10 de dezembro de 2025
acesso a medicamentos, democracia e a disputa ética no Brasil
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RONALD FERREIRA DOS SANTOS
Farmacêutico M.Sc.
Ex-Presidente do Conselho Nacional de Saúde
Ex-Presidente da Federação Nacional dos Farmacêuticos

Uma trajetória de luta pela saúde como direito

Minha trajetória, desde os 11 anos entre medicamentos até a presidência do Conselho Nacional de Saúde, foi uma cartografia das lutas pela saúde pública no Brasil. Cada espaço — do movimento estudantil na UFSC aos conselhos de saúde, das campanhas pelo genérico à defesa da Farmácia Popular — evidenciou um eixo central: o conflito permanente entre a vida, elevada a direito pela Constituição, e a lógica do capital, que transforma saúde e conhecimento em mercadoria. Marcos como a Lei 13.021/14, que define a farmácia como estabelecimento de saúde, e a Política Nacional de Assistência Farmacêutica foram vitórias frágeis, constantemente sob cerco. Este artigo analisa o atual estágio dessa disputa, tomando a ética em pesquisa com seres humanos e o esvaziamento da democracia como expressões sintomáticas da ofensiva capitalista, que ameaça converter conquistas históricas em instrumentos de acumulação privada.

A fragilização da democracia: ataques à participação social, autoritarismo crescente e a tentativa de ruptura constitucional

A ofensiva contra a democracia brasileira, que fornece o contexto para o cerco aos direitos à saúde, se materializou em três frentes interligadas e perversas: o estrangulamento sistemático dos canais de participação social, a naturalização do autoritarismo nas relações sociais e, como ápice, a tentativa explícita de golpe de Estado em 2023, que buscou romper o próprio Estado Democrático de Direito. Este não foi um declínio passivo, mas um ataque ativo às bases da Constituição Cidadã.

1. O cerco à participação social e ao controle público

A democracia brasileira, desde a redemocratização, construiu uma arquitetura ímpar de participação social através de conselhos e conferências nacionais. Estes não eram meros fóruns consultivos, mas espaços de corresponsabilização política onde a sociedade civil, movimentos sociais e usuários do SUS incidiam diretamente na formulação e fiscalização de políticas públicas. A ofensiva contra esses espaços foi metódica: asfixia orçamentária que inviabilizou a realização de conferências, esvaziamento político de conselhos através da nomeação de representantes alinhados ao governo de plantão e desconsideração de suas deliberações, e reformas administrativas que buscaram transformar carreiras técnicas do Estado em cargos de confiança, politizando e fragilizando a expertise pública. O Conselho Nacional de Saúde (CNS), como principal instância de controle social do SUS, viveu sob constante tensão, com tentativas de deslegitimação de suas resoluções e de sua própria composição. O objetivo era claro: silenciar a voz organizada da população e retirar da saúde seu caráter de direito, devolvendo-a à esfera privada da mercadoria.

2. O recrudescimento do autoritarismo nas relações sociais

Paralelamente, uma cultura política de intolerância e antagonismo foi sendo fomentada e normalizada, corroendo o tecido social necessário para uma democracia saudável. Esse autoritarismo se manifestou no aumento da violência política, incluindo assassinatos como os de Marielle Franco e de militantes sem-terra; no discurso de ódio e na perseguição contra minorias, indígenas, quilombolas e a população LGBTQIA+; e na criminalização de movimentos sociais e de defensores de direitos humanos. Nas instituições, viu-se o crescimento de um punitivismo penal seletivo, a judicialização da política e a politização da justiça. Esse clima criou um ambiente hostil à participação cidadã, onde o medo e a polarização tóxica substituíram o debate e a busca de consenso. A saúde pública, com seu princípio de universalidade e equidade, tornou-se um alvo privilegiado desse discurso, atacada como “assistencialista” ou “ineficiente” por setores que defendem sua total mercantilização.

