Era novembro de 2024 e sentava-me com MAVI, aclamado rapper de Carolina no Norte, naquela que foi mais uma noite de estrelas com a Versus, desta vez na Galeria Zé dos Bois, em Lisboa.
Com uma presença que enchia a sala e simpatia a transparecer do rosto, adivinhava-se uma entrevista sem rodeios ou traços de vedeta, algo que se traduziu de imediato, nos 30 minutos de conversa passados nos bancos de pedra frios da sala.
De filmes, a livros, passando por dissecações profundas das suas letras e estados de espírito, era transparente o facto de que MAVI vive o que escreve, sendo óbvia a evidência da passagem de anos conturbados, refletidos na sua arte, como se de um diário se tratasse.

Assim nos deu shadowbox, novidade e tópico principal na altura, e os anteriores Beacon, Let The Sun Talk ou Laughing so Hard it Hurts, que o aproximaram cada vez mais perto das luzes da ribalta, como traça para a luz. Quase num poético caso de se esvair em sangue com tanta amplitude, que cada vez mais vêm curiosos de toda a parte para ver, com a sola dos sapatos em sangue.
Pode não ter deixado de purgar, mas chega-nos agora com The Pilot, numa abordagem diferente, dando flex nessa sola de sapato vermelha. E a primeira frase da primeira música do álbum, “Heavy Hand”, diz-nos muito acerca do mote deste projeto: “I´m the best dressed n**** on my therapist couch”.
Assemelhando-se a um aviso, o artista parece dizer-nos que os traumas continuam lá, a necessidade de falar sobre os mesmos também, mas haverá uma altura em que o foco terá de ser redirecionado para outra fonte de luz no prisma, não vá por acaso ficar preso numa escuridão abissal, que há anos teima em chamar o seu nome.
E assim como na capa, que mostra um salto com intenção de voo e agora desprendido da confissão que já fez, lança-se da rampa para o resto do disco. Mas será que aterra bem?
Quando chegamos a “Tripple Nickle” com MIKE, entende-se a razão para este salto; e que bom parceiro de paraquedismo tem, para este que é um conto sobre ser desiludido por quem lhe é mais próximo e fazer uma carreira a passar por batalhas muito duras. Se há alguém que sabe uma coisa ou outra sobre fazer arte com as feridas, em alguns dos seus momentos mais desafiantes, é este artista; com obras como May God Bless Your Hustle ou Beware of The Monkey, que tão famosamente ajudaram fãs a ultrapassar momentos da vida, com testemunhos reais e emotivos, espalhados pelas redes sociais e com claras repercussões no leito da vida pessoal.
Parece que o sucesso não vem sem luta e quando finalmente chega, acontece o resto do álbum. Resto esse que se apresenta como desesperançoso, focado numa egotrip e com um certo sentimento de impotência da parte do artista, sabendo que por mais que que se adapte às circunstâncias, dificilmente obterá tudo o que queria, porque nem tudo o dinheiro e sucesso compram, como desabafa no verso de “Silent Film”, música que levou ao Colors: “Was juggin’ ‘cause in a world so cold, you just throw on a hoodie/ I see the limit and push it, sneakin’ over the edge/Made a million off of my grief, none of my people rose from the dead”. Por mais que esteja habituado à dor e a lidar com ela e mesmo que esta lhe esteja a trazer riqueza, no fim do dia, nenhum dos seus entes queridos falecidos ressuscitou por milagre ou poucos problemas do foro pessoal se evaporaram.
Aqui chora-se sobre leite derramado, a caminho do banco.
Considero que esta dicotomia não deixa de ser interessante. Ao contrário do que possa parecer, por se apresentar com um álbum de tópicos mais “exuberantes”, MAVI relembra sempre os seus demónios: “I just know I’m depressed, I don’t wanna mope in the press”, mas, desta vez, remata quase sempre e de imediato com ostentação: “When I open my bedroom door, learnin’ French from only my dresser”, apenas para nos atingir com outra onda de desabafo, em versos como: “Amounts of cheese just to burn/I don’t think I deserve it”. O que abre a reflexão: se ao abrir a ferida em público é surpreendido com aclamação, acompanhada por glória, que gera, por sua vez, uma fonte monetária, o que impede o artista de associar a dor ao sucesso e à vontade crescente de lá enfiar os dedos? E quando, mesmo assim, não se considera merecedor dessa recompensa? Apesar de tudo, é choro a preço de ouro. É possível que se comece a olhar para o processo criativo como uma espiral sem fim à vista.
