6 de fevereiro de 2025
o génio artístico e messias do hip hop não tem
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DR

Quase 15 anos após se ter tornado evidente que estávamos perante um dos maiores (e melhores) rappers de sempre, quando a jornada de Kendrick Lamar iniciava a sua fase de eclosão com o lançamento de good kid, m.A.A.d city, o rapper norte-americano de 37 anos não mostra quaisquer sinais de perda de relevância. Há poucos dias, a noite dos Grammys foi sua, com a conquista de cinco prémios nos maiores galardões da indústria. No domingo, 9 de fevereiro, encabeça a emblemática atuação no intervalo da Super Bowl, um palco exclusivamente reservado às grandes figuras. É a primeira vez que um rapper ocupa esse lugar a solo, numa performance em nome próprio.

Desde cedo que Kendrick Lamar mostrou por que tinha os ingredientes essenciais para se tornar grandioso. Acima de tudo, a virtude do equilíbrio, o ganho nos contrastes. Era um excelente aluno na escola mas cresceu embrenhado na cultura de gangues de Los Angeles. Escrevia sobre temas duros e complexos mas em canções que tinham um apelo pop.

Não era música que facilitava nem cedia aos padrões formatados da indústria, mas ainda assim era apropriada para o consumo de massas. Estava enraizado na tradição – dos cânones do hip hop, do legado do gangsta rap da Costa Oeste, da cultura afro-americana, da espiritualidade cristã – mas soava definitivamente fresco e moderno. Audaz mas vulnerável, reservado mas mundialmente famoso, criado nas ruas mas gracioso e elevado. Era introspetivo e até depressivo, mas também irradiava boas vibrações e era um intenso animal de palco.

Não há muitas dúvidas de que Kendrick Lamar seja não só o grande rapper da sua geração, mas também uma das grandes estrelas pop do século XXI e um dos melhores rappers de sempre, com um legado admiravelmente rico e profundo para alguém que nem 40 anos tem.

Das ruas de Compton aos ouvidos de todo o mundo

Kendrick Lamar nasceu em 1987 em Compton, cidade nos arredores de Los Angeles, e isso não é dizer pouco. Foi no mesmo ano em que, ali mesmo, se formaram os N.W.A., lendário coletivo de rap composto por Dr. Dre, Ice Cube, Eazy-E, MC Ren e DJ Yella. Rapidamente, os Niggaz Wit Attitudes conseguiram o até então inalcançável feito de quebrarem o status quo da cultura hip hop, que até então tinha os seus holofotes virados para a cidade-berço de Nova Iorque. De repente, um grupo irreverente de jovens artistas estava a atrair as atenções com o seu rap controverso, explícito e violento, que emanava a influência da cultura de gangues de Los Angeles. Lançaram em 1989 o seu álbum de estreia, Straight Outta Compton.

Os N.W.A. marcaram uma era na música e na sociedade norte-americana, tendo sido considerados uma ameaça por instituições como o FBI graças a temas como “Fuck Tha Police”; e assustaram a América branca quando se tornaram a nova tendência que os miúdos de classe média estavam a ouvir nos muito civilizados subúrbios espalhados pelo país. Foram também a banda sonora perfeita para os históricos motins que em 1992 se disseminaram por Los Angeles e arredores após a absolvição dos polícias que espancaram brutalmente o taxista negro Rodney King, incidente que ficou registado em vídeo e funcionou como uma gota de água que provocou a revolta popular, após anos e anos de opressão policial nas comunidades racializadas, de ressentimentos engolidos e uma sensação geral de injustiça social.

As letras dos N.W.A., que denunciavam os abusos policiais e que em parte também glorificavam uma vida marginal – parte integrante de uma cultura local borbulhante nas comunidades mais vulneráveis da sociedade –, encontravam mais do que nunca eco, ressoando pelos bairros de toda a área metropolitana.

Kendrick Lamar tinha cinco anos quando os motins de 1992 aconteceram na sua cidade, tendo presenciado vários incidentes. No mesmo ano, assistiu ao primeiro homicídio enquanto estava sentado à porta da sua casa, num bairro de habitação social. “Aquilo fez-me algo naquele preciso momento”, disse depois numa entrevista à NPR, recordando o episódio em que viu um jovem traficante de droga ser assassinado a tiro num ataque drive-by. “Fez-me saber que não só era uma coisa que eu estava a ver, mas que era algo a que se calhar eu teria de me habituar.”

