A Cúpula dos Povos encerrou neste domingo (16) com a divulgação de uma carta final que atribui ao modo de produção capitalista a responsabilidade central pelo agravamento da crise climática global, apontando que a atual estrutura econômica privilegia lucro privado, desigualdade territorial e exploração de recursos naturais, colocando populações vulneráveis na linha de frente dos impactos ambientais, sanitários e humanitários.
O documento, construído após cinco dias de debates com movimentos sociais, organizações civis e povos tradicionais, também reivindica demarcação de territórios, reforma agrária, financiamento público para uma transição justa, taxação das grandes fortunas, e o fim dos combustíveis fósseis e das guerras — medidas descritas como condições mínimas para viabilizar um futuro comum.
A carta pública, apresentada diante de milhares de participantes e entregue ao presidente da COP30, André Corrêa do Lago, afirma que o planeta vive uma ruptura civilizatória produzida pela combinação entre desigualdade, devastação ambiental e desresponsabilização política global. O texto denuncia o que chama de “falsas soluções” sustentadas por discursos tecnocráticos, mecanismos de mercado e projetos privados que, segundo os signatários, “priorizam o lucro e a acumulação privada de riquezas” em detrimento da vida terrestre e da diversidade humana e não-humana.
Segundo o documento, as respostas oficiais da comunidade internacional têm sido insuficientes, lentas e desconectadas das realidades dos povos que enfrentam diretamente o colapso climático: moradores de áreas periféricas, comunidades insulares, ribeirinhos, quilombolas, pescadores, indígenas, agricultores familiares, extrativistas e populações refugiadas por eventos extremos.
A carta reforça que “nossa visão de mundo está orientada pelo internacionalismo popular, com intercâmbios de conhecimentos e saberes, que constroem laços de solidariedade, lutas e de cooperação entre nossos povos”, ao mesmo tempo em que convoca “o compromisso de estimular, convocar e fortalecer essas construções” como base real de transformação.
A crítica central é que o capitalismo constitui a infraestrutura ideológica, econômica e militar da destruição ambiental. As empresas multinacionais ligadas aos setores de mineração, tecnologia, energia, agronegócio e indústria bélica são protagonistas da catástrofe climática em curso, intensificando desigualdades e consolidando o que a carta chama de racismo ambiental.
A carta afirma que não existe transição climática sem redistribuição, e que qualquer política baseada em mercado, compensação financeira, créditos de carbono ou soluções unilaterais “solapa o protagonismo dos povos e transforma o planeta em ativo financeiro”.
Entre as reivindicações estruturais, o texto defende:
- Demarcação imediata de territórios indígenas e tradicionais
- Reforma agrária e fortalecimento da agroecologia
- Fim dos combustíveis fósseis e rejeição a novos empreendimentos petrolíferos
- Financiamento público para transição justa
- Taxação de corporações, agronegócio e super-ricos
- Fim das guerras e desmilitarização global
A carta afirma ainda: “Cobramos que haja participação e protagonismo dos povos na construção de soluções climáticas, reconhecendo os saberes ancestrais”, argumentando que o conhecimento científico não pode operar isolado de cosmovisões tradicionais, espirituais, comunitárias e territoriais.
Guerra, colonialismo e solidariedade internacional
O documento dedica parte expressiva a análises geopolíticas, associando conflitos armados contemporâneos à disputa por energia, minérios, terras, águas e territórios estratégicos. O texto repudia “o genocídio praticado contra a Palestina”, denuncia bombardeios, deslocamentos forçados, morte de civis e declara solidariedade à resistência palestina e ao movimento internacional BDS — Boicote, Desinvestimento e Sanções. O texto também rejeita a prática de intervenções militares unilaterais promovidas pelo Ocidente, citando como exemplo a ação dos Estados Unidos no mar do Caribe, qualificada como instrumento de ameaça imperialista.
Além da Palestina, a carta menciona diretamente solidariedade às populações e movimentos da Venezuela, Cuba, Haiti, Equador, Panamá, Colômbia, El Salvador, República Democrática do Congo, Moçambique, Nigéria, Sudão, Sahel e Nepal, vinculando suas lutas a um eixo global de emancipação coletiva.
A Cúpula dos Povos também se materializou como corpo político nas ruas, com atos, cortejos, intervenções artísticas, marchas e banquetaços comunitários em espaços públicos de Belém. No encerramento, a praça foi ocupada por cozinhas solidárias e apresentações culturais, numa celebração descrita como síntese entre política, ancestralidade, espiritualidade e cuidado.
No sábado (15), cerca de 70 mil pessoas participaram da Marcha Mundial pelo Clima, percorrendo 4,5 km desde o Mercado de São Brás até a Aldeia Cabana, sob forte calor amazônico. Máscaras de Chico Mendes e Raoni, alegorias do Boitatá, carros de som com discursos, carimbó e brega compuseram uma estética orgânica entre luta e identidade regional. A marcha foi apoiada por representantes de todos os continentes e movimentos de diversas matrizes — indígenas, periféricos, camponeses, ribeirinhos e juventudes urbanas.
O encerramento foi marcado pela fala do cacique Raoni Metuktire, referência mundial e guardião histórico da Amazônia. Em discurso emocionado, ele afirmou: “Há muito tempo, eu vinha alertando sobre o problema que, hoje, nós estamos passando, de mudanças climáticas, de guerras.”
Raoni afirmou que a luta não pode ser interrompida: “Mais uma vez, peço a todos que possamos dar continuidade a essa missão de poder defender a vida da Terra, do planeta. Eu quero que tenhamos essa continuidade de luta, para que possamos lutar contra aqueles que querem o mal, que querem destruir a nossa terra.”
Em apelo final, disse: “Há muito tempo, eu venho falando para que possamos ter respeito um com o outro e possamos viver em paz nessa terra.”
A Cúpula também foi marcada pela presença institucional da Igreja Católica. Segundo dom José Valdeci Santos Mendes, “é luta pelo território livre dos povos, é luta pela dignidade, é luta pelo direito, é luta para que a justiça social, a justiça socioambiental seja de fato realizada no nosso meio.”
Ele reforçou que o enfrentamento exige humildade histórica e reposicionamento ético: “A Igreja católica precisa ouvir mais as comunidades tradicionais, os povos originários e aprender também, ter essa humildade de aprender, para que, de fato, possa cumprir o seu papel e testemunhar Cristo.”
Dom Valdeci concluiu pedindo compromisso permanente: “Precisamos assumir cada vez mais, ouvindo o grito de tantos irmãos e irmãs, que ainda hoje são torturados, são marginalizados.”
Fonte: https://horadopovo.com.br/cupula-dos-povos-lanca-manifesto-por-justica-climatica-e-defesa-da-soberania/
