23 de novembro de 2024
20 anos de história de um festival singular
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Fotografias cortesia do festival


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Aniversários redondos são momentos propícios a balanços. E a história do Ageas Cool Jazz bem merece essa retrospectiva. A Comunidade Cultura e Arte (CCA) mergulhou nos cartazes de todas as edições, explorou as mudanças na sua localização, e mapeou o percurso de um dos mais singulares festivais portugueses, em identidade e formato. Neste apanhado, sublinhamos factos que serão surpreendentes para muitos: quantos sabem que foi no Cool Jazz que o rapper e produtor Kanye West se estreou num palco português, ainda no início da sua carreira?

As raízes do Ageas Cool Jazz estendem-se no tempo, bem para lá da sua edição inaugural organizada em 2004. Há toda uma ligação histórica a unir Cascais à música, muito em particular ao jazz. Nos últimos vinte anos, sob a direcção da programadora Karla Campos (ler entrevista), o Ageas Cool Jazz regista uma série de grandes concertos, gravados na memória de quem os ouviu. Este é o retrato destes vinte anos de história; que começam ainda antes, décadas antes da fundação do festival tal como o conhecemos.

AS RAÍZES DO JAZZ EM CASCAIS

Em 1971, Luiz Villas-Boas – um titã da história do jazz em Portugal, fundador do Hot Clube de Portugal – promove a primeira edição do Cascais Jazz, em colaboração com o fadista João Braga. O festival decorria no Pavilhão do Dramático. Essa primeira edição histórica é coroada por um concerto de Miles Davis, indiscutivelmente um dos maiores nomes da história do jazz. Era aquele o primeiro concerto do trompetista em Portugal, um ano após ter partilhado com Joni Mitchell, The Doors, The Who e Jimi Hendrix o palco do The Isle of Wight Festival. Nessa primeira edição marcaram ainda presença no Cascais Jazz, entre outros, Thelonious Monk, Art Blakey e Dexter Gordon, numa primeira edição de luxo.

A história do Cascais Jazz estendeu-se ao longo de treze anos, na medida em que até 1984 continuou a ser organizado por Villas-Boas. Ao longo desse tempo passaram ainda pelo seu palco Ella Fitzgerald, Duke Ellington, Sarah Vaughan, Keith Jarett, Charlie Mingus, Pharoah Sanders. Os destaques que enunciamos são apenas uma amostra, tendo em conta o desfile de grandes vultos que puderam apresentar a sua música ao público português e estrangeiro que, já à época, escolhia Cascais como lugar de descoberta musical (atendendo ao longo historial turístico daquela localidade).

Kanye West no Cool Jazz Fest 2006 / Fotografia cortesia do festival

Mais tarde, o festival passa a chamar-se Estoril Jazz, sob a programação de Duarte Mendonça. “A música foi sempre muito forte aqui, quer pela componente do jazz (também o Estoril Jazz nasceu aqui em Cascais), quer os concertos de rock em Cascais que havia no final dos anos 70, início dos anos 80”, resume a directora do Cool Jazz em conversa com a CCA [todas as citações de Karla Campos contidas neste artigo, à excepção das devidamente assinaladas, são retiradas da nossa conversa com a promotora publicada em Maio de 2024]. “Cascais é o berço da música em Portugal, pelo menos na minha geração”, sublinha.

UMA OPORTUNIDADE: A VISÃO DE KARLA CAMPOS

É nesta sequência que surge o Cool Jazz Cascais, num momento em que, segundo Karla Campos, o ponto focal da história do jazz em Portugal “deixou de existir” a certa altura, pelo menos na “vertente mais popular”. Isto apesar de, conforme afirmou numa entrevista ao Observador em 2018, “o jazz mais erudito e fundamentalista” se ter mantido.

“Percebi que havia aqui uma oportunidade”, diz à CCA. O festival nasce da vontade de Karla Campos “de querer fazer um festival diferente daquilo que já era o habitual, em Portugal e no mundo”. Essa visão é também inspirada pelo cruzamento com outros formatos de festivais internacionais, que Karla acreditava serem possíveis replicar em Portugal. “Eu frequentei o Festival de Jazz de Montreux, e é esse que me dá realmente o trigger, o que me dá a vontade (…) de criar um festival mais ou menos no mesmo estilo. Fui lá algumas vezes, e sentia que havia alguma ligação especial entre o público e o espaço”. Para além deste festival suíço, outros modelos que inspiraram a programadora foi o francês Nice Jazz Festival e o brasileiro Free Jazz Festival.