Filho de um antigo gangster, Kenneth “Kenny” Duckworth, que se tinha mudado de Chicago com a mulher para escapar a essa vida turbulenta, Kendrick Lamar cresceu inevitavelmente entranhado numa cultura de violência e opressão, drogas e rivalidades letais, mas também festas e churrascos, sermões bíblicos pregados por uma avó e música, muita música. Deve precisamente o seu nome à música. Foi lá que Kenny e Paula, a sua mãe, encontrariam inspiração para batizar o filho primogénito – foram resgatar o nome a Eddie Kendricks, da banda The Temptations. Mais tarde, Kendrick Lamar iria reciclar e celebrar a cultura musical afro-americana com o seu rap; mas ele próprio, na sua essência, já simboliza esses processos constantes de reciclagem e revivalismo que edificam um legado cultural.

Com vocação clara na escola para o estudo da língua e para a escrita de textos, um talento identificado e também impulsionado pelo seu professor de inglês Regis Inge, foi através da expressão da palavra que o adolescente Kendrick Lamar encontrou uma forma para purgar a realidade que o atormentava, os traumas psicológicos e a depressão de que sofria. Foi nessa altura que se iniciou no rap, com o nome artístico K.Dot, participando em batalhas de rimas e sessões de improviso na escola.

A identidade vincada que viria a construir seria o resultado de muitos anos de estudo de MCs de gerações anteriores. Se Tupac Shakur, outra lenda da Costa Oeste, e também ele um certo herdeiro do caminho traçado pelos N.W.A., pode ser considerado uma das suas principais referências, até pela mesma capacidade que teve em ser politicamente consciente e ao mesmo tempo uma estrela pop; Kendrick Lamar também se deixou influenciar pela técnica de Lil Wayne ou Prodigy, pela atitude empreendedora e independente de 50 Cent, pela sensibilidade de André 3000, pelo método de construção de canções de rap de Eminem. Mas muitos outros iriam influenciar Lamar, desde as paisagens sonoras dos Parliament-Funkadelic à maneira como Prince utilizava a sua voz como um instrumento completo.

Na adolescência, a sua aptidão natural não passou despercebida a outro estudante, Dave Free, que rapidamente se tornou num dos seus melhores amigos e companheiros de hip hop. Começaram a gravar faixas e a atuar juntos. Cumprindo o trajeto natural do circuito do rap, K.Dot recolheu instrumentais de temas já editados para gravar as suas próprias rimas, faixas que resultaram numa série de mixtapes editadas durante a sua adolescência. Dave Free, que trabalhava como técnico de computadores, mostrou uma das tais mixtapes, Hub City Threat: Minor of the Year, a um dos seus clientes, Anthony “Top Dawg” Tiffith, produtor musical que acabara de lançar a sua editora independente, a Top Dawg Entertainment (TDE).

Estava a ponte feita para que Kendrick Lamar se tornasse num dos primeiros artistas a assinar pela editora – e a adquirir uma parte minoritária da empresa – ao lado de Jay Rock. Com ele e outros jovens artistas que entretanto se juntaram, Ab-Soul e Schoolboy Q, formaria o coletivo Black Hippy, um super-grupo antes de o ser, fruto dos convívios e sessões artísticas constantes que naquela altura aconteciam no estúdio da TDE.

Fotografia via Facebook do artista

O caminho estava feito para que os primeiros co-signs pudessem aparecer, com os diferentes artistas da editora a puxarem uns pelos outros. Jay Rock começou a fazer as atuações de abertura de The Game, outro nome sólido do rap da Costa Oeste, também com raízes em Compton, e Kendrick Lamar – assumindo nessa altura o seu nome verdadeiro – tornou-se hypeman do seu amigo, fazendo back vocals e incentivando o público a partir do palco. O mesmo aconteceria, pouco tempo depois, na digressão de Tech N9ne. Foi a partir dessa tour que Dr. Dre, cada vez mais um produtor conceituado e magnata da indústria da música, descobriria o talento de Kendrick Lamar e se aproximaria do rapper, procurando assiná-lo com a sua editora Aftermath Entertainment. Dr. Dre não só era um executivo de peso, mas um colaborador artístico mais do que precioso, um visionário do hip hop com um vasto leque de ferramentas à sua disposição.

