Haroldo Costa morreu no sábado, 13, no Rio de Janeiro, aos 95 anos. Ator, escritor, jornalista, produtor cultural, diretor de rádio e televisão e um dos maiores intelectuais do samba e da cultura negra brasileira, sua trajetória se confunde com a própria história da afirmação política e cultural do povo negro no Brasil. A morte foi confirmada pela família nas redes sociais.
Nascido em 13 de maio de 1930, no bairro de Piedade, na Zona Norte do Rio de Janeiro, Haroldo era filho de Eurides e Luiz Costa. Órfão de mãe aos dois anos de idade, passou parte da infância em Maceió, em Alagoas, onde o contato com o calendário festivo e o folclore local teve papel decisivo na formação de seu olhar artístico. Ainda menino, retornou ao Rio, onde se aproximou do teatro, do rádio e do carnaval — paixões que atravessariam toda a sua vida.
Antes de iniciar a carreira artística, trabalhou como balconista de livraria. A entrada nos palcos ocorreu quase por acaso, no Teatro Experimental do Negro (TEN), companhia fundada por Abdias do Nascimento. Inicialmente convidado a colaborar com a alfabetização de adultos, acabou substituindo um ator ausente durante um ensaio e assumiu o papel de Peregrino em O Filho Pródigo, de Lúcia Cardoso. A experiência marcou o início de uma trajetória central para o teatro brasileiro, com participações em montagens como O Pagador de Promessas, Xica da Silva, O Auto da Compadecida, Orfeu do Carnaval e Orfeu da Conceição.
Em 1956, Haroldo protagonizou Orfeu da Conceição, de Vinicius de Moraes, no Theatro Municipal do Rio de Janeiro, tornando-se o primeiro ator negro a ocupar o palco da casa em um espetáculo histórico. A montagem inaugurou a parceria entre Vinicius e Antonio Carlos Jobim, contou com cenários de Oscar Niemeyer e cartaz de Carlos Scliar, e consolidou Haroldo como símbolo de uma virada estética e política no teatro nacional. O feito lhe rendeu o reconhecimento como o grande “Orfeu Negro” do Rio.
Na virada da década de 1950, foi um dos fundadores do grupo que viria a se chamar Brasiliana, a primeira companhia nacional de danças folclóricas. Como fundador, diretor artístico e bailarino, percorreu por cerca de cinco anos mais de 25 países da América do Sul e da Europa, divulgando a cultura popular brasileira no exterior. A experiência foi posteriormente destacada na mostra Haroldo Costa – Samba & Outras Coisas, realizada pelo Sesi em 2011.

A partir dos anos 1960, Haroldo ampliou sua atuação para os meios de comunicação. Trabalhou na Rádio MEC, na Mayrink Veiga e na televisão, onde dirigiu e produziu programas como Balcão Nobre, Estampas Brasileiras, Mosaico Panamericano, Discoteca do Chacrinha, Musicalíssima, Oh, Que Delícia de Show, Dercy Espetacular e Concertos para a Juventude. Também atuou como comentarista dos desfiles das escolas de samba, tornando-se referência nacional na leitura estética e histórica do carnaval.
Na televisão de dramaturgia, integrou o elenco de novelas da Rede Manchete, como Kananga do Japão, A História de Ana Raio e Zé Trovão e Amazônia. Na TV Globo, participou das minisséries Chiquinha Gonzaga e Subúrbia. No cinema, dirigiu Pista de Grama, em 1958, tornando-se o primeiro negro a dirigir um longa-metragem no Brasil.
Como escritor, publicou seu primeiro livro em 1982, Fala, crioulo – O que é ser negro no Brasil, obra construída a partir de depoimentos que confrontavam o mito da democracia racial no país, logo após a extinção do AI-5. Ao longo da vida, escreveu 15 livros, muitos deles dedicados ao samba, ao carnaval e à memória cultural negra. Entre as principais obras estão Salgueiro: Academia do Samba (1984), Salgueiro – 50 Anos de Glória, 100 Anos de Carnaval no Rio de Janeiro (2001), Na cadência do samba e Ernesto Nazareth – Pianeiro do Brasil.
Salgueirense desde 1963, Haroldo manteve uma relação orgânica com a escola de samba. Foi presidente de honra do júri do Estandarte de Ouro, integrou o corpo de jurados da Liga Independente das Escolas de Samba (Liesa) e se tornou uma das maiores autoridades do carnaval carioca, defendendo o samba como patrimônio cultural, político e identitário do povo negro brasileiro.
Mesmo em idade avançada, manteve intensa atividade intelectual. Em 2023, foi um dos curadores da exposição Heitor dos Prazeres é meu nome, no CCBB, e em 2025 integrou o time de autores do livro Pra tudo se acabar na quarta-feira. Até os últimos meses de vida, concedeu entrevistas e participou de debates sobre cultura, carnaval e memória, reafirmando a militância antirracista como eixo central de sua produção.

A morte de Haroldo Costa provocou manifestações de pesar em diferentes campos. O Ministério da Igualdade Racial afirmou que o Brasil perdeu “um dos seus mais ilustres artistas” e destacou sua trajetória como “fundamental” para a luta antirracista e para a valorização da cultura afro-brasileira. A deputada Benedita da Silva (PT-RJ) definiu Haroldo como referência absoluta do samba, do carnaval e da intelectualidade negra, afirmando que “sua obra, sua voz e sua luta permanecem vivas”.
O jornalista e radialista Rubem Confete o descreveu como “um grande pensador, pesquisador, ator e roteirista que deixa um legado e enorme trabalho em prol da cultura afro-brasileira”. A historiadora Lilia Schwarcz afirmou que Haroldo foi uma figura central da intelectualidade negra e brasileira. O escritor Nei Lopes destacou que ele foi o primeiro negro a dirigir um longa-metragem no país, lembrando Pista de Grama, e afirmou que “a morada eterna dos negros elegantes ganhou mais um membro do primeiro time”.
O prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, declarou que Haroldo dedicou a vida ao samba e ao carnaval “com dignidade e profundo amor pelo povo do samba”, enquanto o governador Cláudio Castro o definiu como um mestre “que ajudou gerações a compreender a grandiosidade dos desfiles, dos sambas-enredo e da identidade do nosso povo”.
Em nota, o Acadêmicos do Salgueiro afirmou que Haroldo Costa foi “muito mais do que um intelectual”, descrevendo-o como “memória viva, guardião da nossa história e voz firme na defesa do samba, do carnaval e da cultura afro-brasileira”, e acrescentou que ele “foi, é e sempre será nosso Orfeu Negro”.
Haroldo Costa morreu na Casa de Saúde São João de Deus, em Santa Teresa, em decorrência de complicações de pneumonia e infecção urinária. Deixa a viúva, Mary Marinho. O velório e o sepultamento ocorrem nesta segunda-feira, 15, no Cemitério São Francisco Xavier, no Caju.
Ao longo de nove décadas e meia, Haroldo Costa construiu uma obra que recusou a invisibilidade, enfrentou o racismo estrutural e transformou o samba, o teatro e o carnaval em ferramentas de memória, identidade e política. Seu legado permanece como referência incontornável da cultura brasileira.
Fonte: https://horadopovo.com.br/haroldo-costa-icone-do-teatro-do-samba-e-da-cultura-brasileira/
