29 de novembro de 2024
Das páginas em branco para o lançamento do livro “Johnny
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Muitas histórias são memoráveis na trajetória do jornalista João Carlos Raposo Moreira. Uma delas é que venceu a queda de braço contra o uso de álcool por 22 anos e de cocaína por 19. E não consideremos João um sobrevivente. Ele, de fato, é uma pessoa que um dia decidiu viver bem e melhor. A prova disso é o livro “Johnny Bigude – Fica bem”, um relato corajoso sobre os dias em que a lucidez estava sempre mesclada a horas de delírio e de dor pelas muitas perdas de amigos que estavam em seu caminho.

O título do livro remete à canção “Johnny B. Goode” de Chuck Berry, que gravada a versão em reggae por Peter Tosh, foi muito ouvida pela Academia dos Párias e acabou se tornando o apelido de João entre os amigos poetas.

Em entrevista à jornalista Maristela Sena para o jornal O Imparcial, ele conta sobre o processo de imersão nas memórias cotidianas do vício e seus ardis e da jornada de volta a si mesmo.

A edição de “Johnny Bigude – Fica bem” foi feita pela jornalista e escritora Andréa Oliveira, o projeto gráfico é de Claudio Lima e as fotografias são de Márcio Vasconcelos. O lançamento será nesta sexta-feira, dia 29, às 19h30, na livraria AMEI (Shopping São Luís).

O usual é que pessoas que conseguem atravessar essa ponte entre abandonar um vício e viver deixem essas histórias em algum cantinho da memória para seguir adiante sem falar muito sobre elas. Por que tu decidiste falar da tua experiência de forma tão aberta?

A vontade de compartilhar essa história sempre existiu em mim e foi maior do que qualquer outro sentimento. Desde o início da minha recuperação, constatei que eu era um privilegiado e que tinha a obrigação de dividir isso com o universo, dividir essa experiência. Tive o que muita gente não tem: apoio da família, do trabalho e condições materiais de me tratar. A realidade dos dependentes, em geral, é bem diferente, eles enfrentam o preconceito, a rejeição familiar, o descaso estatal, a falta de políticas públicas que assumam esse problema como o caso de saúde pública que realmente é. Essa percepção só aumentava minha vontade de contar essa história – ou parte dela.

Tu não tiveste receio de te expor de alguma forma?

Não tive medo da exposição, todo o tempo pensava no lado positivo da coisa, que é o fato de eu ter conseguido controlar uma dependência tão forte. Cheguei a pesar 60 quilos tendo um metro e oitenta e oito. Acredito que os julgamentos virão, para o bem e para o mal. Mas encaro esse livro (e palestras que já faço e quero fazer muito mais), para além de um sonho, como uma missão, para que sirva de inspiração. Não é autoajuda, não tenho fórmula, não estou vendendo receita, o livro é realmente para as pessoas vejam – dependentes, familiares, amores, amigos e o público em geral – que é possível sair do fundo do poço, por mais que pareça uma situação irremediável.

A partir do teu distanciamento, desse espaço delimitado entre o passado e o presente, tu consegues dizer o que aconteceu contigo durante o período de dependência de álcool e cocaína?

A droga, qualquer droga, entra na vida das pessoas pelo prazer que proporciona e negar isso é partir de uma premissa totalmente errada. Na minha época de uso, quando eu via uma propaganda, uma campanha, dizendo que droga era ruim, na minha cabeça, a partir dessa mentira inicial, tudo o mais que fosse dito seria mentira também. Depois de negar o prazer, que é verdadeiro, pelo menos no início, não adiantava mais dizer que a droga mata, causa dependência, leva à derrocada. As campanhas são equivocadas, o combate é equivocado. Depois desse prazer inicial, muita coisa pode acontecer. Em cada pessoa, a droga vai agir de uma forma e atingir zonas, espaços internos diferentes. Acredito que, no dependente, a droga ocupa um espaço que ela encontra vazio, um vazio que todos temos, mas que, em quem tem a “tendência” à dependência, vai reverberar de um jeito muito reconfortante, vai aliviar um buraco interior. Ninguém tem como prever quem vai se tornar dependente. Duas pessoas que experimentam drogas juntas podem ter caminhos totalmente diferentes, com uma avançando rumo à doença e a outra deixando pra lá ou até mesmo fazendo uso recreativo, esporadicamente. Essa última parte é controversa, mas minha experiência diz que pode ser possível. Pra mim, não é: sou doente, sou dependente, tenho uma patologia que é crônica, progressiva e pode ser letal. Mas tem controle, assim como diabetes, hipertensão, colesterol alto etc. Só que o dependente não pode nunca mais tocar na sua droga, é ilusão pensar que vai ter um controle. Mesmo depois de 22 anos sem usar, não penso que poderia arriscar um golinho ou uma cheiradinha. Pra mim, é nunca mais, mesmo.

Como foi teu relacionamento com o trabalho e com tua família?              

