
No Maranhão, a história que narra o surgimento do Bumba meu Boi pode até ser uma só. Quando Catirina e Pai Francisco protagonizaram a situação que originou a principal festa do estado, talvez eles não imaginassem que o desenvolvimento desse festejo acarretaria a criação de diferentes grupos que compartilham, além dessa, outras semelhanças. Ainda que eles se misturem, impulsionados pelas possibilidades que lhes são trazidas durante o período junino, eles se reconhecem – se não pela convivência, pela indumentária.
Para além de um evento cultural e religioso, o São João é uma festa que brilha pelos bordados de paetês, canutilhos e miçangas, nascidos das mãos de pessoas, brincantes e artesãos, que se dedicam, o ano inteiro, à produção manual que dá vida a um dos pilares fundamentais da identidade do boi.
Ao passo que pulsam os pandeirões e batem as matracas, são ensinados, geracionalmente, os costumes ancestrais que fazem dessa festividade uma potência: a dança, as toadas e, especialmente, o bordado. A moda junina vai além de brilhos e estampas – ela conta uma narrativa. Por meio do couro do boi, os cânticos entoados pelo amo ganham vida em cores e imagens e, para quem vê, o resultado é imediato: a energia que emana dos brincantes, indumentárias afora, contagia o ambiente com um mix perfeito entre movimento corporal, percussão, voz e vestimenta. Querer fazer parte é inevitável.
O trabalho do artesanato em grupos de boi é uma ciência – tem método, conhecimento e muita prática. Por trás das padronagens impecáveis, existe um saber natural que deve ser agregado às técnicas convencionais, afinal, a indumentária não tem apenas finalidade comunicativa. Ela precisa garantir, também, o conforto necessário para que os brincantes executem os passos da coreografia sem incômodos que possam dificultar o seu desempenho, ou mesmo inviabilizar a sua performance. Combinam-se, portanto, cores, cortes e formas para assegurar o bem-estar dos brincantes, preservando e renovando, anualmente, a identidade do boi e, claro, a do Maranhão.
Não à toa, o bordado maranhense chama a atenção nacionalmente. Marcas de amplo reconhecimento, como a Farm, já identificaram o potencial da arte manual produzida no estado, firmando parcerias e lançando coleções com temáticas de bumba meu boi, nesse caso, o de Santa Fé. O mesmo acontece com a Moda do João, marca ludovicense, em algumas coleções: enquanto os trajes produzidos por João Belfort, diretor criativo da marca, têm referências fortes da cultura maranhense, o bordado feito pelos artesãos do Boi da Floresta dá, ainda mais, vida e destaque para as produções.
Compartilhando saberes: a experiência de bordar
Carlos Henrique Cardoso (Kaká), 41, é bordador e cacique do Boi da Floresta há mais de 20 anos, e comprova que, entre tantas inovações, a sabedoria do bordado é um dos conhecimentos tradicionais que não será perdido. Ele, que aprendeu a técnica adulto, ensina essa arte para os filhos, que futuramente serão os responsáveis para dar continuidade ao legado e à personalidade do boi. Além disso, Kaká enxerga que o bordado traduz, especialmente a quem é de fora, a riqueza maranhense: “A gente consegue ver em um bordado que algo é do Maranhão, porque aqui tem várias coisas. Dá pra identificar o que é daqui”, disse.
No Boi da Floresta, como em tantos outros, os próprios brincantes (ou a maioria deles) são responsáveis por confeccionar as suas roupas. Nesse sentido, a peça indumentária é um espelho duplo: reflete tanto a personalidade de quem dança, quanto a identidade coletiva do grupo que mantém a individualidade de cada um, sem romper com a tradição. Para Kaká, por exemplo, a inspiração vem das coisas simples do cotidiano: em pinturas de parede ou paisagens. A partir dessas referências, ele transforma diferentes figuras em novos cortes e estampas.
Lara Cardozo, 24, participante do Boi de Sonhos, também tem as suas inspirações – o amor pela cultura e a ancestralidade. Ao Imparcial, ela contou que aprendeu a bordar com os próprios integrantes do grupo. Lá, eles aprendem, por meio de oficinas, o passo a passo da produção, desde o começo da peça até o fim. Para Lara, participar deste processo durante todas as etapas é gratificante, especialmente, após ver o resultado. Ela reforça também a ideia de que a vestimenta reflete a personalidade do brincante: “As indumentárias representam tudo o que foi vivido e o que ainda será vivido também. Cada indumentária representa um pedacinho do brincante que a criou, de quem faz toda essa mágica acontecer.”
No que diz respeito ao tempo de produção de uma peça, tanto Lara quanto Kaká afirmaram ser relativo, variando em uma média de 15 dias a um mês. Fatores como a habilidade e tempo pessoal do bordador, assim como a disponibilidade de materiais, influenciam na finalização da peça. No entanto, esse não é um trabalho sazonal – ele é contínuo, realizado durante todo o ano, seja fazendo indumentárias, ou recebendo outras encomendas, como é o caso de Kaká.
Agora, a tendência é que cada vez mais as novas gerações aprendam a arte da produção de bordado, perpetuando esse conhecimento que garante a grandiosidade da moda junina, além de claro, salvaguardar o legado dos grupos de bumba meu boi, afinal, como disse Humberto Maracanã: “esta herança foi deixada por nossos avós, hoje cultivada por nós, ‘pra compor tua história, Maranhão.”
Fonte: https://oimparcial.com.br/entretenimento-e-cultura/2025/05/entre-bordados-e-narrativas-a-moda-que-da-vida-ao-bumba-meu-boi/