
Prometendo “liberdade financeira” e um “avanço para o futuro”, algumas fintechs brasileiras passaram a operar à margem da lei e caíram na mira das autoridades. Investigações conduzidas por forças-tarefa da Polícia Federal, polícias civis e Ministérios Públicos de diferentes estados revelam que plataformas tecnológicas de pagamento foram usadas por integrantes do Primeiro Comando da Capital (PCC) e do Comando Vermelho (CV) para lavar dinheiro oriundo do tráfico de drogas, de armas e de outros crimes.
O fenômeno da chamada “fintechização” do crime movimentou R$ 28,2 bilhões entre 2019 e 2025, conforme apontam mais de 3 mil páginas de documentos de seis grandes operações. O montante, operado por oito instituições de pagamento e bancos digitais, supera o orçamento de cidades como Belo Horizonte e corresponde a mais da metade do que o Rio de Janeiro terá em caixa no próximo ano.
As fintechs oferecem serviços como transferências, abertura de contas, compra de criptomoedas e carteiras digitais. Em tese, ampliaram o acesso bancário da população e estimularam a concorrência. Mas a ausência de fiscalização mais rígida abriu espaço para o submundo do crime explorar essa estrutura tecnológica com rapidez e discrição.
“Algumas fintechs estão substituindo os doleiros. São como paraísos fiscais”, afirmou o promotor Fábio Bechara, do Ministério Público de São Paulo, que atua em casos envolvendo o PCC.
PCC e CV se unem por trás de “banco cripto” brasileiro
A fintech 4tbank, criada em 2019 como o “primeiro banco cripto” do Brasil, tornou-se um dos principais alvos das investigações. Oficialmente registrada em nome de uma jovem de 24 anos, a empresa movimentou R$ 500 milhões em quatro anos — R$ 80 milhões apenas em espécie. O verdadeiro chefe da operação, segundo a polícia, era o padrasto da jovem, João Gabriel de Mello Yamawaki, apontado como prestes a ser “batizado” no PCC.
Yamawaki está foragido. Sua defesa admite que ele era o gestor da fintech, mas nega qualquer ligação com a facção criminosa. Segundo promotores, o mesmo “banco cripto” também foi utilizado pelo CV, em um raro caso de parceria estratégica entre os rivais. A aliança tinha objetivo claro: lavar dinheiro em larga escala com agilidade e menos exposição.
“É um negócio altamente vantajoso. Melhor que arrumar ‘laranjas’ e milhares de contas. Você abre o próprio banco digital, que te permite comprar criptoativos e movimentar dinheiro no mundo todo”, explicou o promotor Lincoln Gakyia, que há mais de duas décadas investiga o PCC.
Rota internacional, criptomoedas e contas em paraísos fiscais
Outra fintech, a 2GO Instituição de Pagamento, sediada em São Paulo, teria lavado cerca de R$ 6 bilhões com operações que passaram por 15 países, segundo o Ministério Público. A empresa oferecia a seus clientes USDT, criptomoeda pareada ao dólar, recebendo valores em reais de empresas de fachada e investigados por roubo e tráfico. A 2GO foi mencionada em relatórios do Coaf por movimentações de US$ 80 milhões com contas digitais sancionadas por Israel.
A defesa de Cyllas Salerno Júnior, ex-CEO da empresa, alega que as acusações são “infundadas” e não têm respaldo técnico nem jurídico. A nota também nega qualquer atuação ilícita da empresa ou de seus representantes legais.
As investigações apontam ainda que as facções adotaram práticas como o fracionamento de transações para evitar detecção, a conversão de dinheiro sujo em criptoativos e a simulação de empréstimos quitados com recursos ilícitos como forma de legitimar valores ilegais.
Fintechs também são usadas para blindagem patrimonial
Além da movimentação de recursos, fintechs passaram a atuar como escudo contra ações judiciais. A T10 Tecnologia e a I9Pay, por exemplo, operavam “contas bolsão”, uma estrutura que permitia ocultar os verdadeiros titulares de subcontas, blindando o patrimônio contra bloqueios, quebras de sigilo e rastreamento.
Nesse modelo, a fintech aparece como titular de uma conta empresarial vinculada a um banco credenciado pelo Banco Central. A partir dessa conta, ela gerencia subcontas em nome de clientes que não têm vínculo direto com o banco — o que dificulta a ação das autoridades. Nas transações, não aparecem remetentes ou destinatários finais, tornando o rastro praticamente invisível.
“A dimensão do problema é gigantesca, uma vez que viabiliza a ocultação e dissimulação de valores provenientes do crime dentro do próprio sistema financeiro oficial”, alertou o delegado da Polícia Federal André Ribeiro.
As defesas da T10 e da I9Pay negam qualquer irregularidade. Ambas afirmaram que sempre atuaram dentro da legalidade e seguiram os requisitos do Banco Central.
Explosão de alertas e falhas de fiscalização preocupam autoridades
Embora nem todas as fintechs estejam sob a supervisão direta do Banco Central, o órgão afirmou que trabalha de forma constante para aperfeiçoar as regras do setor e evitar a ação de criminosos. O problema, no entanto, é crescente.
Dados obtidos por meio da Lei de Acesso à Informação mostram que o número de comunicações de operações suspeitas envolvendo “arranjos e instituições de pagamento” chegou a 85.829 até junho de 2025 — mais do que em todo o ano de 2024 (80.955). Os números mais do que dobraram em relação a 2022 e 2023, e são mais de 1.900 vezes maiores do que há dez anos, quando foram registradas apenas 45 ocorrências.
Com tecnologia, anonimato e transações internacionais, as fintechs se tornaram o novo braço financeiro do crime organizado. A velocidade com que o modelo evolui desafia as autoridades a apertarem o cerco antes que o sistema paralelo substitua de vez o oficial.
Fonte: https://agendadopoder.com.br/fintechs-viram-aliadas-do-crime-e-movimentam-r-26-bilhoes-em-lavagem-de-dinheiro-para-faccoes/