violão, junte-se Pablo Rizo nas teclas e um amigo seu de meninice, Marco Duarte na bateria, amigo esse com quem interpretava covers dos Guns n’ Roses e dos Ramones nos tempos do liceu em Vila Nova de Gaia.
Assim, aquilo que fomos escutar ao Passos Manuel, na teoria, era um mero interpretar do encantador disco com que demos caras no Spotify. No entanto, seria algo bem diferente. Nota (bem) negativa para a logística do Passos Manuel, que, para além de ter recebido o concerto com uma hora de atraso, não alertou as dezenas daqueles que esperavam para o assistir e fê-los aguardar mais meia hora para lá das 21h no exterior. Porém, é um facto que se tornou relegado após termos entrado e nos termos acolhido na sala, repleta de assentos tão confortáveis (trata-se de uma sala de cinema) e de uma acústica bastante agradável. Entre as presenças, vimos as dos próprios artistas, facilmente confundíveis com os demais que por lá estavam. No fundo, três gajos simples.
Rapidamente percebemos, mal o concerto começou, que não íamos assistir a Pedro Ricardo como protagonista e os seus acompanhantes como personagens secundárias. O bilhete dizia “Pedro Ricardo Trio” e assim foi, dado que os três elementos tiveram igual primazia musical, mesmo que o porta-voz que interagiu amiúde com o público tenha sido o guitarrista e baixista Pedro Ricardo. Nessas várias intervenções que fez, revelou-nos que foram duas as semanas de preparação para este trio de concertos, preparação essa feita em Roterdão, nos Países Baixos. De igual modo, reforçou a importância da sua esposa nesta transposição do seu álbum para uma nova estética, com acompanhamento de outros músicos e não somente de meros contributos exteriores, com camadas de som complementares. Indicou conhecer grande parte da plateia, sendo que muitos eram seus conhecidos (a própria mãe de Duarte foi enaltecida pelos abastecimentos de sandes e bolachas nas primeiras sessões juvenis), e agradeceu a todos a presença. Não fizeram encore por falta de tempo (e de ensaio), mas a hora de concerto bastou para este contributo diferenciado.
Mas, afinal de contas, que contributo diferenciado foi esse? Foi algo que os primeiros acordes da guitarra acústica não antecipavam. Isto porque (o prodígio que já ia tocar tambores nas aulas de música do sétimo ano) Marco Duarte na bateria e na percussão e Paulo Rizo nas teclas e nos sintetizadores abriram o livro de forma expansiva e levaram a música de Ricardo a uma nova dimensão. Podia ser jazz puramente dito, podia ser fragrâncias do tal UK jazz tão saudado nestes dias, podia ser até um rock progressivo. Aos nossos ouvidos, preferimos alocar mais no caminho da jazz fusion, onde há sonoridades latinas e eletrónicas pelo meio, que fazem do jazz um espaço de partilha, de comunhão, de convivência e de uma alegria inquestionável. O imparável Pedro Ricardo ia de um lado para o outro a vibrar com os seus parceiros e nos solos mais ou menos compostos que ia interpretando, com destaque para “Ode ao Gato” e os 3 temas do disco.
Todas as músicas acabaram por ser reinterpretadas à luz dos instrumentos à disposição e dos seus próprios intérpretes e da sua visão artística. Uma visão que, do lado da bateria, fez lembrar o peso e a metalurgia do rock, mas também o dos grandes bateristas de jazz, como Tony Williams ou Yussef Dayes; e, do lado das teclas, um rasgo de Chick Corea ou até do próprio Alfa Mist. O baixo e a guitarra, com tiques dos grandes violonistas brasileiras e do baixista Jaco Pastorius, funcionaram como elo de conexão entre as teclas e a percussão, como eixo de harmonia e de encontro realizado. Assim, “Soprem Bons Ventos” não foi só feito de bons, mas de ótimos ventos, que teriam lugar em festivais de jazz com facilidade. A complementar a este deslindar do disco, nota também para o tema exclusivo em acústico de Pedro Ricardo proveniente da banda sonora do filme “Cooperativa Árvore” (1976), de Ângelo de Sousa, exibido no Cinema Batalha; e da conversão de temas das pistas de dança do músico gaiense para a roupagem do jazz.
Sessenta minutos (poderiam ter sido mais sem o atraso?) mostraram aquilo que Pedro Ricardo e companhia podem trazer para o espaço do jazz português e, quiçá, europeu. O caminho que foge da música clássica e que se abre para o mundo da música latina, desde a música popular portuguesa ao samba, e da eletrónica (o palavrão jazztronica não fica mal aplicado). Jazz em português também é bom e recomenda-se, especialmente quando se abre para um caminho de descoberta e de reimaginação de outros espaços. Por si só, “Soprem Bons Ventos” é um contributo que merece ser visitado e conhecido em espaço de serenidade e de contemplação. No entanto, para chegar mais longe, nada como conhecer o Trio para, de facto, perceber até onde o jazz em português pode ir ter. Votos para que o trio de concertos em solo português se multipliquem pelos tempos vindouros.
Fonte: https://comunidadeculturaearte.com/o-trio-de-pedro-ricardo-que-sopraram-os-bons-ventos-do-jazz-portugues-no-passos-manuel/