22 de outubro de 2025
O truque que mora no orçamento
Compartilhe:

DAVI MOLINARI

Eu estava angustiado. Daquelas angústias que parecem ter vindo de um arquivo corrompido da alma, sabe? Precisava de uma dose dupla de terapia urgentemente — com chope e manjubinha, de preferência. Mas o destino, que é uma espécie de psicanalista cósmico de humor duvidoso, me levou para Brasília.

Longe do Fale Mais Sobre Isso, senti uma espécie de abstinência moral.

Por motivos que escapam ao controle do ego e às planilhas do meu Ministério do Planejamento, eu estava ali — na capital do tapinha nas costas — convocado por um idealismo que eu chamaria de complexo de João de Santo Cristo. Vim em nome da boa causa, achando que poderia conversar com o presidente para acabar com o sofrimento dessa gente. Mas em Brasília até o sofrimento tem crachá.

Convoquei um amigo psicólogo para um plantão etílico. Ele me levou a um bar à beira do Lago Paranoá. Tinha toalha de pano, guardanapo engomado e garçons que sorriam como se tivessem feito MBA em etiqueta.

O som das lanchas, misturado ao funk das caixas de som, dava ao ambiente um ar de purgatório chique — metade inferno, metade colônia de férias do capital.

Não era o Fale Mais Sobre Isso.

Era o Fale Menos Sobre Tudo.

Meu amigo não bebia.

Coube a mim, portanto, reduzir a vigilância do superego com um chope gelado. Pedi o segundo antes de terminar o primeiro, só pra garantir que a angústia não tivesse tempo de reagir.

— Posso te chamar de Doutor? — perguntei, num ato reflexo, como quem busca transferência de culpa.

Ele arqueou as sobrancelhas, negou com a cabeça e fez aquele biquinho lateral típico dos que já ouviram muito sofrimento sem direito a gorjeta emocional.

— É que eu me sinto mais à vontade, sabe? Mesmo longe da minha sessão.

Ele assentiu, solidário, como quem aceita um diagnóstico errado para não agravar o quadro clínico.

Respirei fundo e comecei:

— Por que é tão difícil pôr o pobre no orçamento e o rico na tributação?

O garçom parou de limpar a mesa vizinha. Fingiu ajeitar o saleiro, mas claramente queria ouvir o resto.

Continuei:

— Quando o povo consegue pressionar pra tirar o imposto dos mais pobres, os caras vão lá e tiram a compensação que faria o rico pagar. É como um vírus driblando o sistema imunológico da nação. A elite brasileira é o verdadeiro trickster junguiano, Doutor!

Ele levantou uma sobrancelha, como quem reconhece um sintoma.

— O arquétipo da malandragem, Jung chamava assim. Engana o outro e a si mesmo. É o herói e o vilão. O corruptor e o corrompido. Está em todo lugar. Onde menos se espera.

Dei um gole e prossegui, num crescendo indignado:

— Depois que o Fux deixou um vale-vergonha na Primeira Turma, quer pedir transferência pra Segunda! Parece reality show de toga, onde ninguém é eliminado, só promovido.

O garçom quase riu, mas conteve o impulso — como quem teme multa do decoro.

— E o orçamento, Doutor? — insisti. — Metade vai pra pagar juros e dívidas que ninguém entende. Mas o problema, dizem os Tanures e XPs da vida, são os gastos com o povo!

Povo é gasto, mercado é investimento.

São os tricksters de colarinho branco, com bônus de performance e culpa terceirizada.

O psicólogo amigo balançava a cabeça lentamente. Parecia me hipnotizar.

— E o pior, Doutor — disse, apontando pro lago — é que aqui ninguém é punido nem quando mata dez crianças num incêndio no Ninho do Urubu, no Flamengo, no Rio de Janeiro.

O silêncio se instalou.

O garçom parou de fingir.

Todo o Lago Paranoá pareceu suspender o reflexo.

— Dez meninos, Doutor. Dormindo em contêiner irregular, com 31 multas. Dez pagas, 21 ignoradas. O que vale a vida, afinal, num país onde o truque é norma e a impunidade é estética?

O psicólogo desviou o olhar.

Pedi mais um chope.

— E tem mais, Doutor — disse, tentando fugir do abismo moral com ironia. — No Corinthians, em São Paulo, os cambistas reinventaram a psicanálise: usam o CPF dos outros pra enganar o sistema e o reconhecimento facial. É o ego fraudando o próprio ego!

O garçom não aguentou.

— No meu tempo, cambista era na porta do estádio. Agora é no aplicativo!

Brindamos, eu e ele, chocados com a modernização do crime.

O psicólogo, imperturbável, rabiscou algo num guardanapo.

– O que o senhor escreveu aí, Doutor? — perguntei.

Ele me olhou fixamente e, pela primeira vez na noite, falou:

— Brasília é o inconsciente da nação.

E voltou a rabiscar.

Ficamos em silêncio.

O garçom trouxe a conta e, sem perceber, me serviu a última rodada.

Olhei pro lago e jurei ter visto o reflexo do Fale Mais Sobre Isso nas águas.

Talvez fosse miragem.

Ou transferência terapêutica em estado líquido.

Publicado originalmente em Divã no Boteco – LIII. Enviado pelo autor.

Fonte: https://horadopovo.com.br/o-truque-que-mora-no-orcamento/