Pode-se morrer de amor, mas também se pode resistir e enveredar por outro caminho. “Porque se morre muito de amor no fado”, esta dualidade intrigou Carminho quando olhou, pela primeira vez, para este verso de um poema inédito de Carlos Barrela que encontrou numa caixa da fadista Beatriz da Conceição, com poemas que lhe foram entregues após a sua morte. “Não se trata de criar uma nova temática para o fado, mas, se uso o fado como instrumento, uso-o a meu proveito: aproveito os temas que gosto de cantar e as ideias que me fazem pensar”, revela Carminho, acrescentado a importância de enriquecer o fado com mais temáticas ainda. Acrescenta também que não há nenhuma tentativa de mudar o fado, mas que parte do que sempre conheceu bem e, depois, é como se tentasse movimentar-se “dentro desses lugares de uma outra maneira.” Relembra ainda o facto do mundo do fado ser ainda muito masculino, mas acredita “que tanto no fado como na música em geral, aparecerão cada vez mais mulheres a tocar instrumentos, a integrar bandas e também a participar na indústria em todas as suas áreas, não apenas na parte criativa ou artística, mas também na técnica.” Carminho falou sobre tudo isto, assim como a sua relação com a poesia — “a poesia é um ser vivo, tenho uma forte convicção nisso” — a sua colaboração com Rosalía, como se sente mais livre a explorar sem pensar tanto no que outros poderão pensar e, claro, sobre o álbum “Vou Morrer de Amor ou Resistir”, também com poemas de Ana Hatherly e colaboração de Laurie Anderson.
Comecemos pelo título do álbum, “Vou morrer de amor ou resistir”, que aponta para dois caminhos: a resistência do amor, ou aquela ideia romantizada de ter de se morrer por amor. Queres falar um bocadinho sobre a dualidade desta frase?
Essa frase inspirou-me muito porque, de certa forma, contém a temática corrente e comum do fado, que é morrer de amor — morre-se muito de amor no fado — e, ao mesmo tempo, há uma subversão dessa temática já tão trabalhada, que reside na ideia de que uma pessoa também pode resistir. Interessa-me cantar essa possibilidade porque acho que as temáticas do fado podem sempre ser alargadas. O fado é um instrumento que, na verdade, trabalha uma língua viva que é para se falar, mas o discurso, o texto está em cada um dos artistas, e é cada um desses artistas que tem de o trazer consigo. Tal como uma língua só adquire semântica se for falada, o fado também só adquire mais temas e mais temáticas se for cantado e trabalhado nesse sentido. Por isso é que gostei da ambiguidade da frase, achei que era uma frase muito em aberto, e não tão comum no aspecto fatalista que o fado tantas vezes traz, como aquele “morrer de amor”.
O fado tem sido muito pautado por essa visão fatalista do amor?
Essa é a história do fado, que tem essa conotação de destino marcado. Há muitos fados que falam do facto do nosso destino já estar traçado, outros sobre essa ideia de um amor que nos deixou e que já não volta. Canto alguns desses fados, não são temas que eu rejeite, pelo contrário. São temas muito importantes e que também fazem parte do panteão de sentimentos que muitas vezes chegam a um género musical como o fado, que é muito emocional, vai ao limite daquilo que as pessoas sentem, daquilo que as pessoas querem cantar e até expulsar. Faz parte da história do fado, sem dúvida, mas são temas muito trabalhados e sinto que há mais temas por cantar. O fado pode servir outro tipo de discurso e, de certa forma, uma das coisas que mais me representa é o facto de ser uma mulher no fado, uma mulher do século XXI, com as minhas influências, as minhas contaminações, os artesãos e artistas que admiro, onde busco inspiração, tanto dentro do fado e da sua história como fora dele. Independentemente do tipo de música que canto, sou uma intérprete que precisa de expressar o que sente: o fado serve para isso, para cantar o que sinto, e é importante que os fadistas tragam o que sentem para o fado.

Mas o fado nasceu de uma via popular e talvez, de certa maneira, também tivesse servido para expressar o sentimento de um povo. Talvez esse lado fatalista, mais ligado à dor, também tenha a ver com o que sofremos ao longo da história. A partir de agora será também necessário trazer outras visões.