3. A tentativa de golpe e o ataque às instituições

O episódio dos ataques às sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023 foi a expressão máxima e violenta dessa escalada autoritária. Não foi um protesto espontâneo, mas o clímax de um movimento constante de descredibilização das instituições, do processo eleitoral e da imprensa, alimentado por mentiras e teorias da conspiração de alcance estatal. A tentativa de invadir e depredar o Congresso Nacional, o Palácio do Planalto e o Supremo Tribunal Federal teve um objetivo declarado: forçar uma intervenção militar e derrubar o governo democraticamente eleito. Foi uma tentativa de ruptura ilegal e violenta da ordem constitucional, um golpe de Estado. Apesar de fracassado em seu objetivo imediato, o episódio deixou cicatrizes profundas e demonstrou a vulnerabilidade do sistema. Ele mostrou como setores do capital, aliados a milícias digitais e a parcelas das forças armadas e de segurança, estavam dispostos a rasgar a Constituição para impor seu projeto de poder, um projeto inerentemente antagônico aos direitos sociais e à participação popular que alicerçam o SUS.

4. A democracia sob cerco é a saúde sob ameaça

Esses três vetores— o esvaziamento da participação, a normalização do autoritarismo e a tentativa de golpe — formam um círculo vicioso que debilita fatalmente a democracia. Uma democracia frágil, onde a voz do povo é calada e as instituições são atacadas, é o terreno fértil para que o capital desmonte conquistas sociais. O ataque ao Estado Democrático de Direito é, portanto, um ataque direto ao Sistema Único de Saúde. Sem democracia robusta e participativa, não há controle social. Sem controle social, o princípio constitucional da saúde como direito se esvai, e o medicamento, a atenção e o conhecimento científico se convertem definitivamente em commodities. Defender a democracia radical, com participação popular efetiva, não é uma pauta paralela à defesa da saúde; é a condição fundamental para garantir que a vida continue a dominar o capital. A luta pela ética em pesquisa e pelo acesso universal aos medicamentos é, inseparavelmente, uma luta pela sobrevivência da democracia brasileira.

O campo de batalha da pesquisa clínica: entre o acesso e a exploração

A recente regulamentação da Lei da Pesquisa Clínica (Lei nº 14.874/2024) coloca em relevo a contradição central entre o acesso a medicamentos e a proteção dos sujeitos de pesquisa. A legislação é apresentada como um marco para o desenvolvimento científico, com o potencial de elevar o Brasil da 20ª para a 10ª posição no ranking global de estudos clínicos, gerando bilhões em impacto econômico e milhares de empregos. No entanto, essa narrativa de progresso esconde tensões fundamentais:

  • Finalidade do Conhecimento: O discurso oficial e da indústria celebra a atração de investimentos e a segurança jurídica. Contudo, a questão é: o conhecimento gerado servirá prioritariamente para acumulação de capital ou para atender às necessidades de saúde pública definidas pelo SUS? O risco é a comoditização dos corpos brasileiros, transformados em um vasto campo de testes para mercados globais.
  • Controle Ético e Soberania: A regulamentação deixa em aberto prazos críticos, como a transição para o Sistema Nacional de Ética em Pesquisa (SINEP) e a substituição da Plataforma Brasil. A indefinição mantém um sistema fragmentado e pode enfraquecer o papel orientador da Resolução CNS 510, que coloca os interesses dos participantes acima dos objetivos da pesquisa. A Resolução CNS 588, que trata da releitura crítica das normas, é um instrumento vital de resistência a esse risco.
  • Acesso Pós-Pesquisa: A priorização ética para medicamentos com produção local, questionada pela indústria, é exatamente o tipo de mecanismo que vincula pesquisa a soberania sanitária. Sem tais contrapesos, repete-se o histórico de o país servir como locus de testes para produtos que, após a aprovação, permanecem inacessíveis à população devido a preços elevados e patentes.

Esta é a materialização do “estado do capital” na saúde: um arcabouço legal que, sob o pretexto da inovação e do crescimento econômico, pode subordinar a proteção de indivíduos e o interesse público à lógica do mercado.

Parcerias estratégicas e mediação estatal: a indústria como agente de soberania sanitária

A análise do conflito entre vida e capital não pode reduzir-se a uma simplificação maniqueísta. A indústria farmacêutica, com seu poder de inovação, escala produtiva e complexa cadeia logística, é um ator estruturante para a garantia do direito à saúde. A contradição central, portanto, não reside na existência do setor privado, mas na finalidade social de sua operação. O desafio histórico e político para o Brasil tem sido mediar a potência do capital industrial, subordinando-o aos imperativos da saúde pública e da soberania nacional. Longe de uma relação de vilania ou salvadorismo, é na construção de instrumentos de mediação estatal inteligentes e coercitivos que se forjam as condições para transformar capacidades industriais em ferramentas de proteção da vida.