O mesmo ocorre nas faixas seguintes, de pura presunção, “G-Annis Freestyle”, “Type Writer” com Kenny Manson e “Denise Murrel”, onde fala extensivamente sobre o quanto o dinheiro pode comprar e o quão longe chegou, podendo agora falar sobre os seus milhões.
O que significa, pela lógica até agora, que as próximas músicas contribuirão certamente para um balanço. E estaríamos certos em assumir.
Seguem-se temas como “31 days” ou “Mender”, produzido por Jay Versace, vencedor de vários Grammy.
Em “31 days”, MAVI confessa estar sóbrio há 31 dias, adicionando assim mais uma camada desafiante, pois sabe-se a relação tóxica e cheia de passeios românticos pelo fio da navalha que a fama tem com a sobriedade. É neste tema que caso questões houvesse, o artista clarifica: “Don’t ask me how I feel/Got another mouth to fill/Got another crowd in tears/You don’t even got the time to hear it really” evidenciando que as prioridades agora são outras e está focado, numa de “o MAVI antigo não pode vir ao telemóvel agora”, gabando-se rápida e novamente sobre os seus bens: “So far, in the city with the most jewels”.

Mas logo de seguida continua o verso, com: “…despite what was told to you, I’m no star/Might look approachable, I tote rods” e “Walk around with open wounds and old scars/What I’m ‘posed to do? I’m the poster child, a gifted child”. Não é fácil lidar com o peso das expectativas e MAVI encontra-se claramente em conflito, sendo esta a faixa onde talvez mais se destaca esse facto.
A mesma termina com os versos:”It’s just somethin’ ‘bout the brokenness holy to me/It’s just somethin’ ‘bout perfection that’s phony to me” o que leva a pensar que talvez mesmo que a partir de agora MAVI queira submergir-se neste estilo de vida mais glamoroso, duvida-se que deixe de mencionar o que o trouxe até aqui, pelo próprio que diz que há algo na perfeição que parece falso para ele, assim como há algo de divino na destruição.
E o mesmo já viu o suficiente para saber que Deus existe, segundo diz na música seguinte, “Mender”, eleita como uma das preferidas, pessoalmente, em grande parte pelo beat, produzido pelo talento Jay Versace, por detrás de hits de artistas como Tyler, The Creator, Boldy James, outros parceiros de Griselda ou SZA. Que se tire um momento para falar da beleza bordada nas notas deste tema.
“Mender” pode ser considerada uma música de amor, por vezes o tópico mais trágico para se escrever sobre. Sobre um instrumental escolhido a dedo, pelo quanto remete para memórias felizes de tempos mais cor-de-rosa, como se de uma banda sonora de um romance se tratasse, debita a voz rouca, por vezes quase a assemelhar a um choro, de MAVI.
Dúvidas sobre a relação aliam-se ao desespero sentido em versos como: “Feel like everything I eat seem to feed a leech”, onde expõe o quanto tudo o que faz é como alimentar uma sanguessuga, nunca satisfeita e sedenta por mais, terminando este pranto com a súplica, repetida como mantra: “I’ma leave it where it was ‘cause I must/But me and you gon’ be one again at some point”. Nesta que é uma das músicas que mais se assemelha a projetos anteriores deste artista, MAVI mostra-se despido de rodeios, com o coração na boca e punhal na mão: para si e para a cara-metade, forçado a deixar ir algo ou alguém que se ama, na esperança de que no futuro possa haver um reencontro. Realmente o último ato de amor pode ser deixar a pessoa ir à sua vida.
O álbum termina com duas colaborações de peso, “Landgrab” com Earl Sweatshirt e “Potluck” com Smino, deixando para o fim a verdadeira chave de ouro, não tivesse MAVI já aberto a porta ao pontapé; todo o álbum culmina neste clímax de afirmação do quanto cresceu enquanto artista, pessoas a que tem vindo a chegar e o nível a que está, enquanto abraça esta que parece ser uma nova fase. Mas há anos que nos apresenta rasgos desta construção.
