22 de novembro de 2025
“Às vezes, a intuição atropela tudo que a gente estudou
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Mauricio Pereira / Fotografia de Rui Mendes

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Formou-se em jornalismo porque como não sabia o que queria, decidiu ir “para um negócio aberto.” Concluiu a faculdade ainda sem certezas sobre o rumo profissional a seguir, e foi sem querer que se tornou “num músico tardio”, quando ingressou na banda “Os Mulheres Negras”, com André Abujamra, e depois numa carreira solo, somando um total de oito álbuns: o seu primeiro trabalho enquanto Maurício Pereira chama-se “Na Tradição”, o seu último é “Micro”, de 2022.

Com mais de 40 anos de carreira, o pai dos também músicos Tim Bernardes e Chico Bernardes frisa que adora “música popular” porque, a seu ver: “a gente pode pôr muita ou pouca técnica, mas ela é um artefato cultural muito intuitivo, ela é quase uma descarga, um beijo, uma explosão e, às vezes, a intuição atropela tudo que a gente estudou e acho que essa é a beleza da canção popular: é a simplicidade e a grandeza que ela tem.” Sobre as vantagens e desvantagens em se ser um músico independente, Maurício desabafa que tal lhe traz mais liberdade e arrojo na criação mas, ao mesmo tempo, explica que “o Brasil é um país de mais de 200 milhões de habitantes, mas a classe média é pequena porque a distribuição de renda é muito ruim”

Tem esse problema do analfabetismo funcional. Então, você trabalhando de forma mais intrincada em termos de letra, produção e melodia, é mais difícil você chegar no grande público.” Fala também sobre os perigos das bolhas: “A gente acaba ficando distante da vida comum, da vida da calçada, de quem acorda cedo para ir trabalhar ou do assalariado, da pessoa que quer uma canção romântica, simples, que fale da vida dela.” O autor, que vai estar em Portugal no fim deste mês, depois de já se ter estreado no país em Leiria, vai estar, com “Micro”, na Casa Capitão, em Lisboa, dia 22; no Festival Bilhó, em Chaves, dia 23, e no Outsite Mouco, no Porto, dia 27. Destes concertos, podemos esperar, “muita delicadeza, muita poesia e um show em que converso com as pessoas. São shows que quanto menor o lugar, mais troca tem, mais delicado é. É um show delicado, com muita poesia e um guitarrista maravilhoso”, referindo-se a Tonho Penhasco. À comunidade falou, precisamente, sobre “Micro”, sobre como é ser-se um artista independente, sobre o Brasil que continua dividido após Bolsonaro e sobre como a poesia pode ser tóxica: “Não concordo que exista pobreza num país tão rico, não concordo que exista um governo que não aceite opinião contrária, mas isso está diluído. Tento iludir as pessoas, mas a minha mensagem está lá. Tento hipnotizar as pessoas.”

No tema “Um dia útil”, o Maurício coloca esta questão: “Quando a gente canta alguém presta atenção na letra?” A pergunta que lhe faço é a seguinte: Quando escreve a letra da canção, isso é importante para si? Que escutem e entendam a letra? Pensa nisso ou não é uma prioridade?

Penso muito nisso. Acho que a minha busca como compositor é afetar as pessoas, é mexer com a emoção e estremecer um pouco o espírito das pessoas com os afetos, com a maneira de contar. Às vezes, uma palavra diferente pode mexer com a pessoa. Então, estou sempre interessado em estabelecer contato com o meu ouvinte, por isso, na verdade, eu estou preocupado se alguém presta atenção na letra.

A palavra é tão importante quanto o som na construção de uma música? A própria musicalidade da palavra é importante?

Acho que cada compositor tem sua maneira de juntar texto com melodia. Penso que sou um cara prioritariamente do texto e, então, o meu primeiro pensamento quando vou fazer uma canção é literário. Se a gente acha a melodia certa, a palavra ganha muito espírito, ganha muita potência, mas meu ponto de partida é a palavra e, logo em seguida, a melodia. No entanto, acho que varia para cada compositor: no processo de compor, cada canção é de um jeito. Às vezes a gente já faz tudo junto, tem vezes em que componho e a palavra já vem com melodia.

