1 de novembro de 2025
O Complexo do Laranja e a Histeria Social
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DAVI MOLINARI

Voltei de Brasília direto para o Fale Mais Sobre Isso, com a alma espremida entre o cansaço e o noticiário. Ainda dava pra sentir o cheiro de plenário e café requentado na roupa. E bastou abrir a porta do boteco pra perceber que o ar ali estava mais pesado do que sessão do STF em véspera de anistia.

De um lado, o pequeno grupo do Laranja — nosso Trump tropical, vizinho exaltado e dono do cachorro Messias, aquele que só é manso quando está trancado no canil — comemorava com palmas e assobios as imagens dos corpos na praça, exibidas na TV. Do outro, jovens universitários e alguns jornalistas olhavam estarrecidos, entre indignação e impotência. O Fale Mais Sobre Isso, que sempre foi território neutro — uma Suíça etílica, um enclave do inconsciente coletivo — virou um campo de batalha simbólico.

O Doutor já me esperava, como sempre, na mesma mesa, na mesma pose enigmática, tomando notas invisíveis no guardanapo. Tinha aquele olhar de quem vê o caos como matéria-prima. Me sentei em frente a ele, tentando disfarçar que minha sessão de terapia agora era bancada pela happy hour.

Juvenal, nosso garçom com alma de analista junguiano, chegou com o combo dos deuses — manjubinha crocante, chope cremoso e a serenidade de quem já entendeu o Brasil melhor que muito antes dos brasilianistas. Limpou o balcão com o pano úmido e disse, com a voz embargada:

— Doutor, eu não posso concordar com o que fizeram e com o modo que fizeram. Por que a vida dessas pessoas não vale nada?

O silêncio tomou a mesa. Eu não sabia por onde começar a sessão informal. Foi quando a palavra escapou da minha boca como um sintoma de angústia:

— Complexo, Doutor. É tudo tão… complexo.

O Doutor levantou a sobrancelha direita, num arco perfeito de interrogação silenciosa, como se perguntasse: Complexo de quê, meu caro?

— Boa pergunta, Doutor. A palavra vem do latim complexus, que significa “entrelaçado”. Jung dizia que um complexo é um conjunto de ideias e emoções inconscientes que giram em torno de um tema afetivo. E me diga: o que é essa reação do Laranja e do seu grupinho senão um gigantesco Complexo Social, desses que nem Freud daria conta com charuto e tudo?

O Doutor, então, tirou o indefectível bloquinho do bolso e rabiscou algo que consegui decifrar: necessidade de atenção. Culpa escondida. Sensação de impotência social.

— É isso, Doutor! — continuei, gesticulando com o copo. — O que leva as pessoas a aplaudirem a morte? É um surto de histeria coletiva, uma forma de aliviar o peso da própria impotência. Eles aliviam a culpa do conforto projetando o mal no outro. Querem purificar o mundo sem limpar a própria alma!

Juvenal, já na terceira rodada de chope, suspirou e soltou sua análise de boteco que faria inveja a Lacan:

— Doutor, o complexo é que é mais fácil apoiar uma chacina do que encarar o problema real nos Complexos do Alemão e da Penha. Isso aí é falta de empatia, Doutor: o povo perdeu a capacidade de sentir a dor do outro. Queria que fosse feito um exame toxicológico em todos que participaram da Operação. E um de sanidade no governador Cláudio Castro. O que encontraríamos?

O Doutor fez um leve aceno de cabeça, como quem registra um diagnóstico coletivo.

— Exato, Juvenal! — eu disse. — É o que Freud chamaria de “desmentido da realidade”: a pessoa sabe que é uma barbárie, mas age como se não soubesse. O medo e a raiva viraram anestésicos sociais. Ninguém quer pensar, todo mundo quer sentir o alívio da “solução simples” — bala, muro, extermínio.

Do outro lado do bar, o Laranja batia no balcão e gritava algo sobre “limpeza moral”. Olhei para o Doutor, que anotava calmamente, como se observasse um surto de histeria coletiva em laboratório.

— O senhor sabe, Doutor, — continuei —, Jung dizia que os complexos têm vida própria, que são como pequenas personalidades autônomas. Pois bem, o Complexo do Laranja ganhou CPF e está discursando na televisão! É o complexo de culpa que virou projeto político!

Juvenal, com o pano no ombro, completou:

— É o que a Benedita da Silva tentou dizer, Doutor: segurança se faz com estratégia e inteligência, não com bala e aplauso. Mas o povo quer a catarse da violência, a justiça emocional. É histeria coletiva, sim senhor!

O bar ficou em silêncio por um instante, quebrado apenas pelo estalar da fritura da manjubinha. O Doutor mastigava devagar, olhos fixos em mim, como se esperasse o desfecho do meu delírio analítico.

Respirei fundo.

— Então é isso, Doutor. O problema é que a realidade virou um espelho rachado. Todo mundo quer enxergar o mal no outro, pra não ver a própria sombra.

Ele largou o garfo, limpou a boca com o guardanapo, tirou o bloquinho do bolso mais uma vez, e, sem alterar o tom, soltou a frase bombástica que encerrou minha sessão:

— O problema do complexo, meu caro, é que ele virou o álibi perfeito do desejo coletivo de não pensar.

Fiquei petrificado. O desejo de não pensar. A solução simples para o meu problema complexo.

Juvenal, discreto, serviu mais um chope e suspirou:

— No fim, Doutor, o Messias tá no canil… mas quem tá preso no próprio complexo é a gente.

Originalmente publicado em Divã no Boteco – LV. Enviado pelo autor.

Fonte: https://horadopovo.com.br/o-complexo-do-laranja-e-a-histeria-social/