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Esta entrevista foi realizada no âmbito da unidade curricular de Atelier de Imprensa, na Escola Superior de Comunicação Social.
Aos 34 anos, Tomás acredita que a música é “como um cozinhado” que deve misturar “ingredientes diferentes”. Nesse caso, ele tem a receita certa para cativar o público português, como revelam os 75 mil ouvintes mensais dos Capitão Fausto na plataforma Spotify.
Recentemente, decidiu dar uma oportunidade à carreira a solo, embora reconheça que há algo maior em fazer música rodeado de quem se gosta.
Às 10 horas num prédio na Vila Afifense, ressoam as guitarras de Domingos Coimbra e Manuel Palha, dois quintos dos Capitão Fausto, que ensaiam na cave. A cruzar a esquina, chega Tomás Wallenstein, o vocalista do grupo, acompanhado de Emílio, por ele intitulado de “cão multicultural”.
Filho de Pedro Wallenstein, contrabaixista da Orquestra Sinfónica Portuguesa e de Lúcia Lemos, cantora lírica, Tomás Wallenstein nasceu em 1989 com sangue de artista.
Teve, desde cedo, contacto com a Formação Musical e aprendeu a tocar piano, violino, baixo, guitarra e bateria. Fê-lo em paralelo com a escola até aos 18 anos.
Chegada a altura de decidir por que curso enveredar, ainda ponderou seguir música, mas como gostava muito da música e pouco de estudar, entrou em Arquitetura. Fez as cadeiras todas até ao 5° ano, mas faltava-lhe escrever a tese. Ai, tomou a decisão de “morrer na praia” para se dedicar profissionalmente à música.
Fez parte de várias bandas durante a sua juventude e, hoje em dia, ocupa a posição de vocalista, compositor e letrista de uma das bandas com maior relevância no atual panorama musical português — os Capitão Fausto. É, também, um dos fundadores da editora e produtora de música Cuca Monga, nascida em 2014 em Alvalade.
A 4 de outubro de 2023, Tomás e a editora por ele fundada produziram um festival “muito artesanal” no bairro de Alvalade. Entre atuações de outros artistas do pop português, como Samuel Úria e Benjamim, este dia contou com um concerto de homenagem ao álbum “Dias Contados” dos Capitão Fausto.
O que o levou a fazer a escolha de deixar os estudos e enveredar pela música?
Foi instintivo. Estávamos a gravar um disco novo e começámos todos a perceber que o nosso nível de envolvimento tinha de ser maior, para darmos um salto. As exigências começaram a ser outras, tanto para tocar, como para o resto da profissão, que infelizmente não é só estar a tocar.
Quando começámos a gravar o “Dias Contados”, era uma altura que, se eu tivesse de estar em Alvalade todos os dias, não ia estar a fazer nada para a faculdade, portanto, tomei essa decisão. E não estou arrependido.
Vem de uma família que fez das artes a sua profissão. O que é que isso influenciou o seu percurso?
Não tenho a certeza se eu, sendo como sou, e se não tivesse nascido nesse ambiente, se não tinha chegado ao mesmo sítio, ou, no mínimo, parecido. Não conheço muito bem outra realidade, para saber que importância de facto é que teve, mas de certeza que me influenciou ou, pelo menos, me pôs muito à vontade com o ofício da prática das artes.
Tem alguma memória mais antiga, de infância ou adolescência, em que sinta que o gosto pela arte estivesse já bem marcado em si?
Tenho memórias de ir aos concertos da minha mãe e do meu pai e de ficar lá atrás e assistir aos ensaios. Lembro-me, desde muito pequenino, de achar fascinante a parte dos bastidores. Gostar de ir aos teatros e perceber que existem dois mundos dentro dum mesmo edifício. Existe um mundo cuidado para o espectador, quase artificial… E depois, tu passas uma cortina e do outro lado existe um edifício diferente, com uma dinâmica completamente diferente.
Criou uma banda com amigos. De que forma é que esta amizade o marcou a si e aos Capitão Fausto?
Nós os cinco aproximámo-nos muito, por causa do gosto pela música. A amizade foi importante para isso, mas isso também foi muito importante para a amizade em si. Tornou-se um grupo de pessoas que tinha um objetivo em comum, cada um à sua forma. E isso anula as irregularidades das relações humanas. Eu tenho amigos de quem gosto muito e com quem cresci mas, por não ter nada em comum no meu dia-a-dia, na minha paixão maior, o tempo acaba por nos afastar um bocadinho mais. E, aqui, nós mantivemo-nos juntos.
Hoje em dia, chegámos a um ponto em que não se trata propriamente de amizade, é uma espécie de família. Nós já sabemos com o que é que havemos de contar uns dos outros, as alegrias e as irritações que nos dão. É quase uma coisa instituída, uma relação que vai persistir, porque está construída sobre algo muito forte.
“O gosto que fui criando é feito dos amigos com quem cresci, da música que ouvi com os meus pais e com os meus avós. Nós não somos ilhas.”