Como relatei na primeira pergunta, minha história é diferenciada e até mesmo uma exceção. Comecei a beber muito cedo e a experimentar outras drogas também. Isso foi se tornando normal para a minha família que, acho, me via como o doidinho, o alternativo, dentro de uma família bem tradicional. Acredito que jamais pensaram que fosse chegar aonde cheguei, até porque, para o senso comum, o “viciado” (não gosto dessa palavra, a acho carregada de preconceito) é aquele cara da sarjeta, aquela pessoa sem família, sem vínculos, jogada da rua. Todos sempre foram muito respeitosos comigo, acatando meu modo de vida. Quando cheguei mesmo ao fundo do poço, estive à beira da morte, e algo me fez pedir ajuda, foi à família que recorri. E fui acolhido da melhor forma possível. Falei com minha irmã mais velha, Lina, e outra irmã, Erina, viabilizou minha viagem e internação, que aconteceu fora de São Luís. As duas são como mães para mim. No trabalho, também tive muita sorte: era assessor de imprensa do Teatro Arthur Azevedo e meu chefe, Fernando Bicudo, deu todo apoio para que eu fosse me tratar, desburocratizando meu afastamento e me recebendo de volta com respeito e acolhimento. Minhas colegas de trabalho, Glorinha, Luciana, Frida, me pegaram pela mão e me ajudaram a voltar a andar pelos meandros do dia a dia da assessoria, em que eu já desempenhava minhas funções com muitos furos.

O que te motivou a sair daquela situação de total dependência de álcool e cocaína?

Antes de tudo, a vontade de viver. Apesar de estar me matando aos poucos, eu nunca quis morrer de verdade. Pude perceber que essa vontade, esse bem-querer pela vida, estava dentro de mim. Agarrei-me neles com todas as forças que me restavam e pedi ajuda, dizendo: “eu não quero morrer”. A decepção e a raiva que sentia em relação a mim mesmo foram essenciais para eu conseguir sair da dependência. Sentia-me revoltado porque não conseguia cumprir promessas que eu fazia para mim mesmo. Não conseguia fazer mais nada que não fosse beber e cheirar. O resto do tempo, pouco tempo, era apenas intervalo até o próximo gole, até o próximo teco. Eu tinha vontade de fazer outras coisas, prometia a mim mesmo que no dia seguinte não faria farra, mas não conseguia. Não conseguia fazer nada: ir à praia, ao cinema, ler um livro, visitar amigos, até mesmo simplesmente ficar em casa, descansando. As drogas sempre atravessavam qualquer plano. E eu ficava muito decepcionado comigo mesmo e com raiva, com muita raiva. Eu não me aguentava mais! A rotina do drogado foi outra coisa que foi se tornando insuportável para mim: os mesmos papos, com as mesmas pessoas, as mesmas piadas sem graça, as mesmas mentiras, as mesmas músicas, a mesmas batalhas para conseguir a próxima peteca de pó. Era exaustivo, física e mentalmente. Era como se minha vida estivesse sendo feita em páginas em branco. A droga, que começa para quebrarmos a rotina, havia me aprisionado numa rotina burra, improdutiva, mentirosa, repetitiva, dolorida. E eu não queria mais aquilo.

As políticas públicas atuais de drogas se voltam para medidas administrativas dirigidas a programas de prevenção, programas de saúde e assistência social direcionados para o cuidado dos usuários e um conjunto de leis que proíbem ou regulamentam o uso, porte, distribuição e produção de determinadas substâncias. Como tu percebes a atuação dos governos no Brasil em relação à questão social e uso de drogas?

Deficiente. As drogas, de uma forma geral, ainda são tratadas como um caso de polícia, quando são um caso de saúde pública. O total de dependentes no Brasil, seja de drogas lícitas ou ilícitas, é estimado em 10% da população. O que existe de iniciativa na área também não individualiza as abordagens. Como eu falei antes, as drogas atingem as pessoas de diferentes formas, que merecem diferentes abordagens em seus tratamentos. Eu não vejo esse cuidado com os usuários e/ou dependentes. O que vejo são pessoas abandonadas, sofrendo junto com suas famílias, a mercê de iniciativas pontuais, que também não vou dizer que não existam. Eu tive condições de me tratar em uma clínica particular, mas a maioria não tem. Os CAPs (Centros de Atenção Psicossocial) são centros muito bem pensados que deveriam ter essa excelência também no seu funcionamento. As três esferas públicas deveriam se unir nesse combate ao descaso com essa população.  A dependência é uma doença estigmatizada, julgada moralmente, vítima de todos os preconceitos, em que os doentes são vistos como pessoas fracas, sem força de vontade, quando não, como safados, bandidos, sem-vergonhas. Essa visão também tem que mudar. Os poderes públicos acabam gastando uma grana muito maior para tratar as consequências da doença do que se se preparassem para fazer prevenção e acompanhamento. Como uma doença mental, a dependência precisa de uma abordagem multidisciplinar e acompanhamento contínuo, assim como qualquer outra doença crônica.

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Fonte: https://oimparcial.com.br/noticias/2024/11/das-paginas-em-branco-para-o-lancamento-do-livro-johnny-bigude-fica-bem-um-salto-para-a-vida/