
Um dos mais aguardados formatos do Festival de Sintra regressou pela terceira vez à majestosa vila de Sintra: o duelo musical entre dois pianistas de renome, cujo resultado é decidido pelo público. Há dois anos, trouxemos o relato da experiência que colocou Raúl da Costa e Vasco Dantas um “contra” o outro, no Salão Nobre do Palácio de Seteais. A pequena sala esgotada e entusiasmo latente resultaram numa repetição do evento no ano seguinte, dessa vez com os solistas franceses Fabrice Eulry e Pierre-Yves Plat, para uma audiência maior que foi recebida no Palácio Nacional de Sintra.
Para esta que é a 59.ª edição do certame, o duelo teve como intervenientes o franco-norte-americano Dan Tepfer e o alcobacense Daniel Bernardes, referências do piano no mundo do jazz. Sem desvendar o verdadeiro desfecho demasiado cedo mas correndo o risco de nos repetirmos, podemos dizer desde já que, à semelhança de há dois anos, o verdadeiro vencedor deste duelo foi mais uma vez o público, pois teve a oportunidade de assistir a momentos musicais fascinantes e imprevisíveis. A noite foi um verdadeiro testemunho do virtuosismo de ambos os artistas, como já era de esperar.

Antes de se dar início ao duelo, o diretor artístico do Festival, Martim Sousa Tavares, expôs as principais regras ao público. Cada pianista teve direito a quatro rondas alternadas, sendo que o vencedor foi decidido pelo somatório do tempo de aplausos da audiência em cada ronda. No invulgar caso de um empate, os pianistas tocariam uma ronda de fogo — o que podemos já adiantar que não aconteceu. O público deve estar em silêncio durante as atuações, podendo apenas expressar o seu agrado através de aplausos ou da exclamação “bravo!”. Depois de atirar uma moeda ao ar, decidiu-se então que Daniel Bernardes abriria as hostes deste singular evento.
Daniel sentou-se ao piano disposto no meio da belíssima Sala dos Cisnes do Palácio Nacional de Sintra, entre duas secções de público opostas uma à outra. Para a primeira ronda, escolheu um tema da sua autoria, “Si Bemol”. A peça melancólica parecia rodopiar pelo salão com os seus arpeggi delicados, sendo elevada pelo acompanhamento em voz do próprio Daniel, que, de olhos fechados com intensidade, trauteava as notas juntamente com o seu instrumento. No final da interpretação, aproveitou para elogiar o oponente, designando-o como uma “inspiração” para si, dizendo ainda que as suas visões sobre a música coincidem bastante. Logo aí se viu que em nenhum ponto deste duelo jorraria sangue de nenhuma das partes — não que alguém o esperasse.

O “segundo” Dan — aludindo aos nomes similares dos pianistas — também escolheu uma música própria para a primeira ronda, de seu nome “Hope”. Contrapôs-se a Daniel Bernardes pelo tom mais alegre da melodia. Se a anterior parecia rodopiar, esta parecia saltitar pela sala, conjurando a esperança titular da canção. As palmas não pareceram diferir muito nesta primeira ronda, algo que mudaria logo na seguinte.
Daniel Bernardes, com o seu carisma e humor característicos, introduziu a peça “Henry Dark”, do seu disco City of Glass, referência ao homónimo livro de Paul Auster. Mais uma vez rodopiante, mas menos soturna, a canção pareceu não divergiu assim tanto da anterior, para ouvidos leigos, particularmente em comparação com aquilo que Dan apresentaria logo de seguida.
Para o seu último álbum a solo, Inventions / Reinventions, Tepfer revisitou as 15 Invenções de Bach, pequenas peças destinadas para treino musical, tendo cada uma o seu próprio tom. Sendo que há 24 tons possíveis, o artista decidiu completar o disco com outras nove improvisações nos restantes tons. Neste duelo, pediu a colaboração do público para criar uma improvisação no momento: precisava de um tom (o escolhido foi o lá menor), uma assinatura de tempo (7/8) e de uma melodia inventada. O envergonhado público não se chegou à frente, mas Martim inventou uma melodia. “Até parece que és um músico profissional”, brincou Dan Tepfer. Este exercício, impressionantemente executado pelo pianista, rendeu-lhe fortes aplausos do público.

Daniel sentiu a pressão e decidiu, para a terceira ronda, demonstrar os seus dotes nas complicadas polirritmias características da música africana. Inicialmente, trouxe à mente artistas que também se inspiraram nessa técnica, como os Talking Heads. A música mais angulosa e desafiante acabou por ser menos emotiva que as peças interiores, mas não menos impressionante. Quando os diferentes componentes e ritmos se encontravam, a peça chegava a ser hipnótica, com tons baixos que traziam à mente a agitação industrial do rock matemático.
Por seu lado, Dan reduziu consideravelmente o ritmo para uma peça que dedicou à memória da sua mãe, que havia falecido precisamente 6 anos antes da data do duelo. Foi um momento naturalmente mais soturno e introspectivo, que ainda assim lhe rendeu bastante admiração, provavelmente pela carga emocional que imprimiu na música.
Para a última ronda, as abordagens foram mais uma vez opostas. Daniel Bernardes atirou-se ao coração e ouvidos do público com o seu “trunfo”: Chico Buarque. Foi uma versão com aquela ginga que só a bossa nova consegue trazer, aligeirando um pouco o ambiente. Por outro lado, Dan Tepfer decidiu mostrar-nos a sua própria abordagem à polirritmia. “Telekinesis” também evocou paisagens mais industriais, com o piano dissonante a trazer-nos de volta ao jazz. A canção parecia uma torre de Babel projetada por Escher, cheia de becos sem saída, escadarias infernais e ascensões em espiral. Pelo meio da impressionante confusão sónica, perscrutámos Daniel a seguir os ritmos do rival com a cabeça.

No final de contas, o vencedor foi Dan Tepfer, com mais de 30 segundos de diferença em tempo de aplauso. O norte-americano soube estruturar muito bem a sua atuação, com variações musicais e intervenções que despertaram constantemente o interesse do público. No entanto, no final, o contexto de duelo acaba por ser apenas um mero apontamento, principalmente quando, como esperado, os dois pianistas se sentam juntos ao piano para presentear o público com mais algumas peças.
Tal como Daniel Bernardes havia dito no início da noite, os dois músicos realmente demonstraram partilhar uma mesma visão da música. Os seus estilos tocam-se em vários pontos, mas as abordagens são complementares. Isso foi particularmente notório nas interpretações que o duo fez do standard de jazz “What Is This Thing Called Love?” e de “Solar”, de Miles Davis. Ambos pareciam membros de uma mesma equipa de estafetas, trocando entre as duas metades do piano sem perder uma nota da canção. Só mais uma vez: quem ganhou fomos todos nós.
Fonte: https://comunidadeculturaearte.com/reportagem-improvisacao-jazz-e-melancolia-no-duelo-entre-dan-tepfer-e-daniel-bernardes-no-festival-de-sintra/