Que dificuldades foram colocadas aos Capitão Fausto no seu arranque?
Quando as coisas começam a concretizar-se, é aí que perdem todos os seus ornamentos. Na altura da digressão dos “Dias Contados”, acusámos um bocadinho de pressão, porque estávamos todos a arriscar e a largar outras coisas que tínhamos na vida por isto, e a sofrer os efeitos do crescimento da carreira não ser imediato. Mas, até agora, temos sabido atravessar as dificuldades com alguma paciência. Hoje, se estamos numa altura boa, então, aproveitamo-la com alegria. Ou então, se estamos numa altura má, já começamos a perceber que vem aí uma boa a seguir e ficamos com expectativa por ver isso a acontecer.
Há não muito tempo, começou uma carreira a solo. De onde surgiu esta vontade?
Foi algo bastante natural, pela função que desempenho na banda. Como faço as canções, escrevo as letras, canto e toco instrumentos, gostava de ver o que acontecia se eu fizesse coisas sozinho. E, depois, foi uma questão de circunstância. Na altura da pandemia, em que me vi com muito mais tempo livre, comecei a sentar-me à frente do piano e a aprender canções de outras pessoas. Músicas que gosto de ouvir e que me influenciam, com as quais posso aprender. Eu quase que sinto que as podia ter escrito, se tivesse aquele talento, naquela altura e fosse aquela pessoa, mas não sou.
Como referiu, inspirou-se em temas de outros para o álbum “Vida Antiga”. Que artistas mais influenciaram o seu percurso na música?
É evidente que os Beatles têm, para mim, um lugar muito especial na história da música pop e na maneira como nos ensinaram a todos como fazer daí para a frente. Também a Amália, a Édith Piaf, o Elvis, o Johnny Cash… Há algumas vozes que, por aquilo que dizem e a maneira como o cantam, me colocam um patamar muito alto e, por isso, são uma forma de me obrigar a trabalhar. Mas, no geral, acho que quantas mais referências tivermos e quanto mais música ouvirmos, melhor. É como um cozinhado… Se só puser dois ingredientes, então vai saber àqueles dois ingredientes. Mas se, de repente, conseguir combinar coisas diferentes, encontro um sítio onde ainda não tinha ido antes.
O disco “A Invenção do Dia Claro” teve influências da música brasileira. Já alguma vez pensou em enveredar por um estilo de música diferente daquele que atualmente toca?
Acho que, com outro percurso, tinha chegado a outras conclusões. O gosto que fui criando é feito dos amigos com quem cresci, da música que ouvi com os meus pais e com os meus avós. Nós não somos ilhas.
A minha relação com a música brasileira aprofundou-se quando nós fomos para lá gravar o disco. Decidimos mergulhar na música popular, no choro e no samba. Isso vem tudo de eventos que foram acontecendo na vida.
Como concilia esta dualidade de artista a solo e de vocalista de uma banda?
Dos últimos dois anos para cá, nos momentos em que os Capitão Fausto têm uma folga maior, vou conseguindo encaixar concertos sozinho. Mas sem nunca me sobrepor ao trabalho da banda, que é uma coisa maior que eu. É um sítio que nós encontramos entre os elementos da banda, que não pertence a nenhum de nós e pertence a todos ao mesmo tempo. Acho que esse é um objetivo de vida melhor do que estar a priorizar o meu trabalho sozinho.
No Verão passado pisou pela primeira vez o palco de um festival a solo, o Super Bock Super Rock, no Meco. É muito diferente atuar sozinho?
A experiência de estar em palco sozinho, nesse ou em qualquer outro concerto, é esquisita. Sobretudo para mim, que cresci os últimos 15 anos constantemente rodeado. Quando estou a tocar em banda existe uma troca de ideias, uma forma de nos completarmos uns aos outros. E só quando as peças todas estão juntas é que a música soa e isso é um bocadinho maior.
Depois há uma parte solitária de, no início do concerto encontrar-me numa sala sozinho, a olhar para uma parede e a pensar como é que vai ser o concerto. Depois saio e volto para essa sala e fico a pensar para mim próprio o que é que correu bem e o que é que correu mal. Não é de todo desagradável nem infeliz, mas é diferente. Acho que, quanto mais vou tocando sozinho, mais valorizo o facto de ter uma carreira a tocar com mais gente.
Recentemente, aconteceu também o Festival Cuca Monga em Alvalade. Que significado tem para vocês este bairro?
Tem um significado muito grande. O festival foi, já em si, uma homenagem àquilo que aquela rua e o bairro de Alvalade se tornou para nós. Foi lá que nasceu a editora e que os Capitão Fausto passaram a fazer música a tempo inteiro. Foi a nossa primeira verdadeira casa de adultos. Nós ainda morávamos com os nossos pais e, quando tivemos aquele espaço só nosso, íamos para lá dormir e isso moldou muito a nossa vida.
E a editora Cuca Monga?