No seu caso, há muitas brincadeiras com os próprios sons que as palavras podem ter na construção da letra. Tanto a solo como com “Os mulheres negras”. Mas tem um livro exatamente com as suas letras, “A Minha Cabeça Trovoa”, com comentários sobre o seu processo criativo e os seus caminhos poéticos. Além disso, vai fazer também cá em Portugal oficinas sobre o processo de criação e composição musical. Esta é uma intenção de, também, poder partilhar o seu conhecimento com quem ouve? Porque pode haver artistas que façam, mas não é uma regra geral, nem todos o fazem. Porquê este abrir de jogo do seu processo criativo?

É verdade, mesmo aqui no Brasil, são poucos os compositores que fazem isso. Tenho uma carreira particular, sou um artista de um público não muito grande, mas tenho uma estrada muito grande. Então, fiz muito pequeno show, sou um artesão, e o meu contato com o público é muito próximo. Sempre fui “xereta”, é um jeito popular de dizer que sou muito curioso. Gosto muito de chegar perto do público, ver como é que ele está entendendo, e o povo e público brasileiro, das mais variadas regiões e classes sociais, é muito musical. Há mais de 30 anos, resolvi inventar uma oficina de canções para estar perto do público, não só para quem escreve canção, mas para quem é um ouvinte atento. A minha tese é que, já desde muito criança, a gente tem as estruturas de uma canção na cabeça. A minha oficina não é científica, ela é quase uma vivência. Convido as pessoas a virem comigo praticar o processo de composição: os dilemas, a tradição, coisas técnicas. Então, a minha tese é que uma criança de um ano de idade já tem na cabeça estruturas melódicas e harmónicas. Aqui, no ocidente, a gente trabalha com sistema tonal. Quando a mãe da gente canta para a gente dormir, ela está botando o sistema tonal na cabeça da gente, com estruturas, pedaços de frases. Ela está botando a tradição melódica do país da gente. Quando a pessoa está na infância ou na adolescência, ela vai tomando posse da memória, do repertório musical de um país. Então, essa minha oficina é para a gente compor uma canção junto. Vou compor uma canção junto com o público e, enquanto a gente compõe, vou puxar essas sabedorias que as pessoas já têm sobre a canção e é isso que vai gerar a canção final. Acho também que, assim como ela bota um compositor que participe da oficina mais atento ao processo –  não só pelas coisas técnicas, mas também pelas intuitivas – o que quero nessa oficina é também que o ouvinte, porque o cara não precisa ser músico para participar, fique mais esperto para ouvir uma canção. A minha tese é essa, seja o cara músico ou leigo, ele sempre tem muitas estruturas de canção na cabeça. O Brasil é um país que não tem ainda uma alfabetização massiva. A gente tem muitos analfabetos funcionais. Ainda hoje, a gente é uma das dez maiores economias do mundo, mas a distribuição de renda é ruim e a distribuição de informação, de acesso à alfabetização, ainda não é boa. No entanto, uma pessoa completamente analfabeta consegue fazer canções: alguns mestres aqui no Brasil mal sabiam escrever o nome.  Isso acontece porque as estruturas de canção e a capacidade de expressar sentimentos estão presentes em todo mundo. Você aprende isso numa festa, quando a sua mãe canta, quando você vai num pagode. Então é isso, quero buscar as canções que vivem dentro das pessoas e exercitar o processo de composição. É muito simples, é uma vivência. Espero que dê certo.

Estamos a falar de música, a música tem a ver com o som e o som também nos leva à oralidade. É engraçado que, se calhar, antes de nós mesmos sabermos escrever ou ler, já  ouvimos histórias, ouvimos sons. A música é como se fosse uma forma primordial de comunicação, certo? 

Sim, e aí vou te falar do outro lado. Já dei essa oficina para crianças de seis anos. Elas têm muitas ideias, têm inclusive a criatividade mais solta, às vezes elas têm formatos, sejam coisas que vêm da tradição, como um acalanto, seja coisas que elas ouvem no rádio, na TV ou na internet, que também são estruturas. Para a gente que leva uma vida urbana, isso faz parte da nossa corrente sanguínea, praticamente. Então, penso assim, do mesmo jeito que uma pessoa muito intuitiva, uma criança ou alguém que não sabe escrever, mas que tem muita tradição e conhecimento empírico dentro de si, pode fazer uma bela música, uma pessoa que foi para a universidade e fez mestrado em música concreta, contemporânea, também. A canção popular, a gente pode pôr muita ou pouca técnica, mas ela é um artefato cultural muito intuitivo, quase uma descarga, um beijo, uma explosão e, às vezes, a intuição atropela tudo que a gente estudou e acho que essa é a beleza da canção popular: é a simplicidade e a grandeza que ela tem. Sou um adepto, um devoto da canção popular.

