DAVI MOLINARI
Cheguei atrasado.
Atrasado no tempo, no afeto e, desconfio agora, na ordem simbólica das coisas. O Fale Mais Sobre Isso estava lotado como um Congresso em véspera de pauta-bomba. Gente dentro, gente fora, mesas comprimidas, copos suados, vozes sobrepostas. Um território suíço em plena guerra — ali se discutia de tudo: da última ameaça da família Bolsonaro à soberania nacional, da esquadra trumpista no paraíso caribenho à tentativa de transformar o STF em refém e o Congresso em cúmplice.
Foi então que vi o Doutor. De longe.
Pior: vi o Doutor antes de ele me ver.
Estava na minha mesa, sentado sozinho, mas gozava da companhia de dois casais, na mesa ao lado, com quem interagia com o corpo inclinado, olhos vivos, sobrancelhas coreografadas, um meio sorriso cúmplice. O bloquinho repousava esquecido no bolso. Traição simbólica. Senti um incômodo primitivo subir do estômago. Um ciúme besta, infantil, absolutamente indigno de alguém que sequer paga a sessão.
Antes que eu pudesse elaborar o complexo, Juvenal surgiu como um diplomata da ONU em zona de conflito. Abriu passagem entre corpos, cadeiras e opiniões inflamadas.
— Licença, licença… paciente atrasado é prioridade terapêutica, anunciou, com a autoridade de quem carrega uma bandeja invisível.
Atravessamos o mar humano. Enquanto eu me aproximava, Juvenal não perdeu a chance:
— Doutor já estava achando que o senhor tinha desistido da análise e aderido à pauta da sem-vergonhice geral.
O Doutor respondeu apenas com um levantar de sobrancelha — ainda meio voltado aos casais, confesso — o que me feriu mais que um silêncio clínico bem aplicado.
A mesa ao redor fervia. A palavra da noite já tinha sido antecipada por Juvenal: era sem-vergonhice. Hugo Motta, PL da dosimetria, Michele, Flávio Bolsonaro, Rodrigo Bacellar, Macário Júdice Neto e outros desembargadores comerciantes de sentenças. Um cliente vociferava que vergonha tinha virado artigo de luxo.
Sentei. Suspirei. Confessei.
— Doutor… me desculpa o atraso. Estou envergonhado.
Usei o verbo no presente, como quem oferece uma prova viva de sanidade psíquica. Juvenal pousou a mão no meu ombro, conciliador:
— Atraso, meu amigo, nem sempre é ato falho. Às vezes é só sinal vital.
O Doutor finalmente virou o corpo inteiro para mim. Os trejeitos de desdém evaporaram. O olhar agora era clínico, curioso, quase faminto. A caneta surgiu. O bloquinho também. Lá estava eu, de novo, sob observação.
Expliquei: fim de ano, trabalho acumulado, correria, prazos, festas que ninguém quer ir mas todo mundo aceita. Lamentei. Arrisquei:
— Ainda dá tempo de uma rodada de chope com o senhor?
Nem terminei a frase. Juvenal teletransportou a bandeja: chopes cremosos, reluzentes, e uma porção divina de manjubinhas crocantes. O combo dos deuses. O Doutor fez um gesto mínimo de resignação.
— Não foi ato falho — insisti. — Eu realmente fiquei constrangido.
E aí engrenei. Falei da vergonha como afeto civilizatório que, na psicanálise, protege e regula a exposição do eu ao olhar do outro. Que sua ausência pode ser uma falha narcísica ou uma defesa contra a vulnerabilidade. E completei: é uma emoção social, freio de comportamento grupal; sem ela, a empatia evapora. Já se for sintoma de narcisismo patológico, com personalidade antissocial, só tratamento psiquiátrico resolve.
Juvenal, secando um copo, entrou com erudição inesperada:
— Fernando Pessoa sabia disso. Ou melhor, Álvaro de Campos. Até pra falar de vergonha usava máscara. Não por pudor, mas por vaidade. “Nunca conheci quem tivesse levado porrada”… todo mundo posa de invicto, mas só porque ninguém confessa a surra.
Sorri. Aquilo era exatamente o ponto.— A Magnitsky caiu, o tarifaço evapora, mas eles não desistem, disse.
Engatei no PL da dosimetria. Disse que ali não havia culpa nem vergonha. Era desinibição institucional. Bolsonaristas agindo como pacientes sem o freio simbólico: negam o olhar público, ignoram consequências, transformam privilégio em virtude. Um narcisismo coletivo, empolado, incapaz de reconhecer limites éticos. Psicologicamente, um grupo sem regulação. Psiquiatricamente, um surto de desinibição com quórum qualificado.
O Doutor anotava. Silencioso. Grave. Tudo observado por ele, como sempre, com a paciência de quem sabe que sintomas falam mais alto que discursos.
Então, no clímax exato, ele fechou o bloquinho. Levantou os olhos. E disse sua única frase da noite:
— Uma sociedade sem vergonha não perde só o limite — ela perde a dignidade.
Silêncio breve. Denso.
Juvenal quebrou, como só ele sabe:
— E quando a dignidade some, meu amigo, nem a manjubinha salva.
Publicado originalmente em Divã no Boteco – LXI. Enviado pelo autor.
Fonte: https://horadopovo.com.br/a-patologia-da-falta-de-vergonha/
