Há poucos meses, começou a escrever-se um novo (velho) capítulo da cidade beirã da Mêda. O anúncio do regresso do festival Mêda+ trouxe memórias de um tempo pré-pandémico e de um dos pequenos, mas seguros, bastiões da descentralização cultural em Portugal — que tivemos o gosto de visitar em 2016. Desde a última edição — que decorreu em 2018 antes de uma dissolução do festival que ocorreu principalmente por questões financeiras — passaram-se seis anos que trouxeram bastantes mudanças no paradigma musical e festivaleiro português. Apesar disso, esta nova edição de 2024 continuará fiel ao cerne do festival, pautando-se por elementos que sempre o caracterizaram, como a entrada e campismo gratuitos e um foco na música alternativa portuguesa. Entre os dias 25 e 27 de Julho, o público que se deslocar à Mêda poderá ver concertos de Bateu Matou, Filipe Karlsson, Ganso e José Pinhal Post-Mortem Experience, entre outros artistas.
Este regresso do Mêda+ já havia sido conversado em 2023 entre André Rebelo Pereira, o director artístico desta edição, e a Câmara Municipal, mas o tempo dado não foi suficiente para levantar o festival das cinzas. “Passado 5 anos, fazer mais do mesmo era cair no esquecimento e estava condenado logo à partida. Portanto, decidimos não aceitar o desafio que nos foi lançado o ano passado, esperar mais um ano e fazê-lo este ano de uma melhor forma”, conta-nos André em entrevista. “A vontade de acabar não foi tomada de ânimo leve e nós próprios não estávamos acomodados à situação de o festival ter acabado.” Este fervilhar da vontade da Associação Juvenil Mêda+, que se criou para dar origem à primeira edição do festival, em 2010, e a conjugação de vontades fez com que o festival possa regressar então este ano.
Apesar das semelhanças no formato do festival, há também algumas mudanças nesta nova edição, particularmente em termos de disposição e funcionamento do mesmo. Antes, um dos palcos encontrava-se no Parque Municipal da Mêda, a cerca de um quilómetro do centro. Esta renovada versão pretende dinamizar mais a cidade, trazendo a música para o seu centro, distribuída por três palcos — mais um que em 2018. E se, na última edição, havia uma pausa para jantar de entre duas a três horas, desta vez “a música não pára. Quando acaba um concerto num palco, inicia-se, passado 15 minutos, um concerto noutra zona completamente diferente e dá-se vida a outra zona do centro da cidade.”
Para além dos nomes acima mencionados, o cartaz conta ainda com artistas e bandas como Alex D’Alva Teixeira (em formato DJ set), Baleia Baleia Baleia, Hause Plants, Summer of Hate e Vasco Completo. A eclética programação tem um foco no indie e no rock, de forma a “honrar o que foi feito no passado”, mas com “olhos postos no futuro”. Esse futuro segue a crescente tendência da valorização do que é local, com uma maior inclusão de música tradicional e ainda “de todos ou quase todos os artistas locais”. Entre eles, contam-se o Rancho Folclórico e a Orquestra Sinfónica de Mêda, assim como os artistas Fábio Mesquita (que já havia actuado no warm-up do festival anteriormente) e Carlos Pedro, que faz parte do grupo de cantares tradicionais Sol na Eira, que se dedicava à recolha e divulgação dos cantares característicos da região. Infelizmente, não foi possível reactivar o grupo a tempo do Mêda+ por questões de saúde, “mas o Sr. Carlos Pedro aceitou o convite e vai-nos lá brindar com as suas músicas”, como nos conta André Rebelo Pereira.
Mas não será só a música local que estará presente no Mêda+. O festival pretende ainda dar a conhecer àqueles que à Mêda se deslocarem um pouco da vida local e da cultura da região, nomeadamente no que toca à comida e à bebida. Em termos gastronómicos, para além da costumeira fast food, pode-se provar um “rancho, um caldo verde, uma feijoada ou uma punheta de bacalhau. Não tem de ser só coisas novas e modernas, porque a malta que se desloca a este tipo de coisas também gosta de receber a aculturação de estar num sítio diferente, mas comer o que é típico de lá.” Nesse sentido, o festival valorizará também a esmerada produção vinícola da região (que conta com cerca de 25 produtores apenas no concelho da Mêda) com uma degustação de vinhos locais, a decorrer a par dos concertos.
Relativamente às diferenças mais notórias entre organizar um festival em 2024 e na década passada, uma deles tem sido a clara subida de preços que se faz notar em praticamente todas as áreas da nossa vida. “Todos os custos de produção de um festival aumentaram significativamente, o que torna ainda mais difícil organizar um festival desta dimensão”. Apesar disso, a organização decidiu manter a entrada gratuita, pois, como explica André: “A publicidade à volta de uma entrada gratuita funciona também como chamariz numa zona bastante despovoada e mais pobre de oferta cultural”.