Mauricio Pereira / Fotografia de Rui Mendes

No Brasil, por exemplo, temos o caso do Cartola. Um dos primeiros sambistas que não estudaram formalmente ou foram para uma universidade, mas acabaram por ser imortais, naquele contexto.

E se você pegar canções do Cartola, vai ver que elas são muito refinadas, refinadíssimas. Você pensa assim, como é que o Cartola nunca foi parar na Academia Brasileira de Letras, junto com o Machado de Assis? É muito refinado, não só no texto, mas também na maneira de expressar os afetos, na escolha de imagens. O Cartola é um exemplo, ele é um mestre absoluto aqui e teve uma formação intelectual muito simples. Você vê o que é a grandeza da canção.

Mas o facto de comunicar também o que faz tem a ver com a sua formação em jornalismo? O que é que o levou, primeiro, à sua formação em jornalismo? O que é que é que pretendia?

Entrei na faculdade quando tinha 17 para 18 anos. Entrei muito cedo. Sabe aqueles magrinhos, pequenininhos que vão passando de ano? Quando você vê, você tem que escolher uma faculdade. Então, tinha 16 anos, fiz o vestibular [o exame requerido no Brasil para se ter acesso ao ensino superior], era um adolescente, não tinha bem a certeza do que ia fazer na vida, só tinha noção que queria fazer uma faculdade de ciências humanas. Isso eu queria, eu sou um cara das humanas [humanidades, ciências socias]. No Brasil tem um ditado que diz assim: a pessoa está mais perdida do que cachorro em mudança. Quando você está mudando de casa, você está tirando os móveis, pondo no camião de mudança e, geralmente, quem fica mais perdido na casa é o cachorro, porque ele é apegado ao lugar. Aos 16 anos, não sabia o que queria da vida, não sabia o que era o mundo, não sabia nada, e aí falei, “vou para o jornalismo”, porque a Faculdade de Comunicação aqui em São Paulo era mais eclética, podia me abrir as portas para estudar jornalismo, rádio, TV, biblioteconomia. Pensei: “Como não sei o que quero, vou para um negócio aberto.” No fim, terminei a faculdade sem saber o que queria, mas terminei e, sem querer, virei um músico tardio. Não virei músico aos 14 anos, como o meu filho Tim Bernardes, que quando nasceu, acho que já nasceu cantando. Virei músico sem querer depois, porque trabalhei em alguns jornais, não deu certo e, de repente, estava n’Os Mulheres Negras com o André Abujamra. Mas, hoje mais velho, olho para minha faculdade de comunicação e penso que a minha busca pela comunicabilidade foi importante, seja na canção, seja na maneira de fazer a rede social, de montar um roteiro de show, de montar a divulgação de um lançamento. Gosto muito disso, dessas coisas acessórias à canção, ao show e ao disco, que é a comunicação toda, como é que você vai se vestir, como é que você vai se portar, como é que você vai divulgar um trabalho. Depois de velho, entendi que a Escola de Jornalismo me deu muita ferramenta. Se por um lado a poesia me ajuda a fazer as letras, por outro lado, a Escola de Jornalismo me ajuda a divulgar o trabalho e a criar um clima. A mistura dessas duas coisas faz com que a minha poesia, às vezes, seja um pouco objetiva e a minha objetividade para divulgar o meu trabalho seja, às vezes, um pouquinho poética, mais solta e delicada. Enfim, demorei muitos anos para entender que a gente não perde nada, a gente aprende.

A sua carreira já tem mais de 40 anos. Ao longo de todas estas décadas, consegue dizer se é mais fácil ou mais difícil ser artista independente no Brasil, tendo em conta o quanto a indústria mudou?