Sara Tavares no Cool Jazz 2018 / Fotografia cortesia do festival

Para além do jazz, e à semelhança de Montreaux, haveria também espaço na programação para o cruzamento e a fusão com outros géneros musicais, como o pop, o soul, o blues, o folk, a música brasileira na sua multiplicidade, o fado… mas também a electrónica, e até o hip-hop! Este cruzamento de géneros é uma das grandes marcas identitárias do Ageas Cool Jazz desde a sua génese. Mas não a única: para além disso, Karla Campos destaca ainda o facto de ser um festival que apesar de ser ao ar livre é composto por lugares sentados; e de ter poucos concertos em cada noite, dando um grande destaque ao cabeça-de-cartaz de cada dia no conjunto da programação.

FUNDAÇÃO E SEDIMENTAÇÃO: OS PRIMEIROS ANOS

A ideia inaugural de Karla Campos via Cascais como a localização do festival, mas a promotora é surpreendida pelo entusiasmo da Junta de Turismo da Costa do Sol: “o que me disseram foi ‘não, não é só Cascais, vais ter que fazer em Cascais, em Oeiras, em Sintra e em Mafra’”. Assim, a primeira edição ocorre com programação coordenada entre estes quatro concelhos que se querem associar à iniciativa, quase todos eles acolhendo os concertos em belíssimos palcos naturais (a Casa da Pesca, o Jardim do Cerco, a Cidadela de Cascais), tendo Sintra programado no recém-inaugurado Centro Cultural Olga Cadaval.Nessa edição inaugural, em 2004, o evento então organizado pela Junta de Turismo da Costa do Sol recebeu Adriana Calcanhotto poucas semanas depois de a artista brasileira ter lançado o seu álbum Adriana Partimpim, contendo aquele que será um dos temas de maior popularidade na sua carreira — “Fico Assim Sem Você”. Para além disso, passaram por essa edição inaugural Buddy Guy — um nome histórico do blues americano — e Ravi Coltrane, filho dos incrivelmente talentosos John Coltrane (trompetista) e Alice Coltrane (pianista).

Buddy Guy no Cool Jazz Fest 2004 / Fotografia cortesia da organização

Ao longo dos quatro anos seguintes, o festival mantém-se sediado em três dos concelhos inaugurais, tendo Sintra deixado de acolher parte da programação. Nesses primeiros anos, o festival acolhe desde logo grandes nomes; sendo ainda responsável por, no caso de muitos deles, dar palco à estreia em Portugal de artistas internacionais de grande renome. Por Cascais, Oeiras e Mafra passam pelos palcos do festival nomes como o pianista de jazz Herbie Hancock, as grandes vozes de Diana Krall e Norah Jones, assim como a então promessa Jamie Collum. Também bandas como os Buena Vista Social Club e os Kings of Convenience. O crescimento consolidado de públicos e números de espectáculos relativamente à primeira edição é também sustentado pela música lusófona: entre os artistas brasileiros contam-se a presença da mítica Gal Costa, Maria Bethânia e Caetano Veloso; entre os portugueses, a fadista Mariza, Teresa Salgueiro e Ana Moura.

Destaque- se um momento suis-generis na história do festival, ocorrido logo em 2006: a estreia de Kanye West em solo português (e um dos únicos dois concertos deste artista em Portugal) acontece em Oeiras, nos Jardins do Palácio Marquês de Pombal. Já na altura um dos nomes mais badalados no hip hop internacional, Kanye faz-se acompanhar de um septeto de cordas (dois violencelos, quatro violinos e uma harpa). Vale a pena ler a reportagem detalhada que Rodrigo Nogueira assinou na webzine Bodyspace a propósito desse concerto histórico.

Maria Bethânia no Cool Jazz Fest 2005 / Fotografia cortesia da organização

Entre 2009 e 2010 o festival é programado entre Cascais e Mafra, e em 2011 é acolhido pela primeira vez em exclusivo pelo concelho de Cascais. Nestes anos, Regina Spektor estreia-se em Portugal com lotação esgotada; bem como Charles Bradley, que também se estreou no nosso país no Cool Jazz. O festival acolhe ainda os concertos de Seal (três dos quatro concertos que este artista dá em Portugal acontecem neste festival), Katie Melua, James Taylor, Elvis Costello… e artistas como Jamie Cullum, Norah Jones, Diana Krall e os Buena Vista Social Clubs tornam-se quase residentes, cada um deles assinando múltiplas presenças no Cool Jazz ao longo dos anos, numa relação de carinho e sucesso junto do público.

OS ANOS EM OEIRAS

Entre 2012 e 2017, o festival deixa de estar sediado em Cascais, e passa a ser acolhido em Oeiras, numa programação que se desdobra entre o Estádio Municipal no Parque dos Poetas, e os Jardins do Marquês de Pombal. “Isto tem a ver com estratégias que cada câmara vai tendo ao longo dos anos”, justifica Karla Campos à CCA. Passando a ter a EDP como name sponsor, numa relação de patrocínio que virá a durar uma década, o Cool Jazz acolhe grandes nomes como Sting, John Legend, Lionel Richie, Mark Knopfler, Pat Metheny, Caetano Veloso e Gilberto Gil. No terreno do jazz mais puro e duro, em 2015 actuam juntos Chick Corea e Herbie Hancock.

