27 de novembro de 2025
Amor” de Sam The Kid ganhou uma nova vida na
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Fotografia de Francisco Queragura

Não foi assim há tanto tempo que Sam The Kid mostrou toda a sua grandeza com rapper na cidade do Porto. Três anos volvidos, a conversa foi outra. Foi como beatmaker e como homem dos instrumentais que se apresentou em data dupla no Centro Cultural de Belém (CCB), em Lisboa, com casa cheia em ambas as ocasiões, e na Casa da Música do Porto. Isto após, conforme o próprio artista referiu, uma forte vontade popular o mobilizar para voltar a Norte.

O motivo desta convocatória foi a celebração do aniversário de um dos mais marcantes trabalhos de hip hop em Portugal: “Beats Vol. 1: Amor”. Trata-se da celebração do legado de Sam The Kid como muito mais do que um rapper, mas como alguém que é um produtor musical de créditos altamente firmados, proliferados entre diversos trabalhos de variadíssimos músicos do género nos últimos 25 anos. De mais velhos a mais novos, de Valete, Mind da Gap, Regula e Dealema a Plutónio, Beware Jack, Blasph e Phoenix RDC, foram inúmeras as colaborações em produção ou em interpretações que fez e faz, com beats, voz e muita sede de (ajudar a) fazer boa música.

A conversa leva-nos à arte de bem “samplar” e de polvilhar o vazio com fragrâncias sonoras com proveniências várias (desde a televisão portuguesa, música brasileira, hip-hop dos EUA e muitas memórias pessoais, de si e de outros), ao mesmo tempo que vemos sendo contada uma história de amor. Nada mais é do que a história dos seus pais. Entre muitos outros trabalhos de beats e de caixas de ritmos, este trabalho merece uma celebração especial, depois de álbuns ditos convencionais em “Entre(Tanto)” (1999) e “Sobre(Tudo)” (2002), chegando ainda antes do mítico “Pratica(mente)” (2006), onde surgiu o famigerado hit “Poetas de Karaoke”.

Fotografia de Francisco Queragura

Por isso mesmo, à imagem do concerto no antigo Rosa Mota e no próprio Coliseu do Porto, no remoto ano de 2019, Samuel Mira chamou ao palco os “seus” Orelha Negra, habitualmente compostos pelo baixista Francisco Rebelo, do teclista João Gomes, do baterista Fred Ferreira e (aqui sem, embora o lembrasse no fim do concerto) DJ Cruzfader, assim como o seu AKAI MPC 2000 pessoal, o maravilhoso sampler, por onde, como referia numa entrevista ao jornal Público, tudo passa. Vários instrumentos, várias texturas de som, vários géneros até ao resultado final das “pastiches” que vai fazendo. De igual modo, para a chamada, foi alistada a mesma orquestra que o acompanha habitualmente ao vivo (ainda não tem nome, conforme Samuel referiu em palco, mas há-de ter) e que já conhecíamos. As experiências anteriores ao lado de ambas as partes foram positivas e aguçaram um apetite que foi saciado em Lisboa, no CCB, coberto por uma ampla cobertura mediática. Chegou, assim, a vez do norte festejar o “Beats Vol. 1”.

O ícone de Chelas, embora lisboeta de gema, chega a qualquer canto urbano do país e é aclamado como a divindade musical que é. Não foi exceção na sala Suggia, umas semanas depois da dupla data na capital, a abarrotar na sua plateia sentada (o complicado que é permanecer sentado por lá perante hip-hop pelos olhos e pelos ouvidos, mas foi esse o desafio de apreciação proposto pelo artista) disposta a acolher aquilo que saiu das memórias do passado para o palco. A relação com o Porto nunca foi totalmente estranha, com as já mencionadas associações e outras mais com artistas da zona, como Mundo Segundo (a solo) ou a Fuse, havendo uma intimidade grande no ar.

