
Este artigo está escrito em português do Brasil.
Crescer LGBTQ+ não é uma tarefa fácil. Lembro-me da minha infância no Brasil dos anos 1990, quando a televisão era o centro da vida cotidiana. Aos domingos, os programas de auditório dominavam as tardes, ditando os assuntos que povoariam as conversas da semana. Os humorísticos faziam um sucesso estrondoso, lançando os bordões que tomariam a boca do povo. As novelas, por sua vez, eram tão populares que se tornaram produto de exportação nacional.
Em meio a essa efervescência televisiva, porém, pouco se via de pessoas abertamente queer. Quando apareciam, como costumava acontecer nos humorísticos, era quase sempre como motivo de piada. Em 1998, a novela Torre de Babel foi uma das primeiras a introduzir um casal abertamente gay. Esse casal, no entanto, foi rapidamente eliminado da trama após a rejeição do público. As poucas personalidades LGBTQ+ que conseguiam um destaque positivo geralmente vinham da música, como a cantora Cássia Eller, cuja genialidade musical era discutida na mesma medida que sua sexualidade.
Com a chegada dos anos 2000, ainda que lentamente, algo começou a mudar. O Brasil vivia um crescimento econômico, via a ascensão das classes populares ao consumo e experimentava uma maior inclusão social. A cultura pop vivia o auge dos reality shows, da música pop nacional e da popularização da internet. Na década seguinte, impulsionado por esse contexto, consolidou-se um movimento que lutava por uma maior representatividade em todas as esferas da vida social. A diversidade, em certa medida, passou não apenas a ser aceita, mas celebrada. Foi nesse momento que o país viu o surgimento de Pabllo Vittar.

Pabllo emergiu no cenário musical brasileiro com uma proposta inovadora: uma drag queen, a cantar música pop com um toque de brasilidade. Seu primeiro trabalho foi uma versão em português do hit “Lean On”, do grupo Major Lazer, em que ela canta sobre se divertir à noite, numa batida pop envolvente com influências de EDM e samba. Depois vieram outros sucessos, como “K.O.”, “Corpo Sensual” e “Amor de Quê”, faixas que a alçaram ao panteão das divas pop nacionais. Todo esse sucesso tornou-a, ainda, a drag queen mais seguida do mundo nas redes sociais, o que atraiu a atenção de grandes nomes da música. Em 2024, Pabllo foi pessoalmente convidada por Madonna para participar do concerto histórico realizado na praia de Copacabana. No ano seguinte, abriu o espetáculo de Lady Gaga no mesmo local — artista com quem, aliás, também tem uma colaboração.
No camarim do show que realizou em Lisboa no último sábado (26), Pabllo recebeu a imprensa com a simpatia que lhe é característica. Seu visual exuberante — peruca loira, lentes de contato azuis e maquiagem irretocável — contrasta com a personalidade tímida, quase discreta, que ela demonstra. Essa postura reflete a maturidade de quem completa uma década de carreira e aprendeu a navegar pelo meio artístico com serenidade: “Eu evoluí bastante. Como pessoa e como profissional. Sei escolher melhor as oportunidades que aparecem e sei, também, recusá-las. Parece louco, mas é importante saber dizer não”.
Antes de aterrissar em Portugal, ela passou por Estados Unidos, México, Japão e Coreia do Sul, apenas nas últimas semanas. A devoção dos fãs é uma constante em todos esses destinos. Em Lisboa, eles se enfileiravam nas portas do Campo Pequeno desde o início da manhã. Essa dedicação que não passa despercebida pela cantora: “Ontem encontrei alguns deles e fiquei muito feliz. Eles disseram que iam chegar cedo para ficar na fila. Eu disse: ‘Não, gente, está muito calor!’ Fico lisonjeada, me sinto muito abençoada por tanto carinho. É emocionante ver meu trabalho ultrapassando tantas barreiras. Hoje, muitas das pessoas que estão aqui vão me ver ao vivo pela primeira vez. Isso me emociona, mas também me deixa muito nervosa — quero entregar tudo, quero que esse dia seja especial para elas, assim como está sendo para mim. Estou muito feliz de estar aqui com esse show, que fala tanto sobre mim e sobre a minha história”.

A turnê que passou por Lisboa concentra-se em hits dos álbuns Batidão Tropical 1 e 2. Esses trabalhos reúnem canções inéditas e regravações de sucessos do forró e do brega que, apesar de serem extremamente populares no Norte e no Nordeste do Brasil, seguem pouco difundidos em outras regiões. Tal disparidade revela a persistência de uma barreira cultural que ainda fraciona o país. Ritmos como esses enfrentam dificuldades notórias para penetrar nos circuitos do Sudeste, região que concentra os principais polos da indústria cultural brasileira e que, em grande medida, define quem alcança projeção nacional. Assim, não é raro que artistas que lotam estádios no Norte e no Nordeste sejam nomes praticamente desconhecidos no Sul e no Sudeste.
