
DAVI MOLINARI
Juvenal chegou equilibrando as tulipas de chope como se fossem cálices sagrados. Depositou-as na mesa, ao lado da travessa de manjubinhas ainda chiando e, sem olhar para ninguém, recitou seu provérbio da noite:
— Traidor sempre se acha esperto… até descobrir que não tem país pra trair.
Não citou nomes, mas todo mundo no Fale Mais Sobre Isso sabe decifrar o subtexto. O bar, afinal, já serviu coronel e hippie, banqueiro e motoboy, mas até quem se odeia no mundo de fora concorda em odiar, juntos, a família Bolsonaro.
Olhei para o chope como quem consulta um oráculo líquido. As bolhas subiam em fila, apressadas, querendo emigrar para a Flórida. O Doutor, do outro lado, estava hipnotizado pela sua caderneta, rabiscando sabe-se lá o quê. Suspeito que seja uma mistura de Freud com sudoku.
Suspirei e soltei a sentença:
— O problema é de identidade, Doutor. Ou melhor: de falta dela.
O homem ergueu os olhos com um espanto digno de quem ouviu o paciente confessar assassinato. Tantos anos de chope-terapia e só agora eu chegava a esse diagnóstico tardio.
Continuei:
— É alienação. O Eu não dialoga com o mundo externo. É como se, diante do espelho, víssemos sempre a cara do vizinho.
Juvenal, que servia chope para outra mesa, não se conteve:
— Desculpe a ousadia, patrão, mas não concordo. O senhor é o mais centrado deste boteco. Já vi cliente chorar por ex que casou com amigo, por derrota do Corinthians e até por boletim do Serasa… mas o senhor não.
O Doutor pigarreou, contrariado com a intromissão, mas para minha surpresa, concordou com o garçom com um balançar de cabeça.
Me sobressaltei:
— Calma, gente! Não estou falando de mim. Eu até sei quem sou… ou pelo menos penso que sei. Estou falando do Brasil.
A mesa ao lado, onde um casal de advogados se estapeava por causa do STF, silenciou para ouvir. Tomei fôlego:
— Este país vive um transtorno dissociativo de identidade. Banqueiros medrosos, empresários acovardados e uma “deselite” que confunde saldo bancário com inteligência. Elite, por definição, são os melhores. Os nossos são apenas ricos.
Engasguei na cerveja e prossegui:
— E como se não bastasse, ainda temos o transtorno borderline dessas deselites. Oscilam entre o amor próprio e o entreguismo com a mesma pressa de quem troca dólar no câmbio paralelo. É o medo do abandono, doutor: o complexo de que, se não bajularem os Estados Unidos, ficam órfãos de crédito.
Aproveitei para gritar minha indignação:
— E os filhos da deselite? Dizem que os frutos não caem longe do pé. Então, o fato de o Dudu Bananinha ofender o próprio pai com “um VTNC ingrato do c*o” já é um sintoma que explica essa crise de identidade, que aparece, geralmente, quando a relação com os pais, por exemplo, é tão refinada quanto o curso de etiqueta de Magno Malta.
O Doutor olhou por cima dos óculos e arqueou a sobrancelha como o clássico sinal de “continue, quero ver onde isso vai chegar”.
— Freud explica, doutor: a massa transfere o desejo para o líder. Aqui, parte da população deposita seus recalques no xamã Trump, como se ele fosse o padrinho do batismo da pátria. Lacan diria: o Brasil se olha no espelho e vê uma potência mundial. Mas tropeça na própria cueca da Havan.
Juvenal não resistiu:
— Ou na camisa da CBF falsificada na 25 de Março.
Assenti:
— Exatamente. Nossa identidade nacional se esboçou com o “Petróleo é Nosso”, com as torcidas de futebol, com a MPB que exportava dignidade. Mas o petróleo foi rifado, o futebol virou negócio de investidores árabes e a MPB foi ofuscada pelo sertanejo patrocinado por cervejaria estrangeira. Resultado: somos um país que nem nasceu e já foi engolido pela Marvel.
O casal de advogados murmurou um “é verdade”. Um engenheiro de obra pública ao fundo completou:
— Capitão América, mas com nota fria.
Levantei a mão, teatral:
— O Brasil não precisa de um Super-Herói americano. O Brasil precisa reconhecer seus líderes naturais, forjados no trabalho, e elevá-los a heróis nacionais: um Capitão Tupi, um Super-Pindorama. O Brasil precisa de um Guimarães Rosa inventando uma língua que não seja apenas portuguesa — mas brasileira, com orgulho das nossas brasileirices.
O Doutor fechou a caderneta devagar, respirou fundo e soltou sua sentença, como se fosse o veredito final de um júri popular:
— O Brasil não sofre de crise de identidade. Sofre de colonialismo interno.
O silêncio caiu como pedra. Até o refrigerador do boteco pareceu desligar.
Juvenal pousou a bandeja, olhou para o nada e começou a cantar, desafinado, o hino nacional. Uma mesa de universitários puxou o coro. O casal de advogados, embriagados de ironia, levantou-se para acompanhar. Em pouco tempo, o bar inteiro berrava “gigante pela própria natureza”, entre goles de chope e restos de peixe frito.
E, naquele instante, meio bêbados, meio ridículos, parecíamos um país.
Publicado originalmente em Divã no Boteco.
Fonte: https://horadopovo.com.br/o-vtnc-dos-filhos-da-deselite-sem-identidade-nacional/