É verdade, tens razão. Se dás voz a um povo, acabas por cantar o que as pessoas querem ouvir e sentir. Mas o fado também sofreu muito controlo, de certa forma. Os temas seguiram vários caminhos na sua história. Antes do Estado Novo, o fado tinha um lado muito socialista e social do ponto de vista temático: havia muitos fados dos trabalhadores e dos sindicatos que expressavam as más condições de trabalho das pessoas mais pobres. No entanto, existiram temas que tentavam emergir dentro do fado e que foram rapidamente abafados e censurados. Não sei se posso usar essa palavra — censura pura e dura — mas houve, de certa forma, um controlo sobre o que se podia cantar. Valorizou-se, depois, a ideia de uma vida pacata, de uma vida portuguesa, os amores, as relações mais religiosas com os santos e com a fé, enfim, descrições de situações ou de histórias do quotidiano, mas muito no plano pessoal. Se a pessoa não estava a falar de um povo, estava a falar de si própria, se estava a falar de si própria, passa, porque se eu disser que sofro de amor por causa do Chico ou do Zé, não é por causa do meu país. Muitos desses temas acabaram por se tornar muito restritos e limitados à ideia de que só podíamos cantar os nossos sentimentos pessoais, as festas da nossa cidade ou o quanto sofremos — o nosso próprio sofrimento — e o fado acabou por ficar preso na sua própria história. Não podemos esquecer que a Amália veio mudar isso drasticamente, uma vez que trouxe outra poesia para o fado, e também sentiu essa necessidade de trazer novos temas, nova poesia, novas formas de escrever e de falar português, novas composições, abrindo portas a todas as gerações futuras para que cantassem o que sentiam, aquilo que lhes fazia sentido. Mas sim, acho que cada um deve fazer o seu caminho. Não se trata de criar uma nova temática para todo o fado, mas, se uso o fado como instrumento, uso-o a meu proveito: aproveito os temas que gosto de cantar e as ideias que me fazem pensar.
O verso de que falámos, o título, faz parte de um poema inédito de Carlos Barrela, pelo que percebi. Encontrou-o numa caixa da fadista Beatriz da Conceição, com poemas que lhe foram entregues após a sua morte. Como foi a experiência de descobrir este verso?
Foi incrível, como uma seta no coração. É a sensação de ler uma frase que responde a muito daquilo que procurava, seja num verso ou numa ideia. Foi uma descoberta muito bonita, porque se trata de um fado tradicional, com uma estrutura tradicional, que pude integrar num fado novo, mas mantendo essa estrutura clássica. Escolhi o “Fado Súplica” precisamente por ser isso: é um fado antigo, clássico, e tem este tema transversal, mas subvertido: “vou morrer de amor ou resistir”. O resto do poema é muito clássico, trabalha ideias muito presentes no fado: as gaivotas, o rio, o corpo que se perde, o abraço ao corpo que já se perdeu. São frases muito belas, mas também muito típicas do universo fadista, e fica a ideia, vou morrer de amor, ou não. Isso intrigou-me.
Podemos dizer então que há um lado feminista mais forte neste álbum?
Sim, posso dizer que sim. Não faço deste álbum um manifesto de ativismo, mas é uma ideia com a qual me sinto cada vez mais sensibilizada, sensível e empática, com as mulheres que me antecederam e com as que virão depois. A força que as mulheres têm e precisam de ter para conquistar o seu lugar, o seu espaço e o respeito necessário para fazerem o que gostam com liberdade, sem amarras e sem preconceitos. Cada área tem os seus desafios, na música também, e muito no fado.
Notas que o fado ainda está muito centrado nos homens?
Sim. Há muito poucas instrumentistas mulheres, embora comecem a surgir mais. Tenho muita fé nas gerações que aí vêm, porque há muitas mulheres a estudar nos conservatórios e mais abertas a este género. Acredito que, tanto no fado como na música em geral, aparecerão cada vez mais mulheres a tocar instrumentos, a integrar bandas e também a participar na indústria em todas as suas áreas, não apenas na parte criativa ou artística, mas também na técnica. Sinto que ainda é um mundo muito masculino, e talvez por isso sinta esse contraste.
Mas estamos habituados a ver mulheres como intérpretes de fado. Quando falas que esse mundo ainda é muito centrado nos homens, falas também na área da composição, escrita e técnica?