Ser um artista independente, isso tem várias facetas. Então, do ponto de vista criativo, o que é legal é a liberdade que você tem. Como você trabalha para um público menor e um público mais letrado, mais atento, mais curioso, mais inquieto, você pode fazer canções mais loucas, um trabalho mais arrojado, mais provocador. Isso é legal. Por outro lado, o Brasil é um país de mais de 200 milhões de habitantes, mas a classe média é pequena porque a distribuição de renda é muito ruim. Tem esse problema do analfabetismo funcional. Então, você trabalhando de forma mais intrincada em termos de letra, produção e melodia, é mais difícil você chegar no grande público. Prezo muito a música muito popular. Quando for aí para Portugal, no meio do meu show autoral, eu não vou falar os nomes, mas vou fazer duas canções bastante populares. Sempre vi com muito respeito, por exemplo, a música sertaneja, o pagode, esses grandes artistas populares. Penso que na simplicidade da expressão deles, tem muita leitura do Brasil real. Às vezes, a gente que é mais intelectualizada, está lendo e falando de uma bolha para as pessoas que estão dentro dessa bolha. Isso me preocupa muito.

Mas acha que temos esse problema de uma elite mais intelectualizada a falar só para essa elite mais intelectualizada? Falta desconstruir um bocadinho o discurso para mais gente?

Acho que sim. No Brasil, a gente tem esse problema e ele tem dois motivos. A gente, por estar dentro da bolha, acaba produzindo coisas mais complicadas, entre aspas, mais complexas. A gente acaba ficando distante da vida comum, da vida da calçada, de quem acorda cedo para ir trabalhar ou do assalariado, da pessoa que quer uma canção romântica, simples, que fale da vida dela. A gente acaba ficando mais experimental. Então, na vida de músico independente, acho que o perigo que a gente pode correr é essa distância da grande população simples. Para mim, isso é doloroso. A gente tem esse ganho de liberdade expressiva, mas a sobrevivência financeira é muito difícil. Porque aqui no Brasil, quanto ao mercado, apesar de ser um país gigante, são muitos artistas disputando um público pequeno, o dinheiro é muito curto. Então, é doloroso você ter 200 milhões de pessoas, mas o seu mercado potencial vão ser 5 ou 6 milhões de pessoas. Isso é da política e da economia do país. Mas os meus ídolos de infância são caras como o Erasmo Carlos, por exemplo, que é um rei da canção popular aqui, muito simples e muito sensível. Ele era da Jovem Guarda – eu nasci em 1959 – que foi a maneira que o rock se instalou aqui no Brasil, com simplicidade e sabor.

Nota-se também que há muita influência, uma fusão entre o popular e o rock.

Porque São Paulo, dentro do Brasil, é uma cidade muito particular. Os portugueses chegaram aqui em 1500, na Bahia, então Salvador é uma cidade antiga. Recife foi muito forte no século XVII, era muito, muito rica, uma cidade que produzia cultura e debate filosófico. Depois foi Minas Gerais por causa do ciclo do ouro, no século XVIII: as cidades do barroco. O Rio de Janeiro foi muito importante no século XIX. O rei Dom João VI veio para o Brasil. A corte morou aqui por causa das missões francesas. Então, essas cidades todas, essas regiões do Brasil, tinham produção cultural e muita população até o século XIX. São Paulo hoje é a maior cidade da América do Sul e sempre foi um lugar que teve muito dinheiro, mas até à metade do século XIX, a gente era um vilarejo de 500 pessoas, não morava ninguém aqui, não tinha vida cultural, não tinha vida económica. A gente não falava português. Digo a gente porque me entendo como paulistano, mesmo sendo neto de portugueses e italianos. Mas a gente falava um idioma que eles chamam de idioma geral. Era um misto de português com tupi-guarani, que era a língua dos indígenas aqui. E, de repente, teve o ciclo económico do café e chegaram milhões de italianos no meio do século XIX. São Paulo foi uma cidade que cresceu de um jeito mais popular do que as outras de que falei. São Paulo cresceu com as grandes migrações, com italianos, libaneses, japoneses e a cidade explodiu depois da invenção da energia elétrica, portanto, depois da propagação dos meios de comunicação de massa. Então, São Paulo, comparando a cidade ao resto do Brasil, é um lugar desenraizado. O português que a gente fala em São Paulo, até falo direito quando quero –  sei falar português – mas se quiser falo com você em dialeto, a gente não usa o plural aqui. Estudei na faculdade, mas o paulistano fala um broken português, porque a gente é uma cidade de muita imigração. 