Fotografia de Francisco Queragura

Foi assim que a orquestra surgiu, apresentada em duas escadas laterais do palco, com Sam The Kid, qual vulto sagrado a surgir das brumas da luz, ao centro, munido dos seus Orelha Negra, dos samplers e da caixa de sons que figura na capa do álbum, onde estão por lá os discos que o pai de Samuel, Napoleão, manuseia. É o próprio Napoleão Mira, que Samuel referiu como alguém ligado à cultura e que o acompanha com regularidade, que abre e fecha o concerto, ligando e desligando o gira-discos. Conforme esperado pelo que se pôde espreitar dos eventos no CCB nas redes sociais, foi um concerto absolutamente narrativo, em que o processo de contar uma história é, de facto, o ponto marcante. Na sala em que decorreu o espetáculo, não foi difícil alocar esta experiência a um álbum que é muito mais conceptual do que qualquer outro qualificador, onde todas as faixas são frações de uma história maior , mesmo que contada de forma meramente musical. A orquestra foi de tal modo bem-sucedida que deu vida aos fragmentos musicais, aos samples, como se tivessem existências autónomas para lá das faixas dos quais foram retirados. O mérito é o de fazer de umas boas dezenas deles uma autêntica comunidade de seres vivos, algo que não é, nem nunca será missão fácil.

Cada um daqueles que cresceram a ver o próprio hip-hop tuga ganhar maturidade ao mesmo tempo que se iam maturando sentem uma ligação muito vincada a estes grandes vultos como Sam The Kid. É inevitável sentir uma conexão próxima aos grandes nomes do género, que se mostraram aos públicos desde cedo, meninos, e se consolidam numa já fase longeva da sua vida e obra. De certa forma, também explica a transição do público aos magotes e aos encontrões num concerto de hip hop para uma lógica mais de descontração, distribuídos por uma plateia sentada, de contemplação e de quase introspeção (talvez por isso menos telemóveis em riste). Isto perante os mesmos beats com uma roupagem parecida àquela que se escutava nestes momentos de exaltação e exultação. Uma maturidade a que todos chegaram, por mais que o empolgamento e o brilho exultante dos Orelha Negra (que show que deu o baterista Fred Ferreira) continuem tão miúdos como nunca.

Fotografia de Francisco Queragura

Esta reprodução praticamente integral do seu trabalho foi, assim, engrandecida pelas excelentes condições acústicas da sala Suggia, pelo rico e variado trabalho de luzes, pelo facto de todos estarem a usar t-shirts iguais e pelo mencionado contributo que a orquestra de cordas e de sopros trouxe, tornando um álbum de instrumentais à boa tradição do hip-hop a um alcance quase desproporcional dos habituais fones e das salas pequenas e fechadas onde todos se encontram. Não obstante, os arrepios deram-se ao som de “Beleza”, “Alma Gémea” e “Sedução”, talvez pelos temas que invocam, embora também se tenha ouvido as mais duras “Até Um Dia”, “Quando a Saudade Aperta” ou as “Memórias”.

No fim, no único momento falado do concerto, Samuel voltou a falar das razões de ser de tudo isto, da tónica do amor, deixando ao critério de cada um interpretá-lo e sorvê-lo conforme pretender, para além de falar do quão especial foi trazer este disco a palcos seletos, não tendo sido feito para ser exprimido em digressão, mas antes de forma cuidada e direcionada, preparado com um carinho que só pode ser sinónimo de amor. De igual modo, levou os grandes protagonistas desta história ao palco, sendo eles os seus pais Napoleão e Isabel (a primeira pessoa que o acompanhou a um palco, num já remoto concurso de música da RTP, algures pelos seus arquivos). A merecida ovação foi dada, já que, sem eles, não havia esta coisa do “Beats Vol. 1”, que se tornaria tão imprescindível para o hip-hop tuga nas duas décadas vindouras (e quiçá nas que por aí vêm). O próprio pai de Sam saudou o público do Porto como intenso e fervoroso, agradecendo o tal “amor”.

Fotografia de Francisco Queragura

“O Amor Não Tem Fim” é um dos mantras que fica para o sentimento que subjaz a estas duas décadas e (quase) meia de vida do álbum, agora quase como remasterizado em palco, elevado a outros voos musicais e até culturais e sentido de novo aos olhos da atualidade. É um mantra que também se materializa em Samuel Mira, Sam The Kid, vida e obra. Mais do que celebrar a bonita história de amor dos seus pais, foi momento para celebrar tudo num só dia, naquele que foi o reconhecer uma nova vida a “Beats Vol. 1: Amor”, pujante e recheada de saúde e de carinho. É uma festa à qual não se quer nem se deve faltar e que se irá prolongar por altas horas sem fim. Manhãs, tardes e noites em que o amor pela vida, pela música e pelos demais, incluindo pelas memórias, não terá mesmo fim.

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Fonte: https://comunidadeculturaearte.com/o-amor-nao-tem-fim-beats-vol-1-amor-de-sam-the-kid-ganhou-uma-nova-vida-na-casa-da-musica/