A editora tornou-se uma forma de nós podermos partilhar a nossa experiência, talvez aconselhar outros artistas a não cometer alguns erros que nós cometemos ou a seguir alguns passos que para nós correram bem. Mas, sobretudo, poder constantemente aprender, porque os professores na escola também aprendem com as dúvidas dos alunos.
Aqui é um bocadinho semelhante, nós temos um projeto que visa aumentar as possibilidades da música independente em Portugal, cantada em português. Tentamos ajudar quem precisa de algum empurrão no início e solidificar alguns percursos. Mas temos perfeita noção que isso também é benéfico para nós, porque absorvemos as ideias que vão chegando e integramo-las no nosso imaginário.
“Como o mercado português é pequenino e não existe uma tradição de exportação muito forte, os públicos acabam por estar restritos à própria população do país. Temos de trabalhar o dobro ou o triplo e de arriscar muito.”
O festival tem um caráter artesanal e, de certa forma, familiar. Vê a relação com os fãs desta forma?
O festival também tem esse objetivo, de nos aproximar das pessoas que nos seguem e de termos ali uma forma diferente, mais direta e mais honesta de mostrar o que é que nós vamos fazendo. Não tem propriamente um objetivo financeiro, o principal é que aquilo aconteça e seja agradável e, se no fim der qualquer coisa para ajudar a editora, melhor.
Qual o balanço que faz do dia 4 de outubro enquanto organizador do festival?
Não conseguimos medir exatamente o impacto que tiveram as atuações do festival na carreira dos artistas mais jovens e com menos público, mas tentamos sempre dá-los a conhecer. Num meio que é tão fragilizado como a música pop, quanto mais as pessoas estiverem unidas e partilharem informação, melhor é para toda a gente, inclusivamente para o meio em si.
Também é muito importante que o próprio público que foi ao festival e tem aspirações de fazer música perceba que há ali um espaço onde podem vir a ser eles a tocar, um dia.
O que diria a um jovem músico a tentar lançar-se no mercado português?
Diria que desejo a maior das sortes. Não podemos achar que nos podemos assentar no nosso talento. Como o mercado português é pequenino e não existe uma tradição de exportação muito forte, os públicos acabam por estar restritos à própria população do país. Temos de trabalhar o dobro ou o triplo e de arriscar muito.
Infelizmente, não existem ainda estruturas suficientes para que um grupo de músicos jovens consiga fazer um início de carreira estável: tem de se estar muito tempo sem ganhar dinheiro e é preciso ir muito aos sítios. Na altura do “Pesar o Sol”, em 2014, fizemos duas digressões de clubes, a sítios onde, às vezes, apareciam dez pessoas. Foi um esforço grande, de estar a fazer concertos atrás de concertos e, no final, não se ganhava nada de especial ou até se perdia dinheiro.
Reconhece que os ouvintes dos Capitão Fausto têm algo em comum? O que une todas estas pessoas?
Ao invés do futebol, em que as pessoas se juntam para estar umas contra as outras, as pessoas vão a um concerto e estão todas na mesma direção, com o mesmo objetivo. Num espetáculo de teatro, por muito que seja semelhante, as pessoas estão individualmente a ver o espetáculo, estão a ter a sua própria experiência. Já num evento de música pop, as pessoas quase que participam no concerto e unem-se umas às outras enquanto o veem.
Se tivesse de descrever uma pessoa que consome a vossa música, o que diria?
O nosso objetivo é que seja o mais heterogéneo possível, seja nas idades, seja no sítio de onde vêm, com que se dão, o que é que gostam de fazer e como é que se vestem.
As músicas que nascem só dos elementos da banda são uma coisa muito particular e muito nossa, que está ao nosso cuidado durante o tempo de as criar. A partir do momento em que são lançadas, eu espero que cheguem o máximo de gente possível, sem grandes pretensões de que o público seja parecido connosco. Acho que não temos nada a ganhar com isso e acho que as nossas músicas são de toda a gente. Aliás, as músicas, no geral, são de toda a gente.
Falou recentemente ao Observador sobre ter sido pai: “Nunca nada foi um ponto tão importante na minha vida como esse”. O que mudou com a chegada da Amália à sua vida?
O maior desafio para mim, que é uma coisa que ainda estou a aprender, é o equilíbrio de não ter o dia todo dedicado aos meus objetivos pessoais.
Antigamente, nós tínhamos o dia inteiro para estar a escrever uma canção e conseguíamos desligar completamente. Hoje em dia, existe sempre mais alguma coisa a acontecer dentro da nossa cabeça e, portanto, é necessário ser-se mais eficiente. Tive de conseguir focar-me nas horas em que estou livre para trabalhar e, por outro lado, de aprender a largar o trabalho quando chega o fim da hora.
O resto é tudo alegrias. A mim, tem-me ajudado a deixar de estar completamente autocentrado e a relativizar as frustrações que vou tendo no dia-a-dia.
Fonte: https://comunidadeculturaearte.com/entrevista-tomas-wallenstein-quanto-mais-toco-sozinho-mais-valorizo-tocar-em-banda/