Antes disso ainda haveria de lançar Section.80, o disco com composições originais que o tornou definitivamente num nome a ter em conta no movimento hip hop, que o levou pela primeira vez à tabela da Billboard e à célebre lista Freshman Class da revista XXL – uma espécie de prémio revelação do circuito hip hop norte-americano. Nessa altura era encarado como um artista do campo mais alternativo do rap, antes de se posicionar bem ao centro do jogo.

Só depois assinou com a Aftermath e a Interscope Records, mantendo-se em simultâneo na TDE, para começar a trabalhar naquele que se tornaria no seu primeiro grande álbum, o conceptual good kid, m.A.A.d city (2012), centrado no ponto de vista de um jovem que deambula pelas ruas dos subúrbios de Los Angeles, infestadas pelo flagelo das drogas e pela cultura de gangues. É um disco vívido de ambiências, um herdeiro que revisita o legado e a cultura do gangsta rap mas também o distorce e o leva por novos caminhos de maneira inventiva. Kendrick Lamar mergulhava no seu próprio background para contar histórias íntimas que naturalmente ressoavam com a sua comunidade – e tantas outras. Acima de tudo, dava provas da sua excelência criativa, da complexidade da sua escrita e composição. No single de maior sucesso, “Swimming Pools (Drank)”, falava do abuso de substâncias mas numa canção tão apelativa que se tornou num hino para os clubes.

Kendrick Lamar / Fotografia via Facebook do artista

Nessa época já tinha aberto digressões para Kanye West e Drake, agora colaborava com Eminem ou 2 Chainz. Mas será “Control”, uma faixa com Big Sean e Jay Electronica, o melhor exemplo para explicar aquilo a que Kendrick se propunha a fazer: desafiar os seus pares, um por um, mostrando ao que vinha. Kendrick tinha a fome para devorar o mundo, uma forte ambição aliada a uma identidade artística coesa. Possuía todos os argumentos para conquistar aquilo que era a sua vontade.

“I’m usually homeboys with the same niggas I’m rhymin’ with/But this is hip-hop, and them niggas should know what time it is/And that goes for Jermaine Cole, Big K.R.I.T., Wale

Pusha T, Meek Millz, A$AP Rocky, Drake/Big Sean, Jay Electron’, Tyler, Mac Miller/I got love for you all, but I’m tryna murder you niggas/Tryna make sure your core fans never heard of you niggas/They don’t wanna hear not one more noun or verb from you niggas”, rimava nessa faixa lançada em 2013.

A sua grandeza consolidou-se definitivamente não muito tempo depois, com o lançamento do auspicioso To Pimp A Butterfly (2015), um disco de índole experimentalista que incorpora elementos jazzísticos, grooves funk e espírito soul, num exercício vanguardista de revivalismo, que aborda a experiência afro-americana em tempos sociais conturbados, durante a presidência de Barack Obama. “Há 20 anos, um disco consciente de rap não teria penetrado o mainstream desta forma”, escreveu na altura a revista Billboard. “O seu sentido de tempo foi impecável, no meio de vários casos de brutalidade policial e tensões raciais pela América fora.”

To Pimp A Butterfly não só refletiu a luta que um movimento civil como o Black Lives Matter estava a fazer nas ruas, como serviu precisamente de banda sonora aos protestos que juntaram milhares e milhares de pessoas e que inspiraram muitas outras, noutros países, a lutarem pelos seus direitos. O single “Alright”, em particular, tornou-se um hino para o movimento. O timing podia ser bom, mas o álbum falava sobre questões sistémicas que pairavam (e continuam a pairar) na sociedade norte-americana. Era música intemporal, rica em camadas e significados, ousada e de dedo apontado, mas com refrões orelhudos, videoclips vistosos e melodias contagiantes. To Pimp A Butterfly tanto foi um sucesso comercial como um álbum amplamente aclamado pela crítica. Valeu a Kendrick Lamar sete nomeações nos Grammys. Acabaria por ser distinguido pela revista Rolling Stone como um dos melhores discos de todo o sempre, além de ter sido considerado pela grande maioria das publicações musicais como um dos álbuns mais importantes da década.

