22 de novembro de 2024
A coça que levámos dos Sleaford Mods na Casa da
Compartilhe:




DR


PUB


Controversos. Polémicos. Barulhentos. Ríspidos. Enfim, castiços. São assim os Sleaford Mods, uma dupla carismática, constituída pelo vocalista e letrista Jason Williamson e pelo músico Andrew Fearn, proveniente do coração do Reino Unido, mais especificamente da cidade de Nottingham. Uma dupla que já passou por Portugal por muito mais de uma ocasião, tendo vindo ao Porto há já 6 anos, no Hard Club, e há 7 no Primavera Sound, com a última vinda a solo luso a ter acontecido na última edição do Paredes de Coura (lá estivemos há oito anos neste festival). Para quem os ouve pela primeira vez, dá a impressão de os já ter escutado algures noutro lugar. A sua sonoridade remete para o grime que se revê no punk rock e no rave e para o UK Rap, que também têm uma grande presença num filme de culto dos anos 1990: o hipnótico “Trainspotting” (1996), de Danny Boyle, adaptação direta da obra homónima do escocês Irvine Welsh. Nesta banda sonora, destaque especial para os Underworld e os Leftfield, com quem viriam a colaborar em 2015, numa aparição na faixa “Head and Shoulders”.

Nessa boa maneira do punk, os Sleaford Mods entram com tudo na crítica social e na apologia às classes trabalhadoras. O caminho de ambos começou em 2009, quando se conheceram e, entretanto, começaram a fazer música juntos, homenageando a cidade de Sleaford (situada nos arredores de Nottingham) no seu nome. Outrora com a presença de Simon Parfrement na engenharia de som, somente em 2012 é que Fearn e Williamson seguiram sozinhos na produção musical – Parfrement passou a gerir a comunicação e a ser o fotógrafo oficial -, amealhando, desde então, uma numerosa discografia que se começou a diferenciar a partir de “Divide and Exit” (2014).

Desde então, “Key Markets” (2015), “English Tapas” (2017), “Eton Alive” (2019), “Spare Ribs” (2021) e “UK Grim” (2023) conferiram volume proporcional à qualidade que lhes vinha sendo reconhecida. Mais recentemente, a versão que interpretaram de “West End Girls”, dos Pet Shop Boys, tornou-se igualmente mediática, percorrendo o mundo ocidental como já tinham feito nos seus concertos. Também mediática foi o término abrupto de um concerto da dupla em Madrid em novembro passado, após um espetador atirar uma bandeira da Palestina para o palco. Criticados pelo caso, defenderam-se com a justificação de que esse espectador estava a causar sucessivas interrupções ao concerto, incomodando quem dele queria usufruir, e reiteraram a necessidade de um cessar-fogo no conflito entre Israel e Palestina.

Chegados a 2024, nesta aparição fugaz de abril por Portugal, foi a Casa da Música que os acolheu, um espaço que, por norma, se dedica a uma programação musical com um registo mais ou menos formal e harmonioso, sem espaço a grandes disrupções em temas e em expressões. Esta notícia foi recebida pela maioria dos fãs com desagrado, considerando-o um concerto feito para se assistir de pé e a dançar. Foi este choque de registos, para além de um acrescido interesse pela dupla britânica, que nos motivou a excursão até a esse espaço. Momentos de spoken word e rap com muito calão à mistura – um registo conhecido como o sprechgesang – numa sala de concertos onde as cadeiras não são amovíveis e sem nos permitir reagir com liberdade corporal é um fenómeno um tanto ou quanto estranho. Tudo isto sem ver um pint ou outro na mão e uns murros na mesa ainda torna a coisa mais inusitada, mas experimente-se.