Sim, porque, normalmente, as intérpretes são mulheres, mas depois quem compõe são maioritariamente homens, assim como quem escreve, quem toca os instrumentos e quem produz os discos — embora houvesse e haja mulheres que também escreveram e continuam a escrever — mas todos esses papéis no ecossistema contam.
O mais importante não é serem homens ou mulheres, mas sim reconhecer que há uma pressão e, por vezes, uma desvalorização do papel da mulher nesse contexto. Uma intérprete não precisa de compor ou produzir os seus discos para ser uma grande artista: o que importa é que possa ser livre, respeitada, que a sua opinião possa ser ouvida, sem ser manipulada. Posso parecer um bocadinho dramática, mas a verdade é que o ambiente é esse.
É muito bonito, no entanto, ver que há cada vez mais homens, também no fado, seguros de si e abertos. Todas as pessoas com quem trabalho são profissionais incríveis, músicos talentosíssimos, e relacionamo-nos todos com muita confiança, com muita abertura, muita liberdade e com o reconhecimento do talento de cada um. Só assim é que se pode trabalhar e fazer coisas muito bonitas.
Porquê escolher estes versos, especificamente, para o tema “Balada do País que Dói”, da Ana Hatherly? “O barco vai, o barco vem/Português vai, português vem/O corpo cai, o corpo dói”
Há coisas que não se explicam bem e nem precisam de ser explicadas. Este é um poema de Ana Hatherly, uma das grandes poetas experimentais portuguesas, uma mulher notável nas artes visuais e também na música. O seu trabalho é profundamente interdisciplinar, entre poesia, música e desenho.
Os poemas dela já são musicais: os desenhos parecem poesia e as canções parecem desenhos pela repetição, pela intuição, por essa direcção interior que caracterizava a sua arte.
A poesia é um organismo vivo, transforma-se com o seu tempo, com o seu contexto, com o seu lugar. Os versos não são apenas versos, são palavras ouvidas por quem as lê, no seu estado emocional e no seu momento. O que sinto com a poesia dos outros é pessoal e intransmissível, só consigo transmiti-lo através do canto.

O que procuras num poema? Dás muita importância à musicalidade das palavras?
Procuro muitas coisas num poema e nem sempre as mesmas. Os poemas, por norma, chegam-me de forma emocional, muito mais do que racional. A musicalidade é algo que está numa primeira escuta, ou numa primeira leitura e é muito presente na forma como leio poesia. Talvez seja isso o que mais me atrai de imediato num poema, mas não é só isso. Às vezes é apenas uma pequena frase, a junção de duas palavras. No meio de um poema tão grande, às vezes é só um verso que faz com que esse poema seja inesquecível para mim. Talvez os outros não os tenha compreendido, ou ainda não sejam para mim, mas a poesia é um ser vivo, tenho uma forte convicção nisso. Não sei quem escolhe o quê. Acredito sinceramente que há uma espécie de sinergia de vontades entre mim e o poema.
Um poema também tem a altura certa para aparecer.
Acredito nisso, nesses fluxos do mundo.
Há um lado experimental neste álbum, até pelo uso das Ondas Martenot, do Cristal Baschet e da guitarra elétrica. Também há uma colaboração com Laurie Anderson. Para onde querias caminhar musicalmente com este disco?
Continuo a trabalhar nas mesmas coisas que trabalhava nos discos anteriores. Na verdade, são as mesmas perguntas e gosto de ir para o estúdio e entrar no processo outra vez. Esse processo é cada vez mais livre. Sinto-me mais livre, mais capaz de experimentar sem preconceitos, sem pensar no que os outros vão pensar, no que os fadistas vão dizer, se as músicas vão vender.