Herbie Hancock no EDP Cool Jazz 2015 / Fotografia cortesia da organização

Em 2013, a organização fazia um balanço da história do festival; até à data, contabilizava-se um número superior a 250.000 pessoas, a marcar presença em mais de 100 concertos. Para além dos nomes mais consagrados, também outros compunham um bouquet de qualidade artística no festival: são exemplos Michael Kiwanuka, Maria Gadu, Luísa Sobral, Lianne La Havas, Laura Mvula e Jake Bugg. Também Salvador Sobral assina uma das noites do festival em 2016, um ano antes da sua vitória no festival da Eurovisão que consagraria o amor de um público ainda mais vasto pela sua música. O desfile de nomes no catálogo do Cool Jazz impressiona pela diversidade e pela qualidade, com tantas estreias em solo português pescadas pelo ouvido e sensibilidade de Karla Campos.

REGRESSO A CASCAIS: A HISTÓRIA RECENTE E UM FUTURO POR ESCREVER

A partir de 2018 o festival “regressa a casa”, a Cascais, instalando-se no local onde se mantém até hoje, com concertos a desdobrarem-se entre o Parque Marechal Carmona e o Hipódromo Manuel Possolo, encostados um ao outro. Para a história ficará o concerto encenado de David Byrne (o vocalista dos Talking Heads), considerado por muitos que o testemunharam como um dos espectáculos mais impressionantes dos últimos anos. O artista fez questão de que fosse Sara Tavares a fazer a primeira parte do seu concerto, naquele que foi a única apresentação desta amada no Cool Jazz desta amada artista do público português.

David Byrne no Cool Jazz 2018 / Fotografia cortesia do festival

O desfile de grandes nomes e concertos é imparável, tornando-se um exercício frustrante escolher quais nomear: desde nomes consagrados como Van Morrison, Tom Jones e Jorge Ben Jor, passando por nomes da pop como Jessie J… Nestes anos mais recentes, também a Comunidade Cultura e Arte – entretanto nascida – começou a marcar presença regular no festival. Atestam isso mesmo as nossas reportagens aos concertos da dupla de guitarristas sul-americana Rodrigo & Gabriela em 2017; dos Badbadnotgood, de Jessie Ware e de Norah Jones em 2018; e de Jacob Collier, Snarky Puppy e dos míticos Kraftwerk, pais da música electrónica, em 2019. Ao ler esses relatos é possível perceber-se o ambiente único do festival.

Após o interregno ditado pela pandemia, o Ageas Cool Jazz adopta um novo name sponsor a partir da edição de 2024. O cartaz deste ano traz nomes que marcaram a história do festival, como Diana Krall e Jamie Cullum. “Num ano em que o festival faz 20 anos fazia-me todo o sentido convidá-los”, conta-nos Karla Campos. “Eles amaram poder vir ao ano em que o festival faz 20 anos, disseram logo com todo o gosto ‘claro que sim, queremos estar contigo, Karla, no ano em que fazem 20 anos queremos estar aí e celebrar com vocês’”. Mas há também espaço para programação mais ousada, e para novidades: é no Ageas Cool Jazz que os Air vão apresentar a sua digressão dedicada ao álbum Moon Safari, no contexto do vigésimo quinto aniversário do disco; as brasileiras Marina Sena e Luedji Luna apresentarão a sua música que mistura múltiplas sonoridades locais em fusões experimentais; e a já tradicional noite portuguesa será assinada por concertos de dois dos nomes que mais têm conquistado o carinho do público nos últimos anos: Dino D’Santiago e Maro.

Em paralelo com esta programação principal, o Ageas Cool Jazz conta também com concertos de bandas de jazz portuguesas que tocam antes dos concertos principais; algumas delas vencedoras do concurso de talentos promovido em parceria com a Smooth FM. Esta edição contará ainda com a estreia de um novo palco, Late Nights, com programação que prolongará a noite depois do cabeça-de-cartaz diário.

O futuro do festival continuará a escrever-se. Perguntámos a Karla Campos qual seria um sonho, mesmo que irrealista, para esse futuro em aberto. “Gostaria de ter 31 dias de festival, passá-lo de 7 para 31 dias”. A própria promotora admite que é um desejo difícil de concretizar, mas a resposta mostra a ambição e a visão que pautaram o nascimento e a história de vinte anos de um festival que continua a ter um lugar singular na paisagem festivaleira portuguesa, cada vez mais povoada por eventos do género. Fica o convite para quem queira visitar Cascais no próximo mês de Julho e fazer um brinde aos vinte anos de história, e aos próximos vinte que se seguirão, sempre ao som de boa música num ambiente cool.

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Fonte: https://comunidadeculturaearte.com/ageas-cool-jazz-20-anos-de-historia-de-um-festival-singular/