
Com Julho a chegar ao seu ocaso, chegou também ao fim mais uma edição do festival Ageas Cool Jazz. Depois de termos assistido aos concertos de Ezra Collective e Jordan Rakei, e de Gilsons e Jota.pê, a música na noite de fecho ficou a cargo de Masego, Amaura, Razy e Peter Castro. Os sons primaram principalmente pela sensualidade e groove da música negra, algo que não surpreende ninguém que seja fã do saxofonista jamaicano-americano que encabeçava o alinhamento. Mas as hostes abriram-se de uma forma mais delicada.
À nossa chegada ao concerto de abertura da noite, Razy estava embrenhada num discurso apaixonado sobre guerra e o privilégio que é termos liberdade. Num momento em que “pessoas se tornam números” e “casas viram pó”, a jovem artista argumenta que o papel do artista é o de usar a sua arte e a sua plataforma para chamar a atenção para esses temas. Foi um momento bastante aplaudido pela plateia recheada. Então, “armada” com o seu baixo e com a sua voz doce, atirou-se às suas músicas ocasionalmente pachorrentas, com uma atitude e sonoridade que nos lembrou de Corinne Bailey Rae no início de carreira. Filha de mãe cabo-verdiana e pai angolano, mistura soul, jazz e blues com as suas raízes africanas.

A sua música toma o seu tempo a ser construída. A certa altura, faz uma introdução prolongada de baixo para uma das canções, que o público foi acompanhando com palmas. Sem pressa, deixou que desembocasse numa bossa nova suave como manteiga derretida. As canções envolventes que foram apresentadas estavam a ser estreadas precisamente naquele concerto, sendo que fomos as cobaias. Da parte que nos toca, estão prontíssimas para ser apresentadas a públicos maiores, pois o concerto de Razy foi uma belíssima surpresa. “Apoiem artistas locais, apoiem artistas nacionais”, disse a artista no final, lendo-nos os pensamentos.
O próprio festival incentiva esta missiva de ouvir artistas locais, não se cingindo a alistá-los para as Cascais Jazz Sessions que abriram cada dia de festival, mas colocando-os também no palco principal. Para abrir para Masego, a soul e R&B de Amaura parecia assentar que nem uma luva, mas alguma coisa não funcionou como devia. Em geral, o público estava distraído e falador, não tendo prestado tanta atenção à voz poderosa de Amaura como a mesma merece. Mas a verdade também é que a música tocada, em certas alturas, soava relativamente genérica, sem grandes particularidades que a diferenciassem de artistas que já vieram antes e que também bebem da fonte do funk, do rock e da soul.

Quando a música seguia para o terreno do afrobeat (como em “Chakra Sacro”) ou incluía pequenas surpresas — como a interpolação de “Feeling Good”, o clássico inconfundível na voz de Nina Simone, em “Subespécie” — as coisas ficavam mais interessantes. O que também ajudou foi o carisma de Amaura, que estava notoriamente feliz por se apresentar naquele palco. À quinta canção, fez uma relativamente bem sucedida tentativa de conexão profunda com o público, ao cantar a lenta e noturna “Só Sinto”. A canção que era a favorita da sua falecida mãe foi-lhe dedicada, com direito a uma projeção de uma fotografia sua como pano de fundo. No final da canção, o público estendeu os braços no ar em direção ao céu, na derradeira homenagem que foi o momento mais tocante da atuação.
Infelizmente, o curto concerto só voltou a engrenar a partir da antepenúltima canção. A spoken word de “T.P.M.” — canção sobre aquela altura do mês — foi um momento jazzy no qual o flow de Amaura brilhou, tendo sido absolutamente inegável. Depois, “Kilo” também se destacou pela entrega apaixonada da cantora (“Sei bem que há quеm só queira amar avulso / Mas é que eu já еu só sei amar ao quilo”) e pelo clímax de guitarra elétrica distorcida que exacerbou toda essa paixão.
O saxofone é um dos instrumentos mais amados e vilificados da música. Sensual, atmosférico, cómico, foleiro; o saxofone faz um pouco de tudo. Masego sabe disso. No entanto, o artista jamaicano subverte todas essas componentes do saxofone à sua mercê e usa-o para um único propósito: o prazer. A partir do momento em que subiu ao palco com o saxofone em riste como uma rockstar, Masego levou-nos por um reino onde o prazer é rei e as promessas são de uma Babilónia tropical. Tudo começou com uma projeção de um avião a despenhar-se num reino místico, uma ilha flutuante de jardins luxuosos e fulgurantes