Com principal destaque para “Landgrab” com Sweatshirt, outra das músicas eleitas para a lista de preferidas nesta coletânea, pelo bem que os dois se completam. Foi em 2019 que esta dupla se deu a conhecer em “El Toro Combo Meal”, do projeto Feet of Clay de Earl Sweatshirt, para muitos de nós a primeira vez a ouvir falar de MAVI, fecha-se agora um círculo completo, selado a confiança, com alguns dos versos finais de “Langrab”:“They ask for a photo, I pose like I’m handsome/‘Cause I’m handsome and I understand that”. Há uma confiança que exala; e que não se assuma que é ao acaso.
O que me traz à conclusão:
É fácil e talvez até cómodo desfazermos-nos em certezas e cair nos comentários fugazes e simples de que The Pilot é um álbum superficial, demasiado focado em ostentação, ou que MAVI caminha para um lugar onde pretende deixar para trás a bagagem da metafísica, desiste de se abrir ao público e sangrar connosco, que tanta vez encontramos paz ao entender que a sofrência não é exclusiva ao indivíduo comum.
Mas estará o ouvinte demasiado fixado no facto de que música rap, especialmente de um artista negro, tem de ter obrigatoriamente uma mensagem de luta, dor, sofrimento e tragédia?
Muito se fala em glamourizar a dor, é bonito o que dói, pela arte que se pinta com ela. E com o passar da vida e face a tudo o que se vive na atualidade, encontramo-nos tão dormentes, que nos emocionamos quase apenas com algo trágico, pois toca o coração. Cai-se periodicamente na ilusão de que só é real o que fere e sob esse olhar marejado, que nos acompanhou nos álbuns anteriores, ou enquanto fã, como eu, que não tem acesso a milhões de euros e roupa de designer, existe a clara dificuldade em se relacionar e achar este álbum tão bom como os anteriores.
Mas querer que um artista seja honesto consigo mesmo, implica ouvir também quando este passa por uma fase melhor. Quando sutura as feridas e mostra recuperação. É preciso deixar a arte mostrar-se consoante a máscara que quer mostrar.
Relembra-me de imediato o verso de Tyler, The Creator (que elogiou, neste dias, no Instagram, a capa do álbum que aqui falamos) em “WHAT A DAY”, do álbum Call me if you get lost: The Estate Sale: “White boy said I brag too much, the black kid said it’s inspiring”. São pontos de vista.
Se esta “máscara” apresenta a cara de rejubilação em conquistas, que direito tem alguém de dizer: “Voa, mas não assim tão alto”? Face também à produção incrível deste álbum pelas mãos de Jay Versace, Angelo LeRoi, Nephew Hesh, Asean Bwoy, Cade, Reuben Vincent, Lil Chick, Michael Eliran, Sango e Hollywood Cole e às primeiras grandes colaborações de nomes como Smino, Earl Sweatshirt, Mike e Kenny Mason, parece a altura certa para deixar planar.
Não deixa de ser algo profundo abrir este jogo de desabafo de ostentações e bens materiais, tendo plena noção de que mesmo coberto de Gucci ou Rick Owens, um corte profundo vai sempre manchar a superfície que o cobre. Também não deixa de ser real.
Há uma honestidade crua nisto que revela coragem tamanha e invoco também aqui a música “Autoestima” do artista brasileiro Baco Exu do Blues como exemplo, com versos como: “Diamantes nas correntes pra ofuscar nossa dor”, “Pago dez mil nesse tênis, tô pisando na dor”, “Essa roupa é cara, foda-se, compra, quero esconder minha dor” ou “Nada disso consegue me tirar essa dor/Estando onde tô, não sinto direito de sentir essa dor”.
Um desabafo “mascarado” é, para todos os efeitos, um desabafo, e mantém-se complexo à sua maneira. Um flex pode ser só um flex.
Cada um se refugia no que tem mais próximo, mas é importante não esquecer que poder acompanhar a evolução do processo, ao vivo e em canal aberto, seja de forma pomposa ou em carne viva, é um privilégio reservado a quem decide prestar atenção.
Fonte: https://comunidadeculturaearte.com/the-pilot-de-mavi-como-nao-impor-limites-ao-voo-de-um-artista/
