23 de outubro de 2025
Reportagem. O dia em que Amália voltou a fazer-se ouvir
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Fotografia de Inês Pinto Gonçalves / FLAD

Amália Rodrigues pertence a uma categoria de artistas que transcendem o próprio tempo. Uma mulher livre, presa apenas no “outono” da sua forma de vida, Amália pisou palcos nos quatro cantos do mundo, transcendendo as fronteiras do idioma com a intensidade com que entoava as palavras. Ao longo de mais de 50 anos de carreira, percorreu cinco continentes e mais de 68 países, tornando-se a primeira artista portuguesa verdadeiramente internacional e levando o fado a palcos como o Olympia de Paris, o Teatro Sistina, o Lincoln Center e o Hollywood Bowl.

Antes de Amália, o fado era um gesto popular. Um canto de sobrevivência e de rua, filho de tabernas e de becos, entre a confidência e o esquecimento. Depois de Amália, tornou-se uma arte com gramática, uma forma exportável, uma estética universal. O que estava enraizado na informalidade do povo tornou-se, com ela, no desassossego transformado em forma. Foi ela quem inventou a dimensão performativa de estar em palco com fado, sendo a primeira a fazer recitais de fado em grandes salas de espetáculo.

A voz de Amália ultrapassa qualquer etnografia e não se restringe ao fado, embora o levasse para todo o lado. Cantou rancheras, sambas, flamenco, coplas andaluzas, folclore italiano, o cancioneiro americano. Cantou em espanhol, em galego, em francês, em italiano, em inglês. Com a imprensa mundial enamorada, Amália foi, no início dos anos 60, aclamada como uma das cinco melhores vozes do mundo pela revista Variety, designada por “alta sacerdotisa do culto do amor, dos amores perdidos, traídos, condenados e não correspondidos” (tradução livre, retirada do New York Times, entrevista de 1964 em Lisboa), ou, se não quisermos ser tão barrocos, por “rainha do fado”.

Depois da sua morte, em 1999, Amália foi homenageada inúmeras vezes e a sua obra foi descoberta e redescoberta, interpretada e celebrada. Vinte e seis anos depois da sua morte, não há quem queira encontrar-lhe substituto e poucos são os que não se emocionam ao ouvir a sua voz. Foi o que aconteceu no dia 11 de Outubro de 2025 no Carnegie Hall, em Nova Iorque, 50 anos depois de Amália ter subido a este mesmo palco, em 1975.

Não foi a primeira vez que Amália foi figura de destaque nos Estados Unidos. A sua relação com o público americano começou em 1952, quando deslumbrou pela primeira vez os nova-iorquinos no La Vie en Rose, onde ficou 14 semanas em cartaz. Entre concertos e digressões, actuou com as Orquestras Filarmónicas de Nova Iorque e de Los Angeles, com as quais interpretou músicas tradicionais portuguesas e clássicos do Great American Songbook, que deram azo aos discos Amália Canta Portugal e Amália on Broadway. Pegando nestes dois momentos, e num esforço conjunto com a Orquestra Sinfónica Portuguesa, os fadistas Ricardo Ribeiro, Cristina Branco e Raquel Tavares, o maestro Jan Wierzba e a Égide, a mais recente homenagem a Amália e à sua versatilidade subiu ao palco do Carnegie Hall, em Nova Iorque, a 11 de outubro, para se reproduzissem partes do cancioneiro português e norte-americano tal como Amália o fez.

Os dias que antecederam o concerto foram, no mínimo, frenéticos. No último ensaio em Lisboa, numa caixa plantada no pátio do São Carlos, afinavam-se arranjos e acordes enquanto se garantia à imprensa que, três dias depois e já em Nova Iorque, a orquestra estaria perfeitamente afinada. O rebuliço dos dias seguintes parecia estar em contraciclo com a garantia dada, mas a verdade é que às 20 horas do dia 11 de Outubro, as dezenas de músicos da orquestra estavam perfeitamente alinhados no palco perante um público de jovens e não-tão jovens, emigrantes, falantes e não falantes de português. O respaldo era, em toda a linha, Amália.