Depois do hip hop de um dos seus primeiros singles, “Navajo”, a sequência de “Queen Tings”, “Old Age”, “Lady Lady” e “Mystery Lady” foi inteiramente focada nos prazeres daquilo que é feminino. A grande maioria das suas canções são dedicadas a mulheres, seja para as homenagear, cortejar ou algo ainda mais lascivo. Na configuração de Masego, elas são deusas poderosas e curvilíneas, idealizadas mas também respeitadas em todas as suas dimensões. A sua música, descrita como um híbrido de trap, house e jazz, acaba por ser o veículo perfeito para tudo isto.
Para além do desejo e da sensualidade, um outro tema resgatado ao hip hop é o do dinheiro. Canções como “Black Anime” ou “Yamz” — esta última escrita quando Masego estava no início de carreira, ainda sem dinheiro — não soam a gabarolice, mas sim à celebração de um sucesso que adveio de muito trabalho. E por mais que o tema seja recorrente, o artista vende-o com muito carisma e uma genuína joie de vivre. Apesar de a sua música dever muito aos grandes nomes da música negra, como Stevie Wonder ou D’Angelo, já conseguiu escavar o seu espaço na música contemporânea e transcender o estatuto de artista viral ou de “sabor do momento”.

Isso também se deve à qualidade das suas composições. Por exemplo, “What You Wanna Try” converte a familiar melodia de “Tom’s Diner”, de Susanne Vega, em algo que nos propele para a frente. O seu pedigree musical — de autodidata, deve dizer-se — estende-se também aos músicos que o acompanham. Jonathan Curry, o seu baterista, fez uma excelente mostra de ritmo com o seu kit de bateria que mais parecia um complexo andaime. A certa altura, um dos seus solos estendidos fez-nos lembrar de uma versão hip hop de Eli Keszler, perfeitamente produzido e com imensa textura, como se de uma tempestade se tratasse.
Depois dos incêndios que assolaram Los Angeles, cidade onde Masego vivia, no início deste ano, o artista mudou-se para Salvador, no Brasil. “Eu me chamo Maseguinho hoje”, disse-nos no seu português quase perfeito e adorável, que tentou exercitar sempre que podia, apesar do vocabulário ainda limitado que possui. A sua música sempre teve alguma ginga, mas o calor baiano parece ter-se entrosado ainda mais na sua música. A certa altura do concerto, experimenta com um sintetizador e um keytar para criar uma canção em português, no momento: “vem pra cá”, cantava com animação. Já perto do final, depois de ter atirado rosas ao público e ter ido tocar saxofone para junto dos fãs, ainda fez dois desvios geográficos à Jamaica e à África do Sul, honrando ritmos característicos desses países.
Para a última canção, não podia faltar “Tadow”. O hit que compôs em poucas horas com FKJ e que o catapultou para a fama em 2018 foi, obviamente, o tema mais celebrado pelo público, tendo fechado com chave de veludo dourado (para ser mais sensual) um ótimo concerto.
Esta última noite de festival foi fechada por um DJ set de Peter Castro, o DJ e produtor também conhecido pelo seu consultório amoroso no Instagram, chamado Dr. Love. O fecho contou ainda com a notícia de que, sem surpresas, o Ageas Cool Jazz regressará a Cascais em 2026 para mais uma edição, entre 1 e 31 de Julho. Até lá, deixemos a relva do Hipódromo Manuel Possolo regenerar-se para receber mais jazz e todos os estilos musicais que o rodeiam.
Fonte: https://comunidadeculturaearte.com/a-sensualidade-de-masego-fechou-mais-uma-edicao-do-ageas-cool-jazz-com-chave-de-veludo-dourado/