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Há uns dias, numa qualquer rádio que passava os êxitos do momento, de repente começou a tocar “Good Luck, Babe!”, o hit meteórico de Chappell Roan que, à data desta publicação, está no top 5 das canções mais ouvidas no Spotify a nível global. Ensanduichada entre funk, rap e reggaeton, a música limpou-nos o paladar, um pouco como uma água das Pedras nos ajuda numa prova de vinhos. Mas ao mesmo tempo também nos fez pensar: “como é que uma canção tão — entre grandes aspas — discreta e abertamente queer encontrou tamanho sucesso na paisagem musical contemporânea?” O maior fascínio pelo fenómeno (ou “femininómeno”) que é Chappell Roan começou no ano passado, ainda antes de lançar o seu álbum de estreia The Rise and Fall of a Midwest Princess, mas foi “Good Luck, Babe!” que a projectou para novas alturas. Vale a pena conhecer melhor a sua história.
Pelos vistos, desde há muito tempo que Kayleigh Rose — o seu nome de nascença — sabia que queria ser uma estrela da música. No início da sua carreira, apresentava-se precisamente com esse nome e começou a ganhar fãs desde cedo: recentemente, ressurgiram tweets de Troye Sivan com mais de uma década, em que o cantor australiano afirmava estar completamente vidrado na artista, preconizando o sucesso que ela eventualmente alcançaria. Para além de Sivan, as músicas originais que lançou no YouTube — particularmente “Die Young” — chamaram a atenção de editoras, levando a que, com apenas 17 anos, assinasse pela Atlantic Records.
De Kayleigh Rose passou a Chappell Roan em 2016, em homenagem ao seu avô, Dennis Chappell, cuja canção favorita se chamava “The Strawberry Roan”. School Nights, o EP que lançou em 2017, contém um pop sombrio e ocasionalmente baladeiro, com um peso na sua voz comparável a nomes como Adele, Lorde ou Lana del Rey. A música que lançou nessa altura está a anos-luz de distância de The Rise and Fall…, tanto em termos estilísticos como de confiança. Hoje em dia, Chappell revela que odiava cantar as suas primeiras canções ao vivo, pois não a permitiam divertir-se em palco. “Como é que eu torno isto numa festa?” foi o seu mote, como contou em entrevista à Vulture. Essa epifania, juntamente com a sua relocalização para Los Angeles, permitiu-lhe abrir a sua perspectiva relativamente à música pop.
Mas não foi só a sua atitude perante a música que mudou. Eventualmente, a sua própria aceitação como mulher queer chegou. A inspiração que visitas a bares gay como o The Abbey, em West Hollywood, lhe trouxeram permitiu-lhe fazer um ponto de viragem na sua carreira, com o lançamento de “Pink Pony Club”. Essa canção dance pop, lançada justamente no início da pandemia, foi mal interpretada pela Atlantic, que a retirou da gravadora por não saber o que fazer com a artista. Na mesma semana, o seu então namorado terminou com ela e, por essa altura, Chappell já estava “sem dinheiro”, vendo-se obrigada a regressar a casa dos seus pais. Depois de se recuperar, decidiu “dar tudo o que tinha” e regressar a Los Angeles para mais uma tentativa. A narrativa perfeita do “sonho americano” começou a criar-se para a princesa do Midwest.
Talvez tenha sido esse momento mais difícil que a inspirou a tornar-se mais independente e a seguir uma visão criativa mais desafiante e alternativa. Reaproveitando elementos da cultura drag que tanto admira e adoptando uma estética do-it-yourself, Kayleigh reinventou a personagem de Chappell, que a permitiu expressar-se sem medos, de uma forma mais confiante e extrovertida. Cada canção que se seguiu — “Naked in Manhattan”, “My Kink is Karma”, “Femininomenon” — era mais excêntrica que a anterior, abertamente aliando sexualidade e aceitação própria a melodias épicas e jubilantes. “O que eu fiz foi deixar de tentar impressionar a indústria musical e começar a tentar impressionar pessoas gay.”