Mas quando diz “broken português”, o que é que quer dizer com isso? 

Não chega a ser um dialeto próprio. Estou falando com você em português, mas se a gente comparar ao português que é ensinado na escola, na faculdade e que se fala do Rio de Janeiro para cima, a gente fala um português quebrado, a gente não fala o plural, não faz as flexões dos verbos, tem muita gíria. Nos últimos anos tem a gíria do rap: “tá ligado?”, “e aí, velho?” Mesmo eu, um cara de classe média, pego a influência do rap, porque o rap é importante aqui, e há a influência dos italianos no sotaque de São Paulo. Então, São Paulo, dentro do texto brasileiro, sempre foi um texto menos erudito. Se por um lado o Rio de Janeiro, Minas Gerais, Bahia e Pernambuco cresceram produzindo cultura dentro do salão, dentro da academia, a cultura de São Paulo é de rua, é um samba feito por italianos, é o rock & roll, é o rap, são os nordestinos deturpando o forró: a música sempre foi muito comercial, muito dinheiro no século XX, a nossa formação cultural, ela é pós-eletricidade, pós-eletrola, vitrola, pós-disco, pós-fonografia. Então, a gente em São Paulo – agora sim, vou responder  tua pergunta – somos brasileiros criados culturalmente, mas já depois dos meios de comunicação de massa chegarem ao mundo. Então, a gente é muito desenraizado. Penso que São Paulo só ganhou importância, mesmo, dentro da produção cultural no Brasil – só olharam para São Paulo a sério – já depois dos anos 90, em que o mundo pós-moderno se instalou e São Paulo produziu duas coisas importantíssimas: uma, o rap, que explodiu, e a outra, a música eletrónica. Os grandes DJs mundiais dos anos 90 vieram de São Paulo e isso abriu portas para a produção independente da canção. Tanto que agora o Brasil inteiro vem para São Paulo, isso não existia: Teve uma cena de canção independente, canção alternativa, que é desse século. Então São Paulo é uma cidade que se mostrou forte culturalmente para o Brasil, no meu modo de ver, Já no fim do século XX, porque é uma cidade que é um liquidificador de influências. Então eu, por exemplo, sou um paulistano típico de classe média da segunda metade do século XX, não tenho estilo definido. Se precisar fazer um samba, faço, se precisar fazer um rap, faço, porque não tenho raiz, porque São Paulo cresceu muito rápido e de forma muito misturada. A minha canção reflete tudo isso. Não tenho um género definido. Como acho que foi uma cidade que cresceu muito dentro do capitalismo poético, diria eu, a gente tem que buscar flores, luz, poesia e inventividade dentro do showbiz, dentro do comércio, dentro da indústria, dentro do varejo. Então é isso.

Como olha para a diferença, por exemplo, de antes não existirem redes sociais e, agora, as redes sociais também serem uma parte mais fulcral do trabalho?

Dá mais trabalho para se divulgar. Antigamente, contratava um assessor de imprensa. Acho que a rede social e as plataformas de música são uma faca de dois gumes, têm dois ângulos. Por um lado, facilitam, porque hoje posso subir [publicar] um disco na plataforma e posso ser ouvido em Portugal. Antigamente, era muito difícil. Por outro lado, a quantidade de trabalho é enorme. Se diz, hoje, que o Spotify tem 200 milhões de arquivos. Então, a luta por espaço é muito maior. A rede social também é a mesma coisa, cresceu muito nos últimos anos. Não sei se você sabe, mas fiz o primeiro show brasileiro ao vivo via internet. Em 1996, quando a internet chegou aqui, não é que eu seja um nerd ou um génio da comunicação digital, mas estava buscando mídias [médias, meios de comunicação] porque não tinha acesso à imprensa escrita, à televisão e à rádio, nos anos 90. Só os artistas do mainstream é que tinham acesso. Achei que a internet era interessante, mas a internet dos anos 90 é muito diferente da de hoje. Acho que é incrível, mas acho que hoje a gente está se tornando ignorante, não pela falta de informação, mas pelo excesso de informação. Tem gente que diz que uma maneira de você hackear um sistema é entupir ele de informação. Acho que a mente humana está sendo hackeada pelo excesso de informação que está tornando a gente insensível.