Essa fonte de receita tenta mitigar-se com a venda de merchandising e de bebida, assim como com o apoio da população local, que conta com pouco mais de duas mil pessoas. “Para fazer uma coisa destas tem que haver um grande envolvimento da comunidade”. Se, no início, os habitantes da cidade estranhavam e até se queixavam do ruído ou perturbações inerentes a um festival de música que acontece justamente à porta de casa, hoje em dia já o veem de outra forma. “A comunidade já fala do Mêda+ com carinho. Qualquer medense hoje sente-se como embaixador do Mêda+.”
Esse apoio da comunidade é muito valorizado pela organização, exemplificado em algumas histórias coloridas que André partilha connosco: “Por exemplo, andamos ali uma tarde inteira ao sol e uma senhora abre a porta: «Ah, estes meninos não querem uma aguinha?» É preciso 10 metros de rede. Alguém tem lá um restinho em casa e pronto: «também por 10 metros não vale a pena estar a comprar, eu vou buscar.» É esse tipo de coisas que, no final do festival, se fôssemos contabilizar isso tudo, a despesa do festival seria significativamente maior. São bens que não são contabilizados financeiramente, mas fica o gesto da pessoa e é bonito ver isto.”
No entanto, claro que os apoios têm de passar por acordos publicitários, algo que também se revela difícil devido à escala do festival. “Outro dos grandes desafios é uma marca mostrar-se no festival. Num grande setor urbano, é muito mais atrativo e mais fácil o pedido de apoios.” Apesar disso, o director artístico mostra-se confiante: “Estou certo de que vamos fazer um bom trabalho este ano e ser atrativos e no próximo ano vamos aumentar a nossa rede de apoios.”
Ainda sobre os desafios de organizar um festival fora de centros urbanos maiores, André Rebelo Pereira sublinha principalmente a acessibilidade. É que, por mais que Portugal seja um país relativamente pequeno, a deficiência na rede de transportes para o interior é algo que limita o acesso à pequena cidade da Beira Alta. Apesar de tudo, essa falta de acessibilidade também é encarada como um ponto positivo: “Quem vem para a Mêda, tira umas férias e fica completamente desligada do mundo durante 3 ou 4 dias. É isso que queremos convidar as pessoas a fazer.”
Olhando para outros festivais que trabalham a uma escala similar à do Mêda+, o organizador tece elogios ao Bons Sons, que, em Agosto, dinamiza o centro da aldeia ribatejana de Cem Soldos. “É um festival que serve de modelo para nós pelo envolvimento que tem com a comunidade, pelo carinho com que as pessoas que os visitam falam do Bons Sons e pelo sentimento de saudade que cria em todos os que o visitam. (…) É um bocadinho isso que nós gostávamos de transmitir, porque também sabemos receber, também somos carinhosos com quem nos visita”.
Sobre a descentralização, que é uma das grandes bandeiras do Mêda+, André sublinha ainda haver um longo caminho a trilhar, mas o início da solução é clara: “É ser sério na abordagem deste tema e apoiar ativamente quem solicita os apoios e quem trabalha ativamente na descentralização, seja na área da cultura, seja noutras. (…) Existem muitas associações e muitos municípios a trabalhar sozinhos, a remar todos os dias contra a maré para combater essa descentralização.” O tema da descentralização tem sido cada vez mais um tópico de discussão, pois é mais que sabido que esse problema em Portugal é bastante real, mas “não basta só meter ideias no papel ou falar na comunicação social”.
Essa descentralização espelha-se na alarmante desertificação que se vive um pouco por todo o interior de Portugal e cuja tendência não parece mitigar-se. “Na Mêda há cada vez menos juventude. A associação não se renova e os anos passam por nós”. Apesar disso, o medense mantém a fé na renovação das gerações: “Achamos que conseguimos renovar-nos e também passar isto às gerações mais novas para os envolver e para daqui a uns tempos estarem eles a tratar disto e o barco andar sozinho”.
Mas, por agora, há que ultrapassar o primeiro desafio do regresso para que o Mêda+ volte a ser um chamariz para a região. A confiança da organização é firme e o mote do festival é claro: “Queremos marcar a diferença. Não queremos ser melhores nem piores do que ninguém, queremos ser diferentes, marcar a nossa identidade e fazer diferente para continuar a crescer.”
Fonte: https://comunidadeculturaearte.com/entrevista-andre-rebelo-pereira-qualquer-medense-hoje-sente-se-como-embaixador-do-festival-meda/