Pabllo é uma das vozes que tem ajudado a transformar essa realidade. Nascida no estado do Maranhão, no Nordeste brasileiro, ela passou a infância no Pará, antes de se mudar para o São Paulo. Essas canções são, portanto, a trilha sonora de sua juventude, aquelas que moldaram seu gosto musical e que, de modo geral, orientam todo o seu trabalho. A entrega com que ela as interpreta deixa isso evidente.
Na noite de sábado, a cantora abriu o concerto com sua releitura de “Pra Te Esquecer”, sucesso da Banda Calypso, um dos poucos grupos nortistas a furar esse bloqueio e conquistar projeção nacional. Ali, a timidez e o nervosismo confessados no camarim desaparecem. Durante duas horas, ela hipnotiza o público, cantando e dançando sem trégua, acompanhada de uma banda e de um balé com oito dançarinos. Na plateia, uma legião de fãs vibra junto. São LGBTs, drag queens e outras presenças que encontram naquele espaço o raro alívio de poder ser quem são.
Ser quem é, com orgulho e sem concessões, tornou-se uma das marcas mais fortes de Pabllo. Como uma artista abertamente queer, ela ocupa no Brasil de hoje um lugar semelhante ao que António Variações teve em Portugal nos anos 1980: o de uma figura que desafia as normas de gênero num país atravessado por tradições religiosas e por um conservadorismo cada vez mais palpável. Esse lugar, evidentemente, a torna alvo frequente de ataques movidos pelo preconceito. Tais hostilidades, no entanto, não a calam. Ao contrário, fizeram dela um símbolo de resistência para a juventude LGBTQ+. A cantora sempre foi vocal na defesa dos direitos dessa população e, nas eleições de 2022, esteve entre as artistas mais engajadas na campanha presidencial de Lula. Participou do jingle oficial da campanha, ergueu uma bandeira com a imagem do candidato durante um show no Lollapalooza e, por fim, apresentou-se no festival que celebrou sua vitória sobre Jair Bolsonaro, ex-presidente conhecido por sua retórica abertamente LGBTfóbica.
Pabllo teve uma infância difícil e já mencionou em entrevistas que sua família se beneficiou das políticas públicas das primeiras administrações de Lula (2003–2010). Ela nunca teve contato com o pai biológico. Foi criada pela mãe, que educou sozinha os três filhos e é hoje sua maior inspiração: “Ela sempre me apoiou, desde quando ninguém acreditava em mim, desde quando eu era apenas uma criancinha. Hoje, eu estava conversando com ela… Fazer show aqui, fora do meu país, trazendo a minha música, é sempre muito emocionante. Não tem como não lembrar da minha infância, dos caminhos que percorri”.
Tendo passado por vários estados brasileiros ao longo de sua vida, Pabllo viveu a experiência de ser uma imigrante em seu próprio país. Talvez por isso se mostre sensível ao crescente endurecimento das políticas migratórias, como a nova lei de estrangeiros aprovada em Portugal: “Acho muito triste. Não só os brasileiros, mas todos os imigrantes contribuem muito para a economia e para outras áreas importantes. Deveria ser o contrário: deveria haver um acolhimento, leis que regularizassem o trabalho que os imigrantes realizam e que é tão importante. É um retrocesso muito estranho”. Para aqueles que enfrentam as dificuldades da imigração, ela aconselha: “É importante construir uma rede de apoio, estar cercada de pessoas que busquem os mesmos propósitos, apoiem nossos sonhos e nos façam sentir parte de uma família, sentir que pertencemos”.
Se os jovens e crianças LGBTQ+ brasileiros dos anos 1990, como eu, tiveram que construir uma identidade apesar das representações negativas às quais eram constantemente expostos, hoje uma figura como Pabllo Vittar aponta para um caminho diferente. Sua existência é um testemunho da força emancipatória da representatividade — uma força que talvez seja menos eficaz no campo político do que é no terreno psicológico. Se alguém como ela conseguiu, talvez eu também consiga. Se alguém como ela pôde, talvez eu também possa.
Crescer LGBTQ+ certamente continua sendo uma tarefa difícil, especialmente num momento em que parte da liberdade celebrada na década passada está ameaçada. Ainda assim, olhar para Pabllo Vittar torna essa jornada um pouco menos solitária, um pouco mais esperançosa. Quando, em Lisboa, ela terminou o show ovacionada e com lágrimas nos olhos, não era apenas uma artista emocionada: era a prova viva de que ser quem somos pode ser não apenas libertador, mas triunfante.
Fonte: https://comunidadeculturaearte.com/evolui-bastante-como-pessoa-e-como-profissional-sei-escolher-melhor-as-oportunidades-e-e-importante-saber-dizer-nao-assume-pabllo-vittar-em-lisboa/