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Depois da caminhada-concerto com Tomás Wallenstein, prosseguimos com a cobertura da edição de 2024 do Festival de Sintra. Já escrevemos várias linhas sobre os diferentes formatos e espectáculos fora do comum deste festival, mas, assumidamente, nada nos havia preparado para a experiência que foi “Ad Tenebrae” (ou “Rumo às Trevas”), o espectáculo apresentado pelo Officium Ensemble na Igreja de Santa Maria, em Sintra.
Esta experiência exclusiva do festival consistiu na apresentação de composições portuguesas do século XVI e XVII, cantadas no estilo polifónico renascentista característico de Portugal. Vale a pena ressalvar ainda que algumas destas composições já não eram apresentadas ao vivo há séculos. Ora, não só foram apresentadas numa fabulosa igreja gótica, como o concerto, iluminado apenas por algumas dezenas de velas, se tornou gradualmente mais escuro à medida que o próprio grupo coral apagava sucessivas velas. A última canção do repertório foi então cantada inteiramente na escuridão. É arrepiante só de se ler.
O espectáculo foi apresentado por Martim Sousa Tavares, director artístico do Festival de Sintra desde a edição anterior, que nos contou como “Ad Tenebrae” é inspirado no Ofício das Trevas. Esta é uma cerimónia católica que se celebra na Quarta-feira Santa, na qual 15 velas são progressivamente apagadas, conforme a progressão das leituras de trechos bíblicos. Aqui, as leituras seriam então substituídas pela apresentação de obras de compositores da mais importante escola da polifonia vocal renascentista portuguesa, a Escola de Évora, entre os quais se encontravam Duarte Lobo, Estêvão Lopes Morago, Francisco Martins, Manuel Cardoso e Pedro de Cristo. Tendo em contacto a natureza visual do espectáculo e a falta de luz que o mesmo exige, reminescente dos tempos medievais, Martim pediu enfaticamente ao público que desligasse os telefones e que se coibisse de aplaudir até ao final do espectáculo, para evitar interrupções tanto luminosas como sonoras.
Assim que nos encontrámos prontos para começar, surgiram no coro-baixo da igreja os 13 cantores do Officium Ensemble que actuariam essa noite, assim como o director musical e fundador do grupo, Pedro Teixeira. O alinhamento começou com os diferentes actos de “Missa pro defunctis”, de Manuel Cardoso. Dispostos em meia-lua, com as vozes mais agudas à esquerda e as mais baixas à direita, os cantores trocavam notas perfeitamente conseguidas entre si, criando camadas vocais que adicionavam ou retiravam de acordo com os requisitos da música e do maestro. As vozes ecoavam na arquitectura ampla da igreja e, à falta de jargão técnico para as descrever, evocavam um espectro difuso e brilhante, sem peso mas de alguma forma ancorado pelas leis da gravidade, que se expandia e retraía a seu bel-prazer.
De seguida, ouvimos “Responsorium: Memento Meu”, de Duarte Lobo, mas não sem antes se apagarem parte das velas que ladeavam o semi-círculo de cantores. Aliás, entre as actuações de “Lamentatio Feria Quinta” (de Manuel Cardoso), “Tristis est anima mea” (de Pedro de Cristo), “Tenebrae factae sunt” (de Francisco Martins) e “Sepulto Domino” (de Estêvão Lopes Morago), mais e mais velas iam sendo apagadas com um apagador de velas, no ritmo moroso e ponderado que uma actuação com um teor tão ritualístico pedia. Isto permitia aos cantores tomar água e ao público encontrar uma melhor posição nos duros bancos da igreja. O silêncio que se pedia foi francamente respeitado, podendo até chamar-se de sepulcral. Para além de necessário para o grupo coral, que requer absoluta concentração, o silêncio pareceu ser necessário também para o próprio público, que temia perturbar algo que, naquele momento, era muito maior que todos nós.
Curiosamente, a certa altura, pareceu-nos ouvir fortes pancadas na porta da igreja. Tendo em conta que a actuação não foi interrompida, não conseguimos confirmar o que realmente aconteceu, mas certo é que o episódio instigou um estado de alerta, como se estivéssemos na presença de um elemento estranho. Apesar de tudo, a sensação de inquietude que o momento trouxe foi bem-vinda e simplesmente aumentou a expectativa para o derradeiro mergulho na escuridão que, por fim, chegou.
As restantes velas que fracamente iluminavam a capela-mor da igreja foram apagadas da forma dramática que esperávamos desde o início, com recurso ao sopro de alguns dos cantores. A sensação foi vertiginosa, como se de repente perdêssemos o chão debaixo dos nossos pés e nos encontrássemos num espaço infinito. A débil luz da Lua crescente entrava pelos poucos e estreitos vitrais da Igreja de Santa Maria, confundindo os nossos olhos que não tiveram tempo de se habituar às trevas. Eis então que “Audivi Vocem” (“Ouvi Vozes”) começa a soar, e a nossa audição, subitamente mais aguçada, apreende tudo. Mesmo sem o acompanhamento dos tablets que haviam usado até então para acompanhar as palavras em latim ou a liderança de Pedro Teixeira, o grupo foi tecnicamente impecável na sua sincronia. Nem imaginamos a dificuldade que terá sido ensaiar isto até chegar ao ponto que podemos descrever como “perfeito”. Fomos às trevas e voltámos, guiados por um coro angelical.
Uns segundos depois, as luzes acenderam-se e, com uma longa ovação, o público agradeceu ao Officium Ensemble por uma experiência transcendente. Pedro Teixeira, por sua vez, agradeceu-nos a nós e falou um pouco mais sobre o programa da actuação e apresentou brevemente os autores das obras apresentadas. Para concluir, fomos presenteados por mais uma performance de “Audivi Vocem”, agora perfeitamente às claras, mas sem diferenças aparentes na actuação.
No dia seguinte, Martim Sousa Tavares descreveu o concerto como um dos “mais emocionantes da sua vida”, o que é dizer algo, tendo em conta o seu historial com a música. Aliás, é de notar a presença do próprio em praticamente todos os eventos do festival, algo que comprova não só a qualidade do alinhamento, como também a sua confiança no projecto. O Festival de Sintra termina agora o seu primeiro fim-de-semana da edição de 2024, mas há muitos outros eventos a explorar até dia 23 de Junho, entre caminhadas-concerto, concertos (sem caminhada), debates e até um duelo de pianistas, evento que tivemos o prazer de acompanhar no ano passado.
Fonte: https://comunidadeculturaearte.com/reportagem-a-transcendente-descida-as-trevas-nas-vozes-dos-officium-ensemble/