Essas respostas são as que menos me interessam. Interessa-me explorar a transversalidade das ideias: pensar no ritmo, pensar na ideia poética de que o poema tem ritmo, e transpor para algo que, musicalmente, traga essa emoção. Tudo isto está muito ligado com a minha própria emoção, com o que penso que o fado precisa — eu, pessoalmente, no estúdio, para mim — tem muito a ver com a performance ao vivo, mas também com a escolha dos silêncios, com a busca das várias ideias que vou explorando em estúdio. Explorar a voz foi uma dessas ideias, tanto que um dos instrumentos é o Mellotron, mas onde estão gravadas as minhas próprias vozes. Geralmente, é um instrumento que tem gravados outros instrumentos: é um sampler que grava os cellos, os coros, as orquestras, tem muitas flautas. É o primeiro sampler, na verdade, que acabou por ser muito marcante nos anos 60 e 70, muito usado no rock progressivo e no rock experimental. Na verdade, é um teclado, o teclado toca as vozes, assim como as vozes passam a ter uma outra dimensão diferente da minha. É o mesmo timbre, mas é tocado com uma outra abordagem, com uma tracção diferente.
As Ondas Martenot, um instrumento dos anos 20, nasceu de um radialista que, por ser cellista, procurava música nas suas ondas. Descobriu uma forma de mudar a tonalidade através da aproximação de frequências, um pouco como o Theremin. O Cristal Baschet é um instrumento completamente mecânico tocado com vidros. Ou seja, são os sons, não são os instrumentos em si, são os sons que me fascinam. São os sons que se desdobram daqueles sons que já lá estavam antes e trazem outros aspectos sonoros que me interessam. Isto já são dados um bocadinho técnicos de mais, mas na verdade as pessoas interessam-se porque os instrumentos são fascinantes e diferentes daquilo a que estamos habituados. O que procuro, no entanto, não são os instrumentos em si, mas os sons, as suas possibilidades, a personalidade sónica que se pode trazer para o fado através de alguma instrumentação que não o prenda, que não o traga para um lugar retraído, mas que o abra e que o continue a fazer fluir. Isto são só opções e opiniões minhas.
Falaste da Amália. Ela foi responsável por trazer novos poetas ao fado e dar-lhe outro aspecto musical. Como sentes essa tensão entre respeitar a tradição e trazer maior abertura ao fado?
Não tento fazer evoluir o fado, simplesmente quero praticá-lo. Pratico-o, então, com as ferramentas que tenho e com as influências que tenho. A Amália teve uma história, eu tenho outra. Todos os artistas têm a sua própria história, os artistas com quem lidam e que os influenciam. Se vemos isto como uma linguagem que está viva, que podemos praticar, utilizar em estúdio, que cantamos e praticamos, é só deixarmos ir. Não há uma tentativa de mudar o fado, não há. Essa pergunta, no entanto, tem bastante pertinência. Não me preocupo com o fado, talvez porque o conheça. Ou seja, parto daquilo que conheço: é como se estivesse a partir do princípio, de lugares que conheço bem, e depois tento movimentar-me dentro desses lugares de uma outra maneira.
Parto sempre do fado tradicional, das heranças que tive e da linguagem que fui adquirindo ao longo da vida desde pequenina. Essa linguagem já não sai, é a minha linguagem, é a forma como ouço e reproduzo o fado. É como no jazz, se uma pessoa quiser fazer um jazz, mas não vem do jazz, certamente pode tentar fazer uma composição jazzística, mas falta-lhe todas as referências que lhe dizem que aquilo não é a repetição de uma outra história. Ou seja, há muitas coisas que se conseguem porque se conhece bem aquilo que é a sua própria linguagem.
Como foi colaborar com a Rosalía?
É um prazer muito grande colaborar com uma artista como ela. É uma pessoa com um grande comprometimento na arte, sem ceder a ideias superficiais e que a mim me parecem muitas vezes, muito mais comuns na música e nas artes do que deveria, sobretudo na Pop, que é um género que tem muito dinheiro, mas ela não, corre atrás da arte, do que é a beleza, do que é o trabalho árduo de pesquisa do aprofundamento das coisas. Portanto, estar a fazer um dueto com alguém, como cantora portuguesa, é também aprofundar ideias que ela tem sobre a arte dela, a arte de colaborar, e portanto é um privilégio muito grande eu poder fazer música com as pessoas que admiro. É o que posso dizer sobre este dueto.
Esta entrevista foi realizada ainda antes do lançamento do novo álbum de Rosalía, que contém o tema de Carminho, “Memória”.
Fonte: https://comunidadeculturaearte.com/entrevista-carminho-nao-tento-fazer-evoluir-o-fado-simplesmente-quero-pratica-lo/

