O novo álbum de Rosalía, LUX, sai já no final desta semana. Para os padrões da música contemporânea, o seu ciclo de divulgação foi relativamente curto. A capa e o nome do disco foram anunciados num evento-surpresa em Madrid, no passado dia 20 de outubro, com o lançamento agendado para o dia 7 de novembro. O seu primeiro single, “Berghain”, saiu há meramente uma semana, causando uma enorme comoção no público pelo corte extremo que faz com tudo aquilo que a artista catalã havia lançado até então — e até com qualquer coisa lançada nos últimos anos na esfera do mainstream. É uma canção arrojada que desafia as convenções do que é pop, plena de arranjos orquestrais épicos, passagens em alemão e secções mais experimentais protagonizadas por Björk e Yves Tumor. Foi então tranquilizador pensar que o álbum sairia apenas 11 dias depois do single, pois o suspense seria difícil de aguentar.
Apesar disso, a espera para a Comunidade Cultura e Arte foi ainda menor, pois tivemos oportunidade de ouvir o disco em “ante-antestreia”, com a pompa e circunstância que um trabalho assim requer. Para além daquilo que a artista já foi revelando nos últimos dias em diversas ações de promoção — que canta em 13 línguas, que é um álbum muito informado pela religião e pela feminilidade, e até um ou outro excerto de algumas canções —, partilhamos aqui algumas das nossas impressões dessa audição e desvendamos alguns segredos que prontamente serão de conhecimento geral.
“Ela fê-lo de novo“
Esta foi a primeira reação que tivemos. Depois do flamenco emotivo de Los Ángeles (2017), que vestiu uma roupagem pop e eletrónica em El Mal Querer (2018), e da excursão latino-industrial de Motomami (2022), Rosalía já tinha provado ser uma artista francamente conceptual e sem medo de arriscar. Qualquer um destes álbuns chegou ao mundo plenamente construído, com uma visão clara e muitíssimo bem executada — quer se goste mais ou menos de alguns desvios estilísticos. LUX consegue ser ainda mais arrojado que tudo o que veio antes, ainda mais quando se considera que vem no seguimento do período de maior popularidade da artista. Não há aqui tentativas fáceis de acessibilidade ou de capitalização, sendo um álbum que não pode ser nada menos que aquilo que Rosalía queria efetivamente fazer, por si e pela sua integridade artística.
A música clássica permeia o disco quase todo
“Berghain” não é um logro. A orquestra que define essa canção está um pouco por todo o trabalho, seja num formato mais delicado — como na abertura de “Sexo, Violencia y Llantas” —, esperançoso (na apaixonada “Focu’ranni”, apenas presente na versão física) ou dramático como na ópera de “Mio Cristo Piange Diamante” (o nome foi alterado na previsão do Spotify do original “Mio Cristo”). Isto ajuda LUX a tornar-se um álbum mais coeso do que a montra de géneros de Motomami, mas não menos desafiante. Poder-se-á definir como um trabalho neo-clássico, com incursões experimentais pela eletrónica que Rosalía já havia desvelado no passado e vários momentos que expandem o universo da pop para uma linguagem mais ampla. A orquestra toma um papel alto na mistura de som, sem ser relegada ao plano de fundo. O que a artista espanhola parece querer é trazer a música clássica para o nosso dia-a-dia — algo notório inclusivamente no videoclipe de “Berghain”, em que a orquestra se imiscui no seu quotidiano, seja a passar roupa a ferro ou a andar de autocarro.

Atos e secções
O álbum em si está dividido em quatro atos, como Rosalía já havia revelado. Para além disso, as próprias canções estão fortemente divididas em secções, quase como se de pequenas rapsódias se tratassem — algo que já se tinha notado em “Berghain”. Em geral, tudo encaixa, principalmente quando é mais surpreendente. Por exemplo, “Reliquia” passa de algo mais clássico a uma desconstrução com uma quebra eletrónica que vai beber ao hyperpop. “Divinize” termina a sua exploração do corpo como objeto divino com um clímax de batida rápida e violinos estridentes. “Mio Cristo Piange Diamante” deixa ver as costuras da sua voz (raramente) imperfeita, completa com um pequeno ad-lib que traz à mente os seus idiossincráticos “La Rosalía” ou “Trá trá!”.
