16 de agosto de 2025
Brasil sofre epidemia de cidadãos de bem: protejam as crianças!
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DAVI MOLINARI

Cheguei ao Fale Mais Sobre Isso e dei de cara com Juvenal empoleirado numa escada, esticando o braço como um Cristo Redentor de boteco, mas, em vez de bênção, pendurava uma faixa que gritava:

Cidadãos de bem não são bem-vindos.”

Era poesia ou boletim de ocorrência. O Doutor, como sempre, observava em silêncio, um monge budista que já decifrara o passado, o presente e o futuro daquela tragicomédia brasileira. Segurei a escada, já prevendo o sermão:

— Que foi, Juvenal? Faixa nova, promoção de manjubinhas?

Ele desceu, suado, cuspindo indignação:

— Um empresário, desses que se dizem “cidadãos de bem”, usou a arma da mulher — uma delegada — pra matar um gari. Motivo? O caminhão de lixo atrapalhava o carro dele. E o Laranja, nosso vizinho, achou que seria uma boa ideia trazer o assassino pra tomar uma Brahma aqui. Tive que agir.

O Doutor rabiscou algo no bloquinho, impassível. Juvenal, servindo uma porção de manjubinhas, completou:

— Aqui não tem mesa pra fascista fantasiado de patriota.

Sentei ao lado do Doutor, enquanto o cheiro de fritura pairava como um manifesto.

— O senhor percebe a ironia, né? O “cidadão de bem” no Brasil é quase uma categoria psiquiátrica. Pais de família, cristãos, defensores da moral — mas são os mesmos que batem em mulher, abusam de criança, atiram em briga de trânsito e conspiram contra a própria pátria. Uma escuderia fascista de boteco, com porte de arma e carteirinha da OAB.

Juvenal trouxe mais chope; a espuma transbordava como catarse. Continuei:

— É a Teoria do Espelho, Doutor. Eles projetam nos outros a sujeira que carregam. Chamam o gari de “imundo” quando são eles os podres. Netanyahu bombardeia civis em Gaza e se diz defensor da democracia. O empresário mineiro, cristão e patriota, mata um trabalhador como se fosse lixo. O Bananinha foge pros EUA e pede sanções contra o Brasil em nome da liberdade. Até o desembargador aposentado, condenado por estuprar a neta, se apresentava como “exemplo de cidadão de bem”.

Juvenal engasgou com a própria raiva.

— Entende, Doutor? Esse espelho é estilhaçado. Cada caco reflete um ódio projetado, um desejo recalcado. Quanto mais se agarram à máscara de puros, mais violentos ficam contra quem ameaça essa fantasia. É uma patologia social.

O Doutor ergueu os olhos do bloquinho, o silêncio pesando como sentença. Mas, antes que ele pudesse falar, a voz do clone de Trump cortou o ar como um estrondo. Lá estava o Laranja, vermelho de raiva, com um policial ao lado.

— Juvenal, tira essa faixa agora! — berrou o Laranja. — O cara é meu amigo, cidadão de bem, e tem direito de tomar uma cerveja aqui!

O policial, um sujeito corpulento chamado Sargento Almeida, amigo de longa data do Laranja, coçou a nuca, visivelmente desconfortável. Juvenal cruzou os braços, irredutível.

— Aqui não, Laranja. Não enquanto ele achar que matar um gari é defesa da honra.

A tensão cresceu. Os clientes pararam de mastigar, os copos ficaram suspensos. O Doutor, sereno, anotava. Então, o Sargento, com um suspiro, puxou o Laranja para o canto e murmurou algo. Depois de uma breve troca de olhares, o Laranja bufou, mas cedeu.

— Tá bom, Almeida — disse o Laranja. E, virando-se para o Juvenal, emendou:

— Eu vou para outro boteco, mas pelo menos me dá uma porção de manjubinhas pra viagem. De graça, que eu sei que você deve pra mim.

Juvenal, com um sorriso torto, jogou as manjubinhas numa embalagem de isopor. O Laranja saiu com o Sargento, a faixa ficou, e o bar voltou a respirar.

Sentei-me novamente, o Doutor ainda rabiscando.

— O que o senhor acha disso tudo? — perguntei.

Ele fechou o bloquinho, tomou um gole de chope e disse:

— O problema do cidadão de bem é que ele nunca se olha no espelho sem máscara. O pior é que, às vezes, até o espelho acredita na mentira.

Juvenal riu, como se fosse gol do Brasil na final da Copa. Eu, porém, não ri. Nem brindei. Apenas encarei meu reflexo no copo vazio e tive a impressão incômoda de que o espelho já começava a acreditar em mim também.

Publicado originalmente em Divã no Boteco.

Fonte: https://horadopovo.com.br/brasil-sofre-epidemia-de-cidadaos-de-bem-protejam-as-criancas/