Maurício Pereira e Tonho Penhasco / Fotografia de Biel Basile

Pegando nessa deixa, há estudos que dizem que é como se entrássemos numa grande loja de gelados. Posso estar com vontade de comer um, mas se entrar numa loja com mais de cem ou 200 escolhas à minha frente, não vou saber o que vou escolher e vou bloquear. O cérebro bloqueia.

Sempre gostei muito de ir ao cinema e, no Brasil, nem tudo chega todos os dias. Às vezes você precisa ir em festivais alternativos. Aí chegaram as plataformas. Às vezes, entro na Netflix: “Ah, vou ver um filme.” Mas é isso que você falou. Você passa uma hora procurando um filme, mas depois de uma hora, fala: “não, deixa quieto. Acho que vou dar uma volta na calçada e olhar os passarinhos.”

Tendo em conta o que a atualidade e o modernismo, como olha para o conceito de evolução? O que é evolução para si, face aos tempos em que vivemos?

A gente tem que pensar na palavra evolução, no que ela quer dizer. Acho que tem pessoas românticas – românticas entre aspas –  que acham que evolução é o progresso da raça humana: são as invenções, os grandes feitos, as novidades. Para mim, que sou um pouco cético, acho que evolução é o passar do tempo, ou seja, o tempo passando. Pode ser que a evolução da espécie Homo Sapiens leve essa espécie para extinção. Olho para o meio ambiente e falo: “Pode ser que daqui a 50 anos a gente não exista mais porque não tem ar, não tem água para beber e não tem comida para todo mundo.” Entendo, por isso, a evolução como o desenrolar da história, que não quer dizer que vá ter um final feliz. A evolução inteira, o passar dos anos, dos séculos, as invenções, as novidades, as belezas e feiuras, isso não está ao alcance da gente. A gente está, mais ou menos, preso à nossa época. Então, tal como falei que busco a luz na canção popular comercial, perdida numa pequena canção que tem bilhões de acessos, acho que na evolução também é assim. A gente tenta sobreviver nessa velocidade, nas invenções, nas mudanças sociais. Pensando na evolução, a gente, no Brasil, estava caminhando politicamente, no começo do século XX, para um ambiente socialmente mais distributivo, mais justo, mais democrático. De repente, a evolução jogou um governo de extrema-direita na mão da gente. Isso mexeu com o pensamento da sociedade inteira. Pautas conservadoras têm se apresentado. Então, o que é evolução? Para muita gente, pode ser essas pautas conservadoras, repressivas. No governo passado, se falou muito que a terra era plana. Aqui correu muito a teoria do terraplanismo. Em 2020, alguém que chegava e falava, “olha, a terra é plana”, essa pessoa estava de acordo com a evolução. Então, prefiro entender a evolução como o passar dos anos, e a gente como pequenos cidadãos, grãos de areia, que vai vendo que o tempo está indo para frente. Isso não é um juízo de valor, é um juízo de facto. A gente pode se encontrar com grandes belezas ou grandes catástrofes, por isso, não romantizo a evolução.

Quanto ao álbum “Micro”, pelo que já explicou e pelo que entendi, nasceu para tentar levar o “Outono no sudeste”, o seu álbum anterior, para a estrada. Pode explicar um pouco esta história? Como o “Micro” nasceu e esta relação, também, com o álbum anterior? 

Não só com álbum anterior, mas com os álbuns anteriores. Quando se faz o lançamento de um álbum, é muito comum, no Brasil, se fazer meia dúzia de shows com a banda: com metais, com vocais, com iluminação, cenário, uma equipe grande, com 20 a 30 pessoas. Mas, daí a um mês, dois meses, você tem que ir para a estrada. Às vezes, você vai fazer shows no interior e você não tem verba, orçamento. Os lugares, por vezes, são menores, são lugares simples: pode ser uma pequena casa noturna no porão de um hostel, por exemplo, e você não tem dinheiro para tomar um avião. Então, o “Micro” foi um show pensado para eu ir para a estrada. Dirigi, muitas vezes, o carro junto com o Tonho Penhasco, colocava os discos no banco de trás, os instrumentos. A gente ia para pequenas casas do interior, com orçamento baixo. Às vezes, o equipamento era muito precário e tentava, nessas condições materiais difíceis, fazer, produzir e levar o show com o maior grau de excelência, com o máximo de poesia, de refinamento e, mesmo com equipamento ruim, num ambiente que não tinha iluminação ideal, num quintal.
Então, o “Micro” nasceu como resistência à dificuldade de manter a temporada de um show no Brasil com excelência, à margem do mainstream. A Ivete Sangalo consegue, o ano inteiro, fazer shows com muita produção, é normal, mas a gente que é alternativo não consegue.