Fotografia de Inês Pinto Gonçalves / FLAD

Sob a batuta de Jan Wierzba, o maestro de origem polaca com sotaque do Porto, Raquel Tavares e Ricardo Ribeiro foram-se revezando para interpretarem canções como “Senhora do Livramento”, “Oliveirinha da Serra”, “Ai Mouraria” ou “Amália”. No final de cada canção, Raquel Tavares dava um saltinho de emoção e de dever cumprido e Ricardo Ribeiro, mais comedido mas nem por isso menos emocionado, permitia que o público recuperasse da extrema força que a sua voz emite. Nesta primeira parte de músicas tradicionais portuguesas, o fado esteve sempre presente, ainda não tivesse sido ainda cantado.

Para a segunda parte, Cristina Branco pegou nas mesmas canções do Great American Songbook que Amália cantou e deu-lhes uma nova vida, com o seu cunho e com o seu fado. Se nos arrepiamos a ouvir Amália cantar “Blue Moon”, ter ouvido Cristina Branco cantar a mesma canção não nos deixou menos fascinados. Não habituados a ouvir Cristina Branco cantar em inglês, mas não nos importamos de repetir. As canções que compõem o imaginário norte-americano ganharam com o toque de fado dado e nem o nervosismo, que só se deixava transparecer nos intervalos das canções, nem a responsabilidade da tarefa atribuída (consta que Ricardo Ribeiro e Raquel Tavares foram céleres a descartar-se de tal missão), comprometeram a excelente interpretação.

Fotografia de Inês Pinto Gonçalves / FLAD

No final, com parte das saudades de Portugal já mitigada e com o olho piscado ao cancioneiro americano, os três fadistas alinham-se em frente à orquestra para cantar o fado “Gaivota”. A simbiose das três vozes e as palavras de Alexandre O’Neill fechavam na perfeição o concerto, até que, mais ou menos a meio do fado, os fadistas se calam e a voz de Amália ecoa. Ricardo Ribeiro, amaliano de coração e alma, emocionou-se e os olhos de Cristina Branco e Raquel Tavares brilhavam. “Um artista deve sentir o fado e transmitir o que sente”, disse Amália à entrevista já citada ao New York Times, e a bem da verdade foi isso que todos os que estavam em palco fizeram. À honestidade e ao fado sentidos e transmitidos, o público respondeu com uma ovação de muitos minutos, com um limpar de lágrimas mais ou menos disfarçado e com o coroar de uma noite perfeita, a consagração de três grandes fadistas, de uma grande orquestra e com a certeza de que a voz de Amália é casa. Como a própria disse: “o que me ficou disto tudo, deste trabalho todo, no fundo foi muito e foi enorme, mas o que me ficou disto tudo, foram as palmas, foi o público, foi o amor das pessoas. É ele que me tem alimentado”.


“Amália in America” encerrou as comemorações dos 40 anos da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento (FLAD), criada em 1985 como resultado de um acordo entre Portugal e os Estados Unidos. A FLAD tem como missão promover a cooperação bilateral entre os dois países em áreas fundamentais como ciência e tecnologia, educação, arte e cultura, e relações transatlânticas, actuando como uma ponte institucional e cultural que estreita laços históricos.

As celebrações iniciaram-se em maio de 2025, em Lisboa, com a conferência “Breathing with the Ocean”, que reuniu especialistas para discutir a sustentabilidade dos oceanos como vector estratégico entre Portugal e os EUA. No mesmo dia, realizou-se o concerto da obra City of Glass, de Daniel Bernardes, inspirado na Trilogia de Nova Iorque de Paul Auster, que faleceu em abril de 2024, unindo música e literatura numa homenagem à ligação cultural transatlântica.

Para Nuno Morais Sarmento, presidente da FLAD, o oceano é um vetor central para o futuro de Portugal, como um elemento que amplia a presença do país no mundo e serve de ponte para o fortalecimento da cooperação bilateral com os Estados Unidos. Este foco na inovação, intercâmbio cultural e científico reflete a visão da fundação de que, “num tempo que é mais de fechar pontes”, cabe à FLAD a missão de construir pontes, redobrando esse esforço. O concerto “Amália na América” no Carnegie Hall simbolizou precisamente essa missão: celebrar o legado cultural partilhado, honrar a memória de quem levou Portugal ao mundo e renovar o compromisso com uma cooperação transatlântica sólida e duradoura.

A Comunidade Cultura e Arte viajou a convite da FLAD.

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Fonte: https://comunidadeculturaearte.com/reportagem-o-dia-em-que-amalia-voltou-a-fazer-se-ouvir-no-carnegie-hall-em-nova-iorque/