A experiência brasileira acumulada nas últimas décadas oferece um repertório concreto de como essa mediação pode operar. Trata-se de uma arquitetura de políticas públicas que busca conciliar incentivos econômicos com contrapartidas sociais rígidas, canalizando o dinamismo do mercado para objetivos nacionais estratégicos.

Esses instrumentos demonstram que é possível e necessário estabelecer uma relação de negociação e contenda produtiva com o capital industrial. A pandemia de COVID-19 foi um aprendizado trágico e inequívoco: a dependência externa de insumos e medicamentos é uma falha estratégica inaceitável para um sistema de saúde universal. Ter uma indústria local forte e inovadora é, antes de tudo, uma questão de segurança nacional e de preservação da vida.

O desafio da inovação e da equidade

A indústria é a principal geradora da inovação farmacêutica global que, entre 2020 e 2024, lançou quase 400 novas substâncias ativas, revolucionando o tratamento do câncer, doenças raras e crônicas. No entanto, o acesso a essas inovações é marcado por profunda desigualdade: enquanto os EUA e Europa lançam centenas de novos medicamentos, mercados como o brasileiro enfrentam um “hiato de acesso” que pode levar anos para ser superado. Aqui, a mediação estatal é dupla: deve estimular a chegada e a produção local de inovações (via PDPs, desoneração tributária para biotecnológicos), ao mesmo tempo em que regula os preços e garante a sustentabilidade financeira do SUS. A política de genéricos e a recente regulação para biossimilares são exemplos de como a concorrência regulada pode expandir o acesso a terapias avançadas.

A indústria como território de disputa

Portanto, o setor farmacêutico não deve ser visto como um bloco monolítico de oposição à vida, mas como um território crucial de disputa política. Nele, o Estado democrático deve atuar com dois movimentos simultâneos: como indutor do desenvolvimento (criando condições para investimento e inovação local) e como guardião inflexível do interesse público (exigindo contrapartidas em acesso, preço e transferência de tecnologia).

A consolidação de uma indústria farmacêutica brasileira robusta, ética e alinhada às necessidades do SUS não é uma concessão ao capital, mas um pilar fundamental da soberania sanitária. É a materialização do entendimento de que, no combate histórico pela primazia da vida, é estratégico dominar as ferramentas produtivas e científicas, convertendo parte da lógica do capital em força motriz para a garantia de um direito social fundamental. A luta política, nesse campo, se dá precisamente na capacidade de forjar e fortalecer diariamente esses instrumentos de mediação, garantindo que a potência da indústria sirva, de fato, à proteção da vida de todos os brasileiros.

A luta política como ferramenta de edificação

As contradições na pesquisa clínica e o retrocesso democrático são faces da mesma moeda. A fragilização da democracia retira do povo — conselhos, conferências e participação social — a condução política da saúde. Paralelamente, a apropriação do conhecimento científico busca convertê-lo de um bem comum em um instrumento de reprodução do capital. Esse movimento ameaça desfigurar conquistas como o SUS, os genéricos e a Política Nacional de Medicamentos.

A história mostra, desde os debates da Constituição de 1824, que o Brasil acumula experiência nessa luta. Localizar a contradição central é imperativo: a saúde é um direito, e o medicamento, um instrumento garantidor. Portanto, o combate pela ética em pesquisa não é tecnicista; é um combate pelo controle social do conhecimento, para que a vida, e não o lucro, seja o fim último da ciência. As Resoluções do CNS, a Lei 13.021/14 e a própria existência do SUS são trincheiras construídas por séculos de luta política. Elas evidenciam que é apenas através da organização e da pressão popular, da reivindicação intransigente da democracia radical e da função social do Estado, que se poderá forjar, a partir das contradições do atual estado do capital, um novo estado onde a vida finalmente prevaleça. A ferramenta para essa edificação segue sendo, e sempre será, a luta política.

Fonte: https://horadopovo.com.br/a-vida-e-o-capital-acesso-a-medicamentos-democracia-e-a-disputa-etica-no-brasil/