Só que aí, o “Micro” deve ter uns 20 anos de estrada: era um show que acaba sendo um apanhado do meu repertório inteiro. O Tonho Penhasco é um músico muito especial, uma mente muito especial. O álbum é quase um disco de música erudita, de câmara, com vozes, polifonias e silêncios. O Tonho, então, intuitivamente, reescreveu o meu repertório para esse trabalho em duo. Por isso, o “Micro” caiu na estrada de um jeito barato e, com o passar dos anos, ele foi ganhando corpo, espírito, estilo, refinamentos que ele não tinha no começo, quando era só para a gente sobreviver. Com a pandemia, não tinha material para um disco de músicas inéditas. Então, eu e o Tonho resolvemos registrar esse disco que estava se tornando refinado. O “Micro” é um disco quase acidental, existiu para garantir a sobrevivência, mas ele ganhou refinamento, ganhou muito espírito. Tive que reaprender a cantar por causa da maneira do Tonho tocar. Ele foi muito feliz ao redesenhar.
É uma aula de guitarra e, quem é guitarrista, presta atenção no timbre, nos desenhos, nas soluções que o Tonho propõe. É uma sorte, o “Micro”.

Ao longo das letras, das faixas que estão no micro, prestei atenção às letras e também pode-se notar lá que há lá também crítica social. Por isso lhe pergunto, como artista e também como letrista, como é que olha para o Brasil? Ainda é uma sociedade muito dividida hoje, por causa do governo do Bolsonaro?

É uma sociedade dividida. Acho que isso vem já de antes do governo do Bolsonaro: a eleição do Bolsonaro penso que é uma consequência. O Brasil sempre foi um país dividido, sempre teve um pedaço do país muito conservador e um pedaço do país muito libertário. Acho que nos últimos anos, essas porções conservadoras – até por causa da rede social, porque você pode agredir alguém ou falar qualquer barbaridade sem mostrar sua cara – ganharam coragem e viram que elas eram numerosas.

Então, o Brasil é um país dividido. O Lula ganhou do Bolsonaro por 51 a 49 e, ainda hoje, a cena política do Brasil é um jogo sangrento. O Lula tem que negociar. A diferença entre o Lula e o Bolsonaro, é que o Bolsonaro é de extrema-direita, mas o Lula não é de extrema-esquerda, ele é de uma centro-esquerda, quase centro. O Lula é um cara que tem muita capacidade de negociar e está tendo que negociar muito com a direita, com a extrema-direita, e o Brasil é uma cena política sempre muito corrupta, a troca de favores sempre foi muito forte. Então, isso dificulta um pouco o caminho político do país. Tem muita troca de interesse.

Como músico, penso tem muitas maneiras de você fazer um trabalho artístico e contestar a situação. Uma delas é ser direto. Então, tem artistas que são diretos, investem contra a opressão, contra a corrupção ou contra essa extrema-direita que está aí. Eu faço isso com a poesia. Penso que a poesia é tóxica. Não gosto de ser panfletário. Acho que a poesia é tóxica e que ela tem um efeito retardado, como uma bomba relógio. Nem sempre sou direto para dizer que não concordo com isso. Não concordo que exista pobreza num país tão rico, não concordo que exista um governo que não aceite opinião contrária, mas isso está diluído. Tento iludir as pessoas, mas a minha mensagem está lá. Tento hipnotizar as pessoas.

O que é que podemos esperar dos concertos em Portugal? Dos concertos que vão vir agora em novembro?

Muita delicadeza, muita poesia e um show em que converso com as pessoas. São shows que quanto menor o lugar, mais troca tem, mais delicado é. É um show delicado, com muita poesia e um guitarrista maravilhoso.

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Fonte: https://comunidadeculturaearte.com/entrevista-mauricio-pereira-as-vezes-a-intuicao-atropela-tudo-que-a-gente-estudou-e-acho-que-essa-e-a-beleza-da-cancao-popular/