Essa estratégia funcionou, pois a comunidade LGBTQ+ acolheu-a e propulsionou a sua carreira — algo que nem se pode considerar oportunista ou pouco genuíno, pois, por esta altura, a própria artista já se havia assumido como lésbica. Foi simplesmente uma forma de se encaixar na sua própria comunidade. E se há coisa que funciona com esta comunidade, é não ter medo de ser um pouco extravagante e abrir os braços a uma estética camp — designação que Susan Sontag descreveu como “uma estética especial que ironiza ou ridiculariza o que é dominante”. “Não quero saber se soo estúpida. É libertar-me da parte que me julga a mim mesma como compositora”, disse no ano passado. A sua cedência a esses impulsos já lhe ganhou fãs fora da comunidade, que certamente entrevêem na sua música uma liberdade que gostariam de assumir ou talvez uma atitude contra-cultura que lhes permite soltar-se um pouco das amarras do quotidiano.
É esta abertura que lhe permite adoptar e saltitar entre diferentes estilos musicais sem receio de soar foleira ou falsa, pois Chappell simplesmente habita qualquer espaço a que se propõe com naturalidade. Em The Rise and Fall of a Midwest Princess, o disco que compila singles que foi lançando entre 2020 e 2023, e mais algumas canções, explora pop com laivos disco e synth (“Naked in Manhattan”, “Super Graphic Ultra Modern Girl”, “Guilty Pleasure”), dá ares do Midwest em “Red Wine Supernova” e chega até a evocar Mitski, em “Casual”. Apesar de se mover noutros terrenos, a sua música encontra-se suficientemente próxima de Olivia Rodrigo para que a artista a convidasse para abrir concertos da tour do seu mais recente álbum, Guts (depois de já o ter feito em 2022, com o disco anterior).
A exposição que ganhou com esses concertos e o passa-palavra acerca dos mesmos foi aumentando o burburinho à sua volta. Logo após terminar a tour com Olivia Rodrigo, Chappell lançou “Good Luck, Babe!”, que se tem espalhado como fogo. Rapidamente comparada a Kate Bush, a canção tem qualquer coisa de nostálgico que se associa facilmente à mística cantora britânica, mesmo tendo um ambiente e um tema mais contemporâneos. A canção destina-se a uma rapariga com quem a artista termina por não se encontrar pronta para assumir a sua sexualidade, dizendo que será infeliz se não aceitar os seus próprios sentimentos. “You’d have to stop the world just to stop the feeling”, canta directamente para ela no refrão. “Good Luck, Babe!” demonstra um lado mais ligeiro da música de Chappell Roan e possivelmente desbrava novos terrenos para os seus futuros trabalhos.
O sucesso quase instantâneo potenciado pela canção levou a que recintos tivessem de ser aumentados para acolher a torrente de pessoas que queriam assistir aos seus concertos previamente marcados — exemplo disso foi o festival Bonnaroo, no estado norte-americano do Tennessee. Mantendo-se fiel à estética extravagante que popularizou os seus concertos ao vivo, a sua apresentação no festival Governors Ball, em Nova Iorque, é já um dos momentos mais icónicos de 2024. Vestida como uma estátua da Liberdade (mas de costas expostas) pintada de verde, dirigiu-se à Casa Branca, cujo convite para actuar no contexto do mês do Orgulho a artista recusou, dizendo: “Queremos liberdade, justiça e liberdade para toda a gente. Quando fizerem isso, irei.”
É esta fidelidade aos seus valores e à sua visão artística que a têm pintado como uma estrela pop diferente do normal, talvez marcando uma nova tendência na indústria musical. Ainda pode ser prematuro delinear um longo e frutuoso futuro para a artista, mas para já, adaptando a própria letra de “Good Luck, Babe!” para uma devida conclusão, teríamos de parar o mundo para parar a ascensão de Chappell Roan.
Fonte: https://comunidadeculturaearte.com/o-sonho-americano-a-moda-de-chappell-roan-a-princesa-do-midwest/