O resultado final foi, antes de tudo, antecipado por, uma hora antes da que ficou definida para a entrada dos Sleaford Mods, um concerto de abertura. Assim, às nove da noite, chegariam os Sereias, uma banda que nos chega por força da Lovers and Lollypops, constituídos pela voz meia alucinada e transfigurada de António Pedro Ribeiro, pela bateria de João Pires, pelo baixo de Tommy Hughes, pela guitarra de Sérgio Rocha, pelo sopro de Miguel e pelas teclas de Nils Meisel. Apresentando-se como uma fusão de jazz e de pós-punk, a sua discografia – a saber, “O País A Arder” (2019) e “Sereias” (2022) – fazia antever e perceber o porquê de ter sido esta a escolhida para ascender ao palco para aquecer o público para os Sleaford. Profundamente ativos na crítica social, o grupo, que esteve recentemente na Estónia a atuar, traz uma sonoridade incrivelmente disruptiva e com afinidades com aquele jazz mais barulhento e hermético (o sopro também pode ser do punk), munida de uma energia capaz de cavalgar um público que, mesmo num ambiente mais comedido, rejubilou com a grosseria sã do quinteto. Desde a denúncia da corrupção ao imperialismo norte-americano, os impropérios foram frequentes e o público, ainda a meio gás, ficou fã.

Chegados ao cardápio principal, o duo britânico irrompeu por lá dentro e não deixou parar o público que não encheu a plateia, deixando grande parte das cadeiras superiores vagas. Mesmo assim, desde os dez segundos em que bastaram para a primeira fila se levantar em peso, esteve totalmente ligado à tomada. Uma energia tremenda foi aquela que levitou o recinto da Casa da Música que, embora não cheio, foi leal e vibrou de início ao fim em pouco mais de uma hora de hostilidades. Fearn não parou de saltar de um lado para o outro e muitos de nós o acompanhamos e Williamson só quis cantar e fazer as suas coreografias inusitadas, interagindo frequentemente com a primeira fila dos espectadores. A qualidade de som chegou imaculada, assim como o trabalho diversificado, intenso e colorido de luzes, e o microfone deste foi carregado por ele com o vigor com que cantou as melhores malhas do repertório e dos UK Grims (a contar com o EP “MORE UK GRIM”, lançado no ano passado).

Para os fãs, aquelas que mais mexeram foram, logo a abrir, precisamente “UK Grim”, “Nudge It”, “Tied Up in Nottz”, “Jobseeker”, uma versão de “West End Girls”, dos Pet Shop Boys, “B.H.S”, “TCR” e a implacável “Tweet Tweet Tweet”. Ou seja, uma viagem prolongada por grande parte dos álbuns editados pelo duo e que deixou o comum fã pleno pela envolvência da experiência. Esse mesmo público, um tanto ou quanto heterogéneo na idade, superou com facilidade o impasse das cadeiras inamovíveis, abrindo espaço para a dança e para o movimento. Muito dele, aliás, ficou para o concerto seguinte, do DJ alemão Boyz Noize, para o qual não ficámos, mantendo grande vivacidade enquanto, por vezes, fazia uso das cadeiras para o repouso.

Não há muito mais a dizer sobre esta banda senão que, ao vivo, são exemplares e que deram uma coça a quem assistiu. Uma coça de boa música, de pujança, de vernáculos mais ou menos percetíveis, de energia, de personalidade. Uma coça que não conheceu limites logísticos e que se cumpriu em pleno, reforçando o estatuto dos Sleaford Mods em Portugal. Cada vez mais é um duo querido no país e as suas vindas, por mais repetidas que se tornem, não são, de todo, repetitivas. São, antes, um acréscimo constante e consistente no qual nos assumimos como masoquistas. São coças que gostamos de sentir e de assumir como nossas, tendo nós a responsabilidade (quiçá culpa) de ter tão bom gosto.

Gostas do trabalho da Comunidade Cultura e Arte?

Podes apoiar a partir de 1€ por mês.

Fonte: https://comunidadeculturaearte.com/a-coca-que-levamos-dos-sleaford-mods-na-casa-da-musica/