Apenas dois anos depois, Lamar aumentava ainda mais a fasquia em termos comerciais com DAMN., que se tornou no seu álbum mais vendido de sempre, com canções mais radiofónicas mas que ainda assim não comprometiam a sua identidade artística nem o seu valor enquanto músico com uma forte consciência política e social. Foi o único rapper a conquistar um prémio Pulitzer – aliás, o único músico fora da música clássica e do jazz a alcançar este feito. Em 2018, fazia a curadoria e produzia a banda sonora do filme Black Panther, um enorme blockbuster comercial da Marvel com um significado cultural profundo na América, valorizando e homenageando a comunidade negra, evocando a sua ancestralidade africana com notórios laivos afro-futuristas.

Quando regressou em 2022 com o íntimo Mr. Morale & the Big Steppers, Kendrick Lamar apresentava-se mais maduro, mais auto-reflexivo e auto-consciente do que nunca, após ter passado alguns anos mais recatado, período em que foi pai de duas crianças mas em que também teve muito acompanhamento psicológico para lidar com as suas questões. Um disco onde se mostrou particularmente vulnerável, onde esmiuçou as suas inseguranças, onde purgava todos os seus demónios interiores perante os muitos milhões de ouvintes, aparentemente um resultado direto de todas as sessões de terapia e dúvidas existenciais escrutinadas até à medula. Sem singles tão pop, não alcançou os números de DAMN., mas revelou-se mais um marco conceptual na carreira imaculada de Lamar, que se tem pautado pela consistência.

Já em 2024, Kendrick Lamar teve um ano bastante ativo uma vez que a sua rivalidade com Drake se tornou uma guerra lírica aberta, com diversas faixas combativas a serem lançadas de cada lado da barricada, com o rapper de Compton a dar por terminada a disputa com o estrondoso single “Not Like Us”, que rapidamente entrou na lista dos grande hinos de Kendrick Lamar, tendo-se tornado um fenómeno popular. Alguns meses depois, já perto do final do ano, foi a vez de lançar um disco surpresa, o primeiro sem ser uma peça artística conceptual. Ainda assim, GNX reuniu argumentos mais do que suficientes para figurar em muitas das listas dos melhores discos do ano para as principais publicações jornalísticas.

Ao longo da carreira que tem vindo a construir de maneira exemplar, Kendrick Lamar provou, uma vez após a outra, como será certamente um dos rappers mais completos de sempre. Distinguiu-se pela forma como explora a voz, oscilando entre tons e velocidades, numa ampla paleta de nuances, o que contribuiu sempre para sugerir personas contrastantes, figuras contraditórias, diferentes emoções a expressar-se.

Além disso, Lamar tem sido um mestre do storytelling, um perito da narrativa, com as suas músicas, recheadas de substância e complexidade, a serem muitas vezes comparadas a obras literárias com um pendor cinematográfico – e a sua visão criativa em termos visuais tem sido amplamente explorada, desde as capas de disco aos ambiciosos videoclips que têm ilustrado os seus temas no decorrer dos anos.

A reputação congruente que tem vindo a construir também passa, naturalmente, por todas as ações paralelas à arte, pelas posições ativistas ou pelo trabalho de caridade que faz junto dos mais vulneráveis, pelas colaborações com estilistas e marcas de alta costura mas também pela forma como dá a mão a artistas em ascensão. E isto sem se aproximar da cultura de massas das celebridades, tão presente na realidade norte-americana, usando as redes sociais ao mínimo. Sem nunca se deixar cair nas amarras do moralismo, até porque tem sido sempre, acima de tudo, um auto-crítico, questionando-se publicamente tanto sobre os seus pecados como os da humanidade. Afinal, também é isso que o torna uma figura com que o público facilmente se consegue relacionar. Com a sua abordagem disruptiva e dedicada e o legado tão profundo que tem vindo a criar, Kendrick Lamar é sem dúvida um messias do hip hop que já se afigura como um génio cultural do século XXI.

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Fonte: https://comunidadeculturaearte.com/kendrick-lamar-o-genio-artistico-e-messias-do-hip-hop-nao-tem-fim-a-vista/