Acabaram-se as “latinidades” e o flamenco está de volta
Quem procura uma continuação do neo–perreo que Rosalía aperfeiçoou nos últimos anos, pode procurar noutro lado. Em LUX, há apenas duas coisas latinas: “La Perla”, uma faixa que conta com os dotes de música regional mexicana do conjunto Yahritza y su Esencia, e o momento em que Rosalía literalmente canta em latim, na entusiasmante “Porcelana”. Nesta última, voltam a surgir as palmas de flamenco que durante tanto tempo caracterizaram a sua música. Há várias canções que bebem dessa fonte, sem serem meras repetições do que a artista já fez antes. Dois dos exemplos mais determinantes aparecem seguidos: “Mundo Nuevo” parece uma versão alternativa de “Reniego” (de El Mal Querer), com os melismas típicos do flamenco a serem colmatados com cordas à Philip Glass, enquanto que “De Madrugá” (uma das nossas favoritas) adiciona laivos orquestrais a uma canção sobre um amor arrebatador assolado pela morte.
Rosalía quase não pára de cantar
Ao longo das 18 faixas que compõem a versão física de LUX e que perfazem uma hora de música, Rosalía canta muito — e quando dizemos muito, é muito mesmo. A sua voz é o elemento central desta epopeia, seja em modo suplicante (“Divinize” ou “La Yugular”) ou em modo ameaçador, como no rap de voz profunda de “Porcelana” que nos lembrou do distante single “A Palé”, lançado em 2019. As suas letras tocam em temas grandiosos, como os pontos em que o divino e o profano se tocam, o valor das coisas terrenas, amores metafísicos e o legado que a própria artista deixará depois da morte — esta última em “Magnolias”, o bonito fecho do disco que pinta um funeral emocionante e caótico. Rosalía encarna objetos associados ao divino — por exemplo, comparando a sua coluna vertebral a um rosário em “Divinize” — e até se coloca no lugar de Deus em “Dios es un Stalker”. É muita informação para desempacotar e que precisará de várias audições para se revelar plenamente.

No entanto, também há espaço para alguma comédia — como nas farpas que manda a um ex-namorado (hm, quem será?) em “La Perla” e no ácido spoken word erótico-cómico de “Novia Robot”, mais uma faixa da versão física do disco — e até alguma leveza, como na melosa balada de piano “Sauvignon Blanc”, a faixa mais fraca do conjunto.
Rosalía: a cidadã do mundo
Já mencionámos antes que a artista canta aqui em 13 línguas — castelhano, catalão, italiano, siciliano, alemão, inglês, árabe, japonês, chinês, hebraico, ucraniano, latim e português — fazendo-o com confiança e dedicação impressionantes. As letras nas línguas que não domina são igualmente complexas, tendo requerido longos períodos de estudo e escrita juntamente com falantes nativos ou especializados nas mesmas — em entrevista, disse ter dedicado um ano às letras do disco. Para além das diferentes línguas que habitam o disco, o disco também habita todo o mundo nas suas letras. Rosalía leva-nos numa jornada mundial em “Reliquia”, contando-nos o que foi perdendo ao largo de cidades como Jerez, Milão ou Buenos Aires — tirando o seu coração, que nos canta nunca ter sido seu. Em “La Yugular”, leva-nos até para lá do plano terreno, num vertiginoso vai e vem entre objetos tão pequenos como uma bola de golfe e o próprio Universo.
E, por fim… o fado
Há poucas colaborações em LUX, o que torna ainda mais especial a presença de Carminho na penúltima canção do disco, “Memória”. Rosalía já havia exaltado a fadista portuguesa no concerto que deu em Braga, em 2022, contando como cantava canções suas quando se apresentava em restaurantes e chegando a fazer uma curta versão de “Escrevi Teu Nome no Vento”. Segundo Carminho, “Memória” seria um original seu, para o qual Rosalía tinha sido convidada a participar. No fim de contas, foi a artista espanhola que ficou com ela, levando o fado consigo para o universo de LUX. É uma versão mais atmosférica do género musical português, completa com um coro, harpa e violino. A letra é absolutamente maravilhosa e emotiva, evocando uma memória desvanecente e um amor que nos pode recordar de quem nos próprios somos. “Quando morrer, não quero esquecer o que vivi” foi uma das frases que mais ficou connosco.
Fonte: https://comunidadeculturaearte.com/primeiras-impressoes-de-lux-o-